sábado, 26 de março de 2016

"Espíritas" e a incompreensão das "forças divinas"


Quanta incompreensão! Os "espíritas" interpretam mal as ideias de Allan Kardec a respeito de Deus e interpretam a ideia desse "ente superior" com os mesmos preconceitos igrejistas de um "velhinho de barba" que trata a Terra, seus seres e coisas como se fosse um brinquedinho.

Esses preconceitos igrejistas são travestidos de "ciência" mas não escondem seus julgamentos moralistas mais retrógrados (e medievais). Até a "profecia" de Francisco Cândido Xavier, sobre a tal "data-limite", envolve essa ideia: a "ira de Deus" que castigaria o Hemisfério Norte se continuassem a haver ataques terroristas e conflitos bélicos.

Há poucos dias, explosões de bombas, num atentado depois assumido pelo Estado Islâmico, num aeroporto de Bruxelas, na Bélgica, matou 31 pessoas, entre elas dois dos três terroristas, atuando como homens-bombas, e o remanescente acabou preso dias depois da tragédia.

Os "espíritas", dotados de um delirante juízo de valor em que todos os sofredores e vítimas de algum infortúnio são vistos como "antigos algozes romanos", imaginam que o progresso social - ou, pelo menos, o que entendem como "progresso social" - será conduzido por Deus, queiram ou não queiram as pessoas, que serão castigadas se não cumprirem o que ordenam as "leis divinas".

Isso é uma interpretação leviana do que Allan Kardec comentou no texto da questão 783, do capítulo Da Lei de Progresso de O Livro dos Espíritos - usamos aqui a tradução de José Herculano Pires - , sobre o aperfeiçoamento da humanidade. Vejamos o texto:

783. O aperfeiçoamento da Humanidade segue sempre uma marcha progressiva e lenta?

- Há o progresso regular e  lento que resulta da força das coisas; mas quando um povo não avança bastante rápido, Deus lhe provoca, de tempos em tempos, um abalo físico ou moral que o transforma.

Comentário de Kardec: Sendo o progresso uma condição da natureza humana, ninguém tem o poder de se opor a ele. É uma força viva que as más leis podem retardar, mas não asfixiar. Quando essas leis se tornam de todo incompatíveis com o progresso, ele as derruba, com todos os que as querem manter, e assim será até que o homem harmonize as suas leis coma  justiça divina , que deseja o bem para todos, e não as leis feitas para o forte em prejuízo do fraco.

O homem não pode permanecer perpetuamente na ignorância, porque deve chegar ao fim determinado pela Providência; ele se esclarece pela própria força das circunstâncias. As revoluções morais, como as revoluções sociais, se infiltram pouco a pouco nas idéias, germinam ao longo dos séculos e depois explodem subitamente, fazendo ruir o edifício carcomido do passado, que não se encontra mais de acordo com as necessidades novas e as novas aspirações.

O homem geralmente não percebe, nessas comoções, mais do que a desordem e a confusão momentâneas, que o atingem nos seus interesses materiais, mas aquele que eleva o seu pensamento acima dos interesses pessoais admira os desígnios da Providência que do mal fazem surgir o bem. São a tempestade e o furacão que saneiam a atmosfera, depois de a haverem revolvido.

Segue então a nota do próprio José Herculano Pires:

(1) Como se vê, por este comentário de Kardec e pelas explicações dos Espíritos a que ele se refere, o Espiritismo reconhece a necessidade desses movimentos periódicos da agitação natural, quer dos elementos, quer dos povos, para a realização do progresso. Mas os admite como fatos naturais e não como criações artificiais a que os homens devam dedicar-se, em obediência a doutrinas revolucionárias.  O que ele ensina é que o homem deve colocar-se, nesses momentos, acima de seus mesquinhos interesses pessoais, para ver em sua amplitude a marcha irresistível do progresso, auxiliando-a na medida do possível. (N. do T.)

Vejamos o que disse Kardec sobre a ideia de Deus, no Capítulo I do referido livro, na primeira pergunta feita neste enorme questionário que é o conteúdo do livro:

1. O que é Deus?

- Deus é a inteligência suprema, causa primária de todas as coisas.

Com isso, observa-se que Deus não é o "velhinho" católico que os "espíritas" tomaram emprestado e que o "sábio" Divaldo Franco chegou a concordar com a ideia católica de Deus na forma antropomorfizada e machista (um "criador" do sexo masculino).

Deus, para Kardec, é uma espécie de energia, que o próprio pedagogo admite ser dotada de mistério, e que teria sido a origem de todas as coisas e seres. Não é o "vovô imaginário" que muitos supõem e, por isso, não podem atribuir a ele uma figura de um mestre severo nem de um general ou coisa parecida, a castigar os humanos que desobedecerem aos seus desígnios.

Portanto, não se trata de um "homem invisível" que manda na humanidade, mas um princípio de forças científicas que os humanos traduzem em ideias. Portanto, sem chance de haver a ideia de um chefe invisível capaz de bagunçar a Terra para a humanidade ver a necessidade de botar tudo em ordem.

O que acontece é que, nos ambientes de incompreensões e abusos, a crise surge porque os interesses das pessoas entram em choque. As "forças divinas", na verdade, seriam as ideias que se encontram truncadas ou marginalizadas, e os conflitos movidos pelos mal-entendidos e pelas ganâncias fazem com que essas ideias cheguem à tona, não por ordens divinas, mas porque um considerável número de pessoas passou a entender aquilo que não conheceram ou entenderam mal.

CRISE BRASILEIRA

Infelizmente, o "espiritismo" brasileiro interpreta isso com os preconceitos católicos que a doutrina local sempre teve desde que optou pelo igrejismo de Jean-Baptiste Roustaing, em 1884. E fala da crise que atinge o Brasil como se ela pudesse ser resolvida por fórmulas religiosas pré-estabelecidas.

É muito complicado resolver as coisas apenas "dando as mãos". Pode-se forjar "fraternidade" aceitando os abusos dos algozes e ficando indiferente às desgraças dos sofredores. Argumenta-se, de maneira hipócrita mas supostamente bondosa, que os algozes "terão em breve o que merecem" e os sofredores "conhecerão a salvação um dia", sem que algo definitivo se faça para garantir isso.

A interpretação do texto de Allan Kardec soa risível: "As pessoas deveriam se unir e dar as mãos para resolver o problema, aprimorar a fé religiosa e confiar mais em Jesus, mudar os pensamentos buscando a aceitação e a cooperação e, caso isso não aconteça, Deus punirá com abalos naturais e morais que trarão dor e angústia até que todos se aceitem como irmãos".

Essa interpretação é equivocada, porque o que Allan Kardec disse foi o seguinte: "Diante de situações complexas de acomodação, a rotina irá aborrecer uns e acomodar outros, o que criará situações de incômodo que resultarão em conflitos de interesses, no qual virão à tona ideias antes discriminadas que passam a ter um novo sentido e inspirar novas soluções para a sociedade".

Deus seria a "inteligência suprema", o "mundo das ideias", e as "forças divinas" seriam na verdade as forças do Conhecimento, que diante da acomodação da humanidade, fazem despertar ideias novas que adormeceram na discriminação e que, diante da crise de interesses, surgem com mais força como novas questões ou propostas para o progresso da humanidade.

É através do desenvolvimento destas ideias que a sociedade se transforma, diante da discussão dos problemas, da resolução de injustiças e do abandono de antigos privilégios cujos prejuízos sociais, antes apenas conhecidos, tornam-se comprovados. O progresso social vem através de novas ideias e novos procedimentos, e não apenas na fé inerte e no frio e cego segurar de mãos.

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