quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

Para que interessam os sonhos de Chico Xavier?


Seria ridículo se não fosse a habilidade de certos contextos, num país como o Brasil, seletivo com os méritos e desméritos de acordo com o status de cada pessoa, mede os atos não pelos mesmos em si, mas pela reputação de quem pratica ou deixa de praticar.

Chico Xavier foi um dos beneficiários desse status seletivo. Não por acaso, é o mesmo país em que uma Letícia Sabatella ganha a simpatia da sociedade quando está bebum. Os erros são condenados ou exaltados dependendo do status de alguém. Se Luana Piovani estivesse no lugar de Letícia, não teria deitaço nem tuitaço nem feicebucaço em solidariedade.

Chico teve uns sonhos banais, que foram superestimados. Astro da FEB, Chico não só foi o popstar do "espiritismo à brasileira" como foi alçado, pelo marketing da instituição, a um dublê de filósofo e consultor sentimental que as pessoas adoram evocar, 12 anos após a morte do anti-médium, em memes e frases publicadas nas mídias sociais.

E não foi só isso. Chico Xavier passou a ser status de profeta, psicólogo, cientista, sociólogo, detentor da verdade e até mesmo, se alguém quiser, vice-Deus, espécie de vice-líder do universo a dotar de todos os segredos da humanidade e ter a fórmula pronta para o progresso dos seres humanos.

Tais supostas qualidades foram gratuitamente atribuídas, sem muito esforço e sem mesmo que tais méritos realmente tenham sido parte da personalidade de Xavier. É duvidoso que ele tenha tido tais qualidades, na verdade fruto da idealização dos marqueteiros da FEB e do sentimentalismo fácil de seus seguidores.

Em boa parte, essas supostas qualidades teriam sido facilitadas pela interpretação, entre sensacionalista, pedante e supostamente profética, de seus sonhos, coisas banais, que pessoas têm em suas horas de sono e que são meramente relacionadas com suas aflições, projetos, anseios ou meras opiniões pessoais. Nada de profético ou de revolucionário.

No entanto, Francisco Cândido Xavier é um daqueles que obtém status alto por representar estereótipos ideológicos que envolvem valores tradicionais ligados à simplicidade interiorana, ao contraste mitológico entre ignorância e sabedoria, e de estigmas associados tanto às imagens de caipria simpático como de velhinho bondoso.

Beneficiado por personificar bem tais estereótipos, e tornado veículo para as manobras pedantes da Federação "Espírita" Brasileira e seu pseudo-cientificismo, Chico Xavier, sem qualquer habilidade especial, teve um simples sonho mortal transformado em profecia que virou livro e depois documentário.

Por que ele? Se fosse o Zé da Padaria sonhando a mesma coisa, isso não repercutiria. Mas sendo Chico Xavier, vira "profecia" e "previsão", provavelmente passível de "reinterpretações" e supostos debates do mundo espiritual, se caso as "valiosas previsões" do velho Chico falharem.

Da mesma forma, sonhar com Humberto de Campos não necessariamente autoriza Chico a usar seu nome. Muitos mortais sonham com seus ídolos e ninguém vai sair por aí escrevendo livro usando o nome do ilustre admirado . Imagine o Zezinho do Skate escrever livros com autoria supostamente atribuída a Kurt Cobain só porque o moleque sonhou com o falecido músico?

Mas Chico Xavier sonhou com Humberto de Campos e passou a usar o nome dele. E, mesmo quando teve que abandonar o nome para evitar "novos dissabores" (processos judiciais), continuou se valendo do mesmo ao adotar como codinome um apelido do mesmo estilo de um pseudônimo do autor maranhense (Conselheiro XX), virando Irmão X.

E o que interessam tais sonhos? Eles nada têm de especial. E mesmo famosos sonham todo dia, entre coisas banais e outras supostamente especiais e ninguém fica dando palpite sobre o que acontecerá com a humanidade daqui a 40, 50 anos.

Nem os piores astrologos ou videntes teriam tal pretensão. Alguns se arriscam a fazer previsões para anos vindouros ou a calcular mapas astrais e posições astronômicas, entre alguns critérios esotéricos e místicos, mas de alguma forma organizados, para darem suas apostas sobre o que será a humanidade ou, ao menos, a vida de alguém, para daqui a doze meses.

Já Chico Xavier tornou-se "superior" porque sonhou alguma coisa, de forma caótica e nebulosa como muitos dos sonhos dormidos, dos quais as memórias se tornam precárias e vagas. E aí elas viraram "profecias" com um pretensiosismo ainda maior do que muitas previsões de videntes, astrólogos e pais-de-santos para o próximo ano.

Tudo porque Chico Xavier é bonzinho e escreve "palavras de amor" que alegram muita gente. O idealismo sentimentalista de qualquer um, capaz de projetar no objeto de suas paixões qualidades que este não possui, permite que Chico seja elevado a "profeta sério" e "cientista" para prever "coisas urgentes" para a humanidade futura, como um Nostradamus dos trópicos.

E isto tudo sem cálculos, sem critérios nem fórmulas. Só um sonho. Foi ele acompanhar uma conversa entre um caricato Jesus ao lado de Emmanuel e outros "espíritos puros" - um bando de desocupados, diga-se de passagem -  num sonho qualquer, e de repente os destinos da Terra, seja do Brasil, seja do Primeiro Mundo, estão em função desse mero sonho.

O que o status de alguém pode fazer. Faz parte. Letícia Sabatella foi concebida pela "graça divina" de fazer o papel da mãe de Chico Xavier no cinema. Foi ela exagerar na vodca e todo mundo lhe dando apoio. Afinal, depois de um pileque, todo mundo vai colocar as "frases lindas" de Chico Xavier no Facebook, felizes na libertinagem que fazem no "coração do mundo".

terça-feira, 30 de dezembro de 2014

Chico Xavier, fraudes de materialização e o caso Otília Diogo


Entre 1953 e 1965, o anti-médium mineiro Francisco Cândido Xavier esteve associado a supostos processos de materialização, que se mostravam demasiado suspeitos. Mas ele não foi o primeiro utilizado pela FEB para processos fraudulentos de suposta materialização. Eles haviam acontecido desde 1921.

Em 1936, há registros em livros de estranhas materializações, sempre manifestas com figuras vestidas de roupas brancas, portando gaze, algodão, fotos mimeografadas de pessoas falecidas, entre outros artifícios. Estranhamente, as "materializações" eram registradas em fotografias de péssima qualidade, para não dar nitidez a irregularidades.

FALSA MATERIALIZAÇÃO ATRIBUÍDA AO MAESTRO ITALIANO ETTORE BOSIO, EM 1936.

Um dos registros antigos de suposta materialização foi registrado por uma provável reedição, em 1936, do livro O Trabalho dos Mortos, de Raymundo Nogueira de Faria, originalmente lançado em 1921. O livro foi editado pela FEB.

Nela se observa, entre outras coisas, uma suposta materialização atribuída ao maestro italiano radicado no Brasil, Ettore Bosio, que havia falecido pouco antes, em 1936. Embora os partidários da FEB aleguem que tais "materializações" eram "impossíveis" de se constituírem em fraudes, note-se que a foto confirma o caráter grotesco da medida.

Na foto atribuída ao espírito de Ettore Bosio, o que se observa é a presença de um modelo, vestindo uma enorme roupa branca, os pés descalços com meias, e sobre a cabeça algo que parece um cesto de flores, onde aparece a foto de Ettore, que mais parece uma fotocópia mimeografada. Uma fraude grosseira, diga-se de passagem, da qual seria impossível, isso sim, alegar veracidade.

FOTO DE SUPOSTA MATERIALIZAÇÃO, EM 1953, ATRIBUÍDA AO ESPÍRITO DE CAMERINO, QUE TERIA VIVIDO NO INTERIOR DE MINAS GERAIS.

Chico Xavier participou dos processos de suposta materialização, fazendo acompanhamento e escrevendo atestados "comprovando" a materialização, em documentos assinados por ele e outros "especialistas" e membros de entidades "espíritas".

SUPOSTA MATERIALIZAÇÃO DE UMA "AMIGA DE CHICO XAVIER", DEPOIS DIFUNDIDA COMO A MEIMEI, E ATESTADO ASSINADO PELO ANTI-MÉDIUM.

Entre vários indivíduos associados à suposta materialização, esteve uma que, a princípio, foi anunciada como "amiga espiritual" de Chico Xavier. Mais tarde, ela foi creditada como Irma de Castro Rocha, a Meimei, que foi, junto com Humberto de Campos, uma das maiores obsessões de Chico Xavier, sob o ingênuo consentimento do viúvo da jovem, o esportista Arnaldo Rocha.

SUPOSTA MATERIALIZAÇÃO DE MEIMEI E UMA DAS FOTOS DA FALECIDA JOVEM.

A irregularidade que se observa, no caso da suposta materialização de Meimei é a desproporcionalidade, na foto que vemos acima, da cabeça do suposto espírito - na verdade uma modelo coberta de véu com uma foto mimeografada de uma mulher (da qual se tem dúvidas que tenha sido uma foto de Meimei) e o formato da cabeça de Meimei em vida.

Note-se que a cabeça do "espírito" é bem menor, não correspondendo ao rosto comprido e de testa relativamente alta que a jovem teve em vida. Além disso, a colocação do rosto do "espírito" parece grotesca com um contraste de luzes que não condiz ao ambiente.

SUPOSTA MATERIALIZAÇÃO DE EMMANUEL E A IMAGEM UTILIZADA, OFUSCADA PELA ILUMINAÇÃO.

Por volta de 1954, uma outra suposta materialização parecia encerrar o ciclo de práticas semelhantes com a participação de Chico Xavier. Num "centro espírita" de Belo Horizonte, preparou-se a "recepção" de Emmanuel, o mentor de Chico, numa plateia em que o deslumbrado viúvo de Meimei estava presente.

Arnaldo Rocha, guiado por sua emotividade para aderir ao "espiritismo" chiquista por conta da exploração que Chico fez do espírito de Meimei, havia feito declarações apenas mencionando informações diferentes sobre a altura do jesuíta, conforme registros em fontes indicadas:

"A materialização de Emmanuel foi magnífica! Emmanuel é um belíssimo tipo de homem. Atlético, alto, provavelmente 1 metro e 90 centímetros de altura. Sua voz clara, forte, baritonada, suave mas enérgica, impressionou-nos muito. O andar e os gestos elegantes, simples, porém aristocráticos. No grande e largo tórax um luzeiro multicolorido. Na mão direita, erguida, trazia uma tocha luminescente e sua presença sempre irradiava paz, harmonia, beleza e felicidade". 
(Chico Xavier - Mandato de Amor)

"Não posso deixar de mencionar as materializações de Nina Ameira, de Meimei, de minha mãe, e a fantástica materialização de Emmanuel, de cujo episódio, aliás, gosto de citar um aspecto científico da manifestação espiritual: como todo mundo sabe, o Chico era um homem baixo, mas, no momento do transe, uma luz começou a projetar um vulto luminoso de um homem de mais ou menos uns um metro e oitenta centímetros de altura, de compleição atlética, bonito, com voz enérgica e doce ao mesmo tempo, a portar uma tocha incandescente na mão".
(Carlos Alberto Braga Costa - Chico, Diálogos e Recordações)

No entanto, mesmo a suposta materialização de Emmanuel pode ter sido uma farsa. É coerente que Emmanuel tenha sido um dos poucos espíritos que realmente se manifestaram sobre Chico Xavier, até pela forte semelhança de atitudes, ideias e posturas referentes ao padre Jesuíta Manuel da Nóbrega, conhecido nosso através das aulas de História.

Todavia, o que se observou na "materialização" foi o espetáculo patético em que uma maquete, provavelmente montada com lâmpadas de luz neon, aparece com o "tronco" de seu corpo assemelhado ao do Cristo Redentor, numa atitude forçadamente oportunista de associar o jesuíta a um dos mais antigos ativistas humanitários de nossa era.

Sobre essa maquete, inseriu-se a famosa imagem de Emmanuel que circula na Internet e que teria sido mimeografada. A iluminação na foto, de qualidade precária e originalmente em preto e branco e só colorizada nos dias atuais pela computação gráfica - apenas mostrou vagamente o topete de Emmanuel.

O mentor de Chico Xavier, "suave mas enérgico", tinha sua suposta aparição conduzida provavelmente por um locutor escondido no local que, com a voz em off, fazia sua imitação do que entendia como um "enérgico romano" (Emmanuel é associado à figura de um governador ou senador Públio Lentulus, que nunca existiu - houve apenas homônimos sem relação com ele).

Nela, o suposto Emmanuel aconselhava Chico Xavier, de forma gentil e simpática, a abandonar os rituais de materialização, com um discurso que foi registrado no acima citado livro Chico Xavier - Mandato de Amor, lançado pela Unão "Espírita" Mineira em 1992:

"Eu não quero! Eu não quero que o Chico sirva de médium de materialização. A sua missão é a missão do Livro! Não é médium com tarefas de efeitos físicos… Amigos, a materialização é fenômeno que pode deslumbrar alguns companheiros e até beneficiá-los com a cura física. Mas o livro é chuva que fertiliza lavouras imensas, alcançando milhões de almas. Rogo aos amigos a suspensão destas reuniões a partir desse momento".

Apesar da advertência, Chico Xavier continuou acompanhando processos de falsa materialização, que ocorreram de maneira intensa nos anos de 1963 e 1964. Uma suposta materialização, cheia de irregularidades, envolveu até o presidente dos EUA, John Kennedy, assassinado durante um desfile em carro aberto em Dallas, no Texas, em novembro de 1963.


A suposta materialização de John Kennedy e uma mulher atribuída à sua irmã Rose revela uma série de irregularidades, todas muito graves. Para começar, Kennedy aparecia sempre com o mesmo sorriso, quando sabemos que uma autoridade não ficava o tempo sorrindo, caso contrário seria um completo pateta.

E Kennedy era um dos líderes da geopolítica mundial, ficava boa parte do tempo em expressões sérias e graves. Mas eis que se compara o suposto rosto do "espírito John Kennedy" com a capa de uma das edições da revista Manchete, muito vendida na época da morte do presidente, O pseudo-Kennedy que sorria feito um débil-mental não era mais do que uma fotocópia mimeografada.

Mas o pior foi a grotesca desinformação sobre a "moça" que aparece ao lado dele. Atribuiu-se ao espírito de Rose Kennedy, irmã do presidente, constituindo numa gravíssima falha. Afinal, Rose estava viva na ocasião do processo - ela só faleceu, idosa, em 2005 - e sua aparência real era bem diferente da modelo usada para representá-la na suposta materialização.

Nota-se que a modelo nem de longe se parecia com John Kennedy, e, numa comparação entre a aparência da suposta "Rose Kennedy" com a aparência que Rose (na época muito viva e bem de saúde) teve, evidentemente a verdadeira Rose tinha mais semelhanças com o falecido irmão do que a anônima modelo usada em foto mimeografada para a falsa materialização.

CHICO ACOMPANHOU, COM APOIO ENTUSIASMADO, A FARSA PRODUZIDA POR OTÍLIA DIOGO.

O que se observa é que Chico Xavier acompanhou com natural entusiasmo os processos de falsa materialização comandados pela astuciosa Otília Diogo, que se dizia médium e prometia mediar a materialização da irmã Josefa  e do doutor Alberto Veloso.

OTÍLIA DIOGO SE PASSANDO PELA MATERIALIZAÇÃO DO FALECIDO MÉDICO ALBERTO VELOSO.

Mesmo quando se acredita que Chico Xavier era totalmente cego - consta-se que ele apenas tinha um sério problema de visão - , ele não teria sido ingênuo a ponto de acompanhar as fraudes de Otília Diogo ou de outras nos anos 50 e não saber do que se trata. Os próprios atestados assinados por Chico eram uma forma de autenticar tais fraudes grosseiramente armadas.

Otília passou os anos de 1963, 1963 e 1965 realizando tais rituais, sob o acompanhamento de Chico Xavier e Waldo Vieira (o homem que inventou André Luiz e hoje está ligado à Conscienciologia), e teria supostamente promovido as "materializações" de Josefa, do dr. Alberto e de um suposto indiozinho chamado Adri.

ATRIZ SIMULAVA A FRAUDE DE OTÍLIA DIOGO E OBJETOS USADOS NO PROCESSO ERAM APRESENTADOS À REPORTAGEM DE O CRUZEIRO.

A coisa ia bem até que, na edição de 27 de outubro de 1970, da revista O Cruzeiro - a mesma que, 26 anos antes, investigava o fenômeno Chico Xavier - , Otília Diogo, que trabalhava em "centros espíritas" de Uberaba e Andradas, também no interior mineiro, era desmascarada por uma reportagem investigativa, feita por Luiz Antônio Luz e Carlos Piccino.

As fraudes eram analisadas e investigadas há tempos, mas só em 1970 foram colhidas provas das mesmas, e, uma vez publicada a reportagem, partidários de Otília e Chico Xavier, indignados, lançavam matérias pagas para serem publicadas em outros jornais e revistas fazendo acusações indevidas aos dois jornalistas e outros envolvidos, entre eles o renomado Mário de Moraes.

Os diversos jornalistas que trabalharam na averiguação das fraudes chegaram mesmo a ser manipulados por "espíritas" engajados com as "materializações" ou delas simpatizantes na tentativa de serem despistados e não puderem conhecer as provas das irregularidades cometidas.

No entanto, a habilidade dos jornalistas permitiu outras formas de encontrar as provas e elas acabaram sendo colhidas. Uma mala de viagem, observada por um cirurgião que fez plásticas no rosto de Otília, foi encontrada e causou muita suspeita. Nela foram encontrados, depois, objetos usados nas fraudes, como a barba postiça do "dr. Alberto" e a roupa da "irmã Josefa".

Foi chamada uma atriz, Maria Viana, para reconstituição das fraudes de Otília Diogo, que incluíram até o cálculo do ilusionismo, quando o suposto espírito atravessava a grade de uma cela onde ela aparecia, e a habilidade com que ela trocava de roupa para fazer suas encenações.

A repercussão foi negativa e Otília teve que fugir para o interior paulista, para não ser presa por charlatanismo. Restou aos líderes "espíritas" admitir toda responsabilidade para ela. Chico Xavier, cúmplice das fraudes, saiu ileso, a ponto de, no ano seguinte, ser entrevistado no Pinga Fogo da TV Tupi de São Paulo, dos mesmos donos da revista O Cruzeiro, os Diários Associados.

No entanto, existem provas de que Chico Xavier apoiou com entusiasmo as fraudes de materialização. Assinou atestados, acompanhou os bastidores, conversava com os fraudadores animadamente.

Sim, o Chico de "palavras amorosas" que "ficava muito triste" quando se fazia acusações contra ele. O Chico das "palavras de amor" que os incautos compartilham nas mídias sociais. É o "amor" usado como desculpa para se permitir tantas mentiras, erros e fraudes propositalmente cometidos mas que precisam ser impunes sob o pretexto do "perdão"...

segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

Enviamos carta para NUPES alertando sobre pesquisa a respeito de Chico Xavier


Numa tentativa de tentar reverter o desfecho da pesquisa sobre Chico Xavier, mandamos uma carta para o NUPES (Núcleo de Pesquisas em Espiritualidade e Saúde) da Universidade Federal de Juiz de Fora (MG), dirigida a toda a equipe, não apenas ao psiquiatra Alexandre Moreira Almeida (foto acima), alertando sobre falhas na metodologia utilizada.

Entendemos que a pesquisa, que enfoca treze cartas atribuídas ao espírito de Jair Presente, e que ao nosso entender são de veracidade bastante duvidosa, se preocupou apenas em colher semelhanças e dados que coincidissem com referenciais da vida do jovem falecido. Só que uma única diferença que contradizesse mesmo as informações menos óbvias põe por terra a tese de veracidade.

E isso não vem de Quevedos, Tristões, Edirs ou de qualquer grupo opositor católico ou protestante. Essa constatação vem do próprio Allan Kardec, que havia dito que, entre muitas informações acertadas, se houver uma que causasse uma séria contradição, a veracidade é rejeitada, por mais que possam haver semelhanças bastante sutis.

Daí que mandamos, ontem, para o formulário de mensagens do NUPES, para que a mensagem seja pesquisada e estudada. Esperemos que os acadêmicos não se sintam tentados pela sedutora imagem religiosa de Chico Xavier e não transformem o núcleo de pesquisas num sub-escritório da FEB, cabendo tão somente pesquisar e obter o resultado mais lógico possível.

Segue a missiva, lembrando que as mensagens tidas como de autoria do espírito Jair Presente, usadas para comparação, já foram reproduzidas aqui:

"(...), 28 de dezembro de 2014.


Prezados acadêmicos do NUPES / UFJF


   Antes de mais nada, prefiro aqui não revelar minha identidade, por estar lançando uma tese que ainda causa intensa polêmica e não quero me comprometer com as repercussões e efeitos que esta carta poderá causar adiante. 
    Lendo as reportagens do Universo On Line e de O Globo sobre as pesquisas em torno do caso Jair Presente / Chico Xavier, fiquei estarrecido com os rumos tomados pelo trabalho acadêmico, depois que eu fiz pesquisas na Internet a respeito do assunto.
   Em primeiro lugar, mesmo quando os pesquisadores adotaram critérios rígidos, ou pelo menos é o que parece ser em tese, observei grave irregularidade que, com toda a minha pesquisa cuidadosa, levam para desmentir a veracidade da autoria espiritual de Jair Presente, o jovem que havia falecido há 40 anos.
    Observei que os referidos pesquisadores se preocuparam unicamente com as semelhanças entre as mensagens atribuídas ao espírito de Jair e aspectos pessoais apresentados em sua breve vida. Só que não se preocuparam com a ocorrência de diferenças que destoassem do suposto espírito e do Jair que viveu junto a seus familiares, colegas e amigos.
   É como se, analisando um boneco de cera, procurasse se verificar até que ponto a semelhança pode se tornar perfeita em seus mínimos detalhes de forma que o boneco seja o próprio homem que o representa.
   O que observei, só tomando como amostra dois dos treze textos atribuídos a Jair, é uma série de equívocos apresentados nas duas obras, o que indica dúvida da veracidade autoral das mesmas, através de inúmeros questionamentos a serem apontados a seguir. As duas cartas aparecem, aqui, após o fim desta carta.
   As missivas escolhidas datam de 15 de março de 1974, a primeira que, segundo se diz, Jair teria enviado para Chico Xavier, pouco mais de um mês após o falecimento do jovem, e a de 25 de agosto do mesmo ano, cerca de cinco anos depois do suposto primeiro contato. As contradições entre uma carta e outra são aberrantes.
   Começando com a primeira carta, de 15 de março, ela se assemelha aos mesmos apelos sentimentais de outras mensagens atribuídas a jovens mortos divulgadas por Chico Xavier. É o mesmo enredo: jovem sofredor que pede orações para sua família, que descreve sua dor depois da tragédia repentina e o posterior apelo religioso que de uma forma ou de outra é expresso na mensagem.
    A mensagem é extremamente sentimental e exageradamente religiosa, dentro de um mesmo padrão de mensagens “espirituais” que comumente se conhece e do qual muitos estão acostumados não porque apresentam necessariamente traços pessoais de cada falecido – embora, em tese, sejam apontadas “semelhanças” entre as “mensagens do além” e o que cada falecido fez ou representou em vida - , mas porque evocam uma religiosidade que conforta as pessoas, sobretudo familiares.
   Mas se a primeira mensagem revela aquilo que eu defino como “panfletarismo religioso”, uma das mensagens posteriores, que aqui reproduzo e data de 25 de agosto, surpreende pela disparidade de linguagem, num tom diferente demais mesmo quando se pode admitir uma mudança de comportamento, e isso num prazo de apenas cinco meses, menos de meio ano e levando em conta que o mundo espiritual, considerado atemporal, viveria esse período como se fosse uma questão de poucos minutos.
   Esta outra mensagem torna-se aberrante, pelo excesso de gírias e pelo texto nervoso, o extremo oposto da outra carta. Uma linguagem alucinada e que, portanto, de outro extremo destoa da personalidade do rapaz, lembrando a linguagem de um hippie paranoico, de alguém que havia tomado LSD e viveu a ressaca da “viagem alucinógena”.
   As duas mensagens, portanto, apresentam irregularidades terríveis que contestam a veracidade das mesmas, e posso sistematizar os questionamentos apresentados da seguinte maneira, considerando as amostras das cartas de 15.03.1974 e 25.08.1974:

1) A primeira mensagem mostra um tom exageradamente religioso, maior do que normalmente se esperaria de jovens mortais, mas que dá uma falsa impressão de veracidade por se encaixar no hábito de religiosidade das famílias, que se sentem tranquilizadas porque seu suposto ente querido aparece apresentando “muita religiosidade”, num discurso que seduz pela retórica de “bondade” e “devoção” ante momentos de sofrimento.

2) A mensagem posterior usada para comparação mostra uma linguagem nervosa e excessivamente coloquial, em claro contraste com a anterior e que se torna aberrante ao se considerar que uma pessoa não tende a ter mudanças bruscas num prazo de cinco meses, num contexto desses. O tom da mensagem lembra a de alguém que sofreu ressaca após uma “experiência” com LSD, com um tom de pânico que, no contexto da mensagem, chega ao nível da caricatura, pelo excesso de gírias e por uma linguagem grosseiramente parecida com o vocabulário hippie, tipo juvenil em moda naquela época (1974).

3) Não existe um contexto que possa justificar a veracidade da autoria de Jair Presente através destas duas amostras, que, comparadas entre si, revelam uma inexplicável mudança de comportamento, excessiva demais para que pudesse ser explicada de maneira coerente. Nota-se até um aparente retrocesso comportamental da mensagem mais antiga para a posterior, não bastasse o caráter falso de cada uma delas, a primeira com exagerada religiosidade – improcedente para o contexto de vida dos jovens falecidos, mas confortável para o padrão emotivo de seus familiares - , a segunda com um nervosismo e um coloquialismo exagerado que beiram à caricatura que mais sugere um hippie tomado de pânico.

   Quanto aos critérios usados para explicar a “provável veracidade” da suposta psicografia por Francisco Cândido Xavier, deve-se observar que, no plano espiritual, não há segredos, e o fato do suposto espírito de Jair Presente mostrar traços pessoais que corresponderam ao falecido não é garantia de que ele tenha se manifestado, se considerarmos a tese de que a mediunidade aconteceu, o que me parece duvidoso.
    Supondo, todavia, que a mediunidade realmente ocorreu, pode haver indícios de que outros espíritos teriam se passado por Jair Presente e ditado tais informações. É bom lembrar que não se deve se ater apenas aos aspectos semelhantes, porque a menor divergência pode eliminar qualquer veracidade de autoria espiritual, por mais que seja identificado um maior número de semelhanças.
   Porém, tudo indica que a mediunidade não teria ocorrido, já que existem indícios de que Chico teria colaboradores que, seja em entrevistas ou mesmo em conversas informais, teria colhido informações particulares dos entes falecidos, sendo também possível uma coincidência de compreensão de aspectos “pouco conhecidos”, trazidos pela intuição.
   A tese é considerada “absurda” e “inconcebível” para os seguidores e simpatizantes de Chico Xavier. No entanto, observando um livro favorável a Chico, Testemunhos de Chico Xavier, de Suely Caldas Schubert, publicado pela FEB, o próprio Chico, em carta ao então presidente da Federação Espírita Brasileira, Antônio Wantuil de Freitas, deixou revelar outra tese “inconcebível”, a de que o livro Parnaso de Além-Túmulo, supostamente de poemas escritos por autores já mortos, teria sido concebido por uma equipe de editores, acusação feita pelo famoso escritor Alceu Amoroso Lima, pensador católico.
   Pois Chico Xavier teria escrito a carta para Wantuil com as seguintes palavras, que denunciam claramente a colaboração de uma equipe editorial que teria moldado as estranhas mudanças nas seis edições do livro poético, feitas em duas décadas e mais três anos. Diz o trecho:
"Grato pelos teus apontamentos alusivos ao “Parnaso” para a próxima edição. Faltam-me competência e possibilidade para cooperar numa revisão meticulosa, motivo pelo qual o teu propósito de fazer esse trabalho com a colaboração do nosso estimado Dr. Porto Carreiro é uma iniciativa feliz. Na ocasião em que o serviço estiver pronto, se puderes me proporcionar a “vista ligeira” de um volume corrigido, ficarei muito contente (...)". (In: SCHUBERT, Suely Caldas. Testemunhos de Chico Xavier. Rio de Janeiro: Editora da FEB, 2010).
   O livro poético é um tema que não cabe discutirmos minuciosamente aqui, mas eu citei o trecho para mostrar que uma tese “absurda” e “inconcebível” relacionada a Chico Xavier ocorre, e volta e meia mesmo seus defensores mais extremos acabam, por acidente, mostrando.
   Chico é denunciado, em vários sítios da Internet, como plagiador de livros, autor de mensagens apócrifas e apropriador indébito de pessoas precocemente falecidas e personalidades de reconhecida popularidade, como se observa no caso da jovem mineira Irma de Castro (sob o consentimento e a boa-fé do deslumbrado e saudoso viúvo), a Meimei, da poetisa potiguar Auta de Souza e do escritor maranhense Humberto de Campos. No caso de Humberto, houve um processo judicial movido por seus familiares contra Chico Xavier e a FEB, em 1944, que gerou ampla cobertura na imprensa, mas os padrões jurídicos da época não compreenderam a questão e o processo resultou num empate que favoreceu Chico, como nos 0 X 0 que somam pontos para determinados times esportivos.
   Chico também teria participado de fraudes de materialização, processos grotescos em que pessoas eram cobertas de roupas brancas – em boa parte das vezes, com grotescos recortes ou fotocópias de fotos de pessoas falecidas coladas na cabeça encapuzada - ou eram fotografadas com filetes de gaze ou de algodão colocados na boca. Em outros casos, havia também travesseirinhos em que as fotos eram coladas e nos quais eram ligados também filetes de gaze e algodão forjando supostos braços em formação.
   No auge dessas práticas, uma suposta médium, Otília Diogo, que se passava por supostas materializações da Irmã Josefa e do Dr. Alberto Veloso, com a clara participação de Chico Xavier – que em várias fotos de um livro apologista (que não denunciou a fraude de Otília), divulgadas por fontes pró-Chico, parecia estar a par de todo o processo - , foi desmascarada por uma reportagem de O Cruzeiro em 1970, que conseguiu localizar uma mala com os disfarces de Otília, como o véu da “Irmã Josefa” e a barba do “Dr. Veloso”.
   São casos ligeiros sobre algumas das irregularidades relacionadas a Chico Xavier, só para chamar a atenção de vocês o que está por trás de um mito relacionado a estereótipos agradáveis referentes à velhice, humildade e bondade. E que reforçam as dúvidas sobre suas atividades.
   O que se quer apresentar, a seguir, são os referidos textos atribuídos a Jair Presente, dotados de aspectos aberrantes em que se pede que seja feito um questionamento mais cauteloso. Deve-se observar que semelhanças não garantem veracidade, se uma única divergência apresentar contradição. O próprio Allan Kardec alertava sobre isso, quando um único equívoco pode rejeitar a veracidade de algum fenômeno ou mensagem, por mais semelhanças que existam e por mais engenhosas que elas sejam.
   Faltou isso no método de pesquisa que o NUPES, em parceria com a USP, realizou, em que pese o aparente rigor da metodologia. Não bastam apenas pesquisar minuciosamente os documentos, confrontá-los em busca de semelhanças, mas buscar divergências e contradições. Ao que parece, a pesquisa se limitou a pesquisar as diferenças genéricas, sem verificar os pormenores que trazem sérias contradições e comprometem seriamente a tese de veracidade.
   Espera-se que seja feita maior cautela na pesquisa dos trabalhos, e que se elimine o risco do trabalho se comprometer numa parcialidade movida pela religião. Afinal, antes que um trabalho se destine a servir movimentos religiosos, ele deveria servir-se à sociedade, ainda que não trabalhe necessariamente para agradar as perspectivas deste ou daquele grupo religioso.
   Encerro esta carta trazendo então as amostras do acervo supostamente atribuído a Jair Presente, do qual tudo indica que não foi de sua autoria.
   Atenciosamente,

Senhor A."

domingo, 28 de dezembro de 2014

Tese da Universidade de Juiz de Fora tende a ter resultado equivocado

JAIR PRESENTE - O JOVEM, FALECIDO EM 1974, É O FOCO DE ESTUDO UNIVERSITÁRIO RECENTE.

A recente notícia de um estudo universitário realizado pelo Núcleo de Pesquisas em Espiritualidade e Saúde (NUPES) da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), em parceria com o Departamento de Psiquiatria da Universidade de São Paulo (USP) a partir de projetos de pós-graduação de Alexandre Caroli Rocha e Denise Paraná, caminha para um resultado completamente errado.

Mesmo tendo adotado uma metodologia até certo ponto rigorosa, com depoimentos detalhados de familiares e amigos, ampla pesquisa de documentação e até de escritos pessoais do falecido, além de levantamento em cartórios, a tese, voltada para suposta psicografia de Francisco Cândido Xavier, tem tudo para chegar a uma conclusão nada acertada e favorável ao anti-médium mineiro.

Isso porque a metodologia apenas investiga dados que identificassem com o perfil do jovem falecido, nascido em Campinas em 10 de novembro de 1949, filho de José Presente e Josefina Basso Presente, e falecido afogado numa praia da mesma cidade, em 03 de fevereiro de 1974.

O indício de suposta veracidade, na visão dos pesquisadores, se apoiaria em informações não genéricas, privativas de sua família ou tidas como de seu desconhecimento, que Chico Xavier aparentemente não seria capaz de colher previamente, embora muito se diga de seguidores de Xavier se aproveitarem das conversas com os clientes para colher informações.

Só que mostramos o quanto a pesquisa tende a um resultado equivocado, sem a comparação crítica e questionadora das cartas apresentadas. Treze cartas, entre mensagens e poemas, divulgadas por Chico Xavier, são tidas como de autoria de Jair Presente. Delas, duas amostras mostram o gritante contraste de uma com a outra, num espaço de apenas cinco meses.

Não precisamos pesquisar todas as cartas. Colhemos duas amostras, que revelam a grosseira diferença de linguagem de uma com a outra, e isso em cinco meses, muito pouco tempo para que tais diferenças se tornassem evidentes, e ainda assim uma diferença exagerada, mesmo considerando que a personalidade de alguém possa sofrer grandes mudanças.

Uma carta, a primeira, foi divulgada em 15 de março de 1974, portanto, pouco mais de um mês do falecimento do rapaz. A segunda - evidentemente não a segunda da série, mas a de nossa amostra - data de 25 de agosto do mesmo ano, portanto, com menos de meio ano de publicação em relação a outra mensagem.

Na primeira amostra, nota-se o habitual tom de panfletarismo religioso típico das mensagens supostamente espirituais. Há, nela, o estilo caraterístico da imaginação pessoal de Chico Xavier, com todo o sentimentalismo melancólico que se conhece em seus textos.

Já a segunda amostra choca pela linguagem excessivamente coloquial e pelo discurso nervoso, parecendo de alguém que havia tomado LSD e foi tomado de efeitos colaterais do referido ácido, o ácido lisérgico. Consta-se que a linguagem, com excesso de gírias, teria sido inspirada no vocabulário dos hippies, que estavam muito em moda no Brasil.

Vamos às duas amostras, e a nossa conclusão a respeito da veracidade da autoria de Jair Presente, na suposta psicografia de Chico Xavier, acrescentando que nos faltou verificar os manuscritos dessa mensagem dita espiritual.

PRIMEIRA MENSAGEM ATRIBUÍDA A JAIR PRESENTE, APÓS SEU FALECIMENTO

Data: 15 de março de 1974.

"Meu pai, minha mãe, minha querida Sueli, peço-lhes calma, coragem.

Não estou em situação infeliz, mas sofro muito com a atitude de casa. Auxiliem-me. É tudo, por agora, o que lhes posso dizer. Tenho a mente nublada. Consigo entender muito pouco aquilo que se passa em torno de mim. As lágrimas dos meus queridos me prendem.

Que há, meu Deus?
Não pensem que desapareci para sempre. Estarei, porém, com vocês na condição em que estiverem comigo.

Fortes, me fortalecerão. Desanimados, me farão esmorecer.
É muita coisa para observar, entretanto não posso ainda. Creio apenas que perder o corpo mais pesado não é desvencilhar-se do peso de nossas emoções e pensamentos, quando nossos pensamentos e emoções jazem nas sombras da angústia.

Eu encontrei muito amparo, mas a não ser o meu avô Basso(1), a quem me ligo pelo coração, não tenho ainda memória para funcionar aqui; minha faculdade de lembrar está com vocês, assim à maneira de um balão escravizado. Ajudem-me. Preciso ver e ouvir aqui para retomar-me como sou.

As vozes de casa chegam ao meu coração e, como se continuássemos juntos, vejo-os no quarto, guardando-me as lembranças como se devesse chegar a qualquer instante.

E o meu pensamento não sai de onde me prendem. Agradeço, sim, o amor em suas lágrimas. Agradeço o carinho em suas preces, mas venho pedir-lhes para viverem. Viverem! E viverem felizes, porque assim também serei feliz.

Esqueçam o que sucedeu, ninguém me prejudicou, ninguém teve culpa.

Mal sabia eu que um passeio domingueiro era o fim da resistência física.

O coração parou, ao modo de um motor de que não se descobre imediatamente o defeito.

Sou eu quem deu tanto trabalho aos amigos. Notei quando me chamavam, quando me abraçavam, massageavam e me faziam quase respirar sem conseguir.

Agradeço por tudo. Depois foi o sono, um sono profundo, do qual acordei para chorar com o pranto de meus pais e de meus afetos mais queridos.

Sueli, acalme-se e auxilie os pais queridos.
Nada de lamentações e reclamações.

Deixei o corpo num domingo sem extravagâncias quaisquer.
Há quem pense em drogas, quando se deixa a vida física assim qual me sucedeu. Mas não havia drogas, nem abuso da véspera. Estávamos sóbrios e brincávamos à maneira de pássaros descuidados.

Em qualquer lugar, que me achasse, a queda de forças seria a mesma.

Estou saudoso de tudo, dos familiares queridos, dos companheiros, dos estudos e das aulas; entretanto espero sarar e refazer-me. Para isso você, meu querido pai, e você, querida mãezinha, são as alavancas de que preciso para me levantar.

Aqui comigo estão o meu avô Basso e um coração de benfeitora a quem chamo Irmã Elvira(2). Estou bem, mas é preciso melhorar.
Encaremos a vida como deve ser a vida perante Deus e esperemos o futuro melhor.

Creiam que estou fazendo muita força para não acovardar-me.
Não posso aumentar-lhes os sofrimentos.

Agora, é o momento de pensarmos na fé, na fé viva, que nos ergue o pensamento para a Vida Maior. Abençoem-me e ajudem-me.
Lembrem-me estudando e não morto, porque a vida não admite a morte. Por hoje nada mais consigo escrever.

A garganta, como se eu fosse falar, está constrangida, e as lágrimas estão contidas a ponto de rebentar. Quero confiar em Deus e em vocês e por isso termino com um abraço, deixando aqui a vocês aquele beijo de todos os dias, rogando a Deus para que nos fortaleça e nos abençoe.

Jair Presente (sic)"

MENSAGEM ATRIBUÍDA A JAIR PRESENTE

Data: 25 de agosto de 1974

"Oi, Gente! Vocês aí, vocês mesmo, entocados nos bancos. Papai, minha mãe, Sueli, Carlos, Sérgio, Wilson e conexos.

Não coloquem a imagem desta mensagem no gibi de ensinar; isso é conversa de casa, fora da prensa de imprensa. Se eu não garanto já o jamegão aqui deste modo, vocês estarão aí de olho cumprido e de espírito jururu. É duro isto, mas não fiquem matutando, encucados na ideia de que vou continuar assim; gíria não dá para nós, os que varamos o rio da mudança. Pedi favor para escrever assim, só para mostrar prá vocês que estou vivo, vivinho mesmo.

E quero dizer a meu pai que não fique de pensamento vidrado nas águas; se dei uma de peixe foi para nadar melhor. Fico abilolado quando meu pai começa a embarafustar na lembrança de Praia Azul. Papai tenha paciência. Voltei como vim. Não sabemos como é isso, não. Vamos deixar isso prá lá. Deus sabe tudo e em nossa moringa cabe somente alguma coisa.      Estou bem, estou melhorando, mas vou largar esse negócio de palavras giradas. Já saí da bananosa, começo a compreender que preciso educar meus impulsos. Educar impulsos é qualquer coisa de progresso. 

Não me lembro de haver dito isso, apesar dos livrocas que andei consultando. Isso quer dizer que já não me vejo com trutas que largam os deveres de mão para alfinetar o tempo e acabar com as horas.
Vocês aí!...Carlos que tu tás pensando? Não fique parado, não, depois de saber que o negócio não termina ali no meio das estátuas. Olhe rapaz, os dias vão correndo... Quando puder acompanhe minha mãe para dar serviço no serviço do bem.    Aqueles amizades nas panelas de sopa estão certos e os caras que somos nós, quando longe deles, é que ficamos nas risadas do já era. Trabalhar, meu amigo, trabalhar pelos outros.

Sempre acreditei que mendicância seria preguiça, conversa mole, mas o problema é diferente. Se temos de mudar qualquer coisa, temos de começar mudando a nós mesmos. E só existe uma transformação que vale a pena: ajudar os que precisam mais do que nós para que larguem de precisar.

Você e Sérgio, venham também.

Wilson anda arrepiado num medo fora de série, mas já veio. Está batucando sem passar por cima da verdade. O moço está querendo mesmo transar diferente. Muitas vezes ele me sente perfeitinho junto dele, mas e a paúra? Ele diz que deseja me ver, mas se eu pintar mesmo diante de vocês, já sei que sairão pirandelando por aí. Não conte com isso, não. Essa de parecer fantasma já era mesmo.
Só aqueles caras gamados com casa e comida é que ficam aí, às vezes, até procurando esquecer tudo com umas e outras. Mas vocês já sabem. Essa de pinga não cola.

Gostamos da vida e fomos irmãos de alegria e de esperança; no entanto, nada sabemos de trampar com essa ou aquela prisa. Fomos e somos rapazes decentes e porque largamos cabelos nas caras para não ficarmos caretas, isso não é motivo para sermos espíritos adoidados, querendo o que não se deve querer.

Wilson, tu tás abilolado a toa. Não pense que tudo aqui seja concedido de mão beijada. Prato feito acabou. Mentira não vale. Toda conquista pede tempo e suor, creio que mais suor do que tempo.
Mediunidade é transmissão. Tarei na onda certa? Creio que sim, embora não tenha as palavras para explicar. Vocês agora aí tão interessados em comunicação, saibam disto: cada um dá o que tem. Isto pode ser de coisa passada, mas é muito válido.

A gente aproxima do médium e quer falar, e aí temos de güentar o assunto, porque só falamos em dupla; o médium quando não tem muito exercício nos passa prá trás e fala na frente. Vocês ficam parados na fachada e esquecem a faixa em que nos achamos. Por isso, Wilson, é que nestes casos que hoje vemos é melhor que a cuca não fique botando banca. É hora do coração conversar. Não quero que você esteja santo, mas também não desejo que você fique esperto demais. Nem anjo, nem gato. Fique você mesmo e observe que a crista do problema é auxiliar outros para sermos auxiliados. Hoje vivo partindo para essas novas atitudes que me façam mais útil. Viver bem para encontrar o bem e ser melhor.

Se a gente morresse mesmo, era só seguir entre a preguiça e a rede; no entanto, a morte é uma passagem que parece aquela porta dos contos de fadas. Vocês abraçam a gente movimentando gritos e lágrimas e o cara não consegue falar bolacha. Estamos encantados pela bruxa que não se vê, mas posso dizer que é uma bruxa inofensiva, porque nem a vemos de leve. A morte chega e decerto bate aquela varinha em nossa cabeça; a gente dorme, acorda com vocês chamando e chamando, e aos poucos saímos do barro ou da pedra. O negócio é isso.

Quero que ocês todos fiquem aí até que o mofo espante vocês do saco de pele e ossos; peço a Deus que todos se arrastem de velhos, mas eu não sei se isso vai acontecer. De qualquer modo preparem-se, para vir algum dia. E saibam que só temos aqui o que damos e só sabemos o que colocamos por dentro de nós.

Em negócio de sexy, fiquem acesos para pensar melhor. Não brinquem com fogo, que o fogo nesse assunto queima muito mais do lado de cá.

O que vocês prometem cumpram.

E o que fizerem no campo dos tratos saibam tratar, porque o amor é uma luz que não aparece em querosene de papagaiadas de conversa furada.

Estão abrindo a boca perto de mim, creio que os amigos estão cansados. Já escrevi muito. E se continuasse, o papel necessário, não está apontado no gibi. Vocês não se impressionem com o que digo. Vivam corretos e tarão certos. Não dou para ensinar porque não sou santo. Desculpem.
Mamãe e papai, concedam aí uma bênçãos ao filho agradecido.

Sueli, acertemos tudo no coração para fazer o bem. 

Vocês, meus cupinchas, não fiquem rindo, não. Coloquemos a cuca para jambrar e busquemos o que estiver certo; Carlos, Sérgio, Wilson e nossa amiga, favoreçam este espírito de rapaz supostamente afogado com os pensamentos bons, com o que puderem dar aí para mim; vou melhorar, estou caminhando e caminhando para frente.

Hoje, escrevi adoidadamente, mas voltarei com siso e juízo. Não posso empregar palavras mais fortes neste tchau e é preciso acabar esta carta antes da matina. 

Recebam o maior abraço da paróquia.

Falei mas não sei se disse.

Jair (sic)"

NOSSA CONCLUSÃO

Temos que admitir, só a partir dessa observação, que Jair Presente NÃO escreveu tais mensagens, uma vez que não poderia apresentar contradições tão gritantes de uma mensagem e outra, nem mudanças de comportamento excessivamente bruscas num espaço de cinco meses.

As coincidências de dados verificadas nas supostas mensagens espirituais e na finada vida pessoal do jovem não indicam em si veracidade, e pode mesmo ser que, através de entrevistas ou mesmo por conversas informais, os clientes de Chico Xavier teriam fornecido informações sutis que tornaram o pastiche "mediúnico" bastante sofisticado.

É certo que esta tese é considerada "absurda" pelos seguidores de Xavier, mas o próprio Chico, em cartas ao então presidente da FEB, Antônio Wantuil de Freitas, divulgadas fartamente por Suely Caldas Schubert, também revelaram que Parnaso do Além-Túmulo foi escrito por uma equipe de editores, outra tese também considerada "absurda".

Infelizmente, não temos visibilidade para divulgarmos esse parecer no sentido de contestar, diante do grande público e da comunidade acadêmica, a veracidade da mensagem, não podendo, portanto, impedir que prevaleça a tese favorável a Chico Xavier. Dessa feita, Jair Presente acaba sendo creditado como autor espiritual de mensagens das quais ele nem de longe cogitou escrever.

sábado, 27 de dezembro de 2014

Mais dessemelhanças entre Humberto de Campos real e o suposto espírito


Mostramos aqui mais dessemelhanças entre o Humberto de Campos real e o suposto espírito dos livros trazidos a público por Chico Xavier, sob as bênçãos da FEB e não da Livraria José Olympio Editora, dentro daquela postura hesitante, temerosa e supostamente despretensiosa, típica do anti-médium mineiro.

Claro que todo pastiche tenta parecer com o original e quem for ver os dois textos abaixo de forma apressada, vai pensar que se tratam do mesmo autor e do mesmo estilo de escrita. Mas, sendo um leitor mais atento, um observador literário mais cauteloso e um rigoroso observador de estilos, verá que as autorias, a real e a supostamente espiritual, divergem seriamente uma da outra.

O texto de Humberto de Campos era claro, fluente mas elegante, dotado de senso de humor e unindo erudição e linguagem informal. Já o texto do suposto espírito é melancólico, prolixo e profundamente igrejista, nada tendo a ver com o estilo do escritor maranhense.

Vamos mostrar, para comparação, dois trechos de obras para assim notar o quanto o estilo do suposto espírito de Humberto de Campos nada tem a ver com a do escritor maranhense. As semelhanças superficiais se diminuem a cada leitura, quando aparecem irregularidades que fazem o texto "espiritual" destoar do estilo original do autor a que é atribuído.

Os exemplos em questão são o capítulo "Pedra do Sal", que Humberto escreveu para o livro Memórias, de 1933, um ano antes de seu falecimento, e o fragmento do capítulo "De um casarão do outro mundo", do livro Crônicas de Além-Túmulo, de 1937, que Chico Xavier lançou atribuindo a autoria espiritual ao escritor maranhense.

Com uma leitura bastante atenta e criteriosa, nota-se a disparidade entre um e outro texto, que a primeira impressão pode não constatar, já que, ainda presa numa leitura superficial, iria creditar os estilos dos dois textos como idênticos, quando na verdade eles não o são.

Pedimos paciência ao leitor interessado para ler os dois textos se despindo dos véus da fé cega e complacente.

PEDRA DO SAL

Humberto de Campos - Memórias - 1933

Com a presença dos meus tios maternos ainda em Parnaíba, em 1895, fomos passar alguns meses na Pedra do Sal, ponto desabrigado e rochoso do estreito litoral piauiense em que fica situado o farol desse nome, e que figura, nas cartas marítimas, sob o nome de Farol da Amarração. Sobre uma pedra, que desafia o mar, levantava-se a torre de ferro, cuja ascensão era feita por uma escada interior, em espiral. Sobre outra pedra, coberta de telha, e caiada, a casa do faroleiro, cuja cozinha era lavada, às vezes, pelas ondas mais fortes. Em frente ao farol, o oceano largo e vário, raramente riscado por um navio costeiro, que se arrastava pela superfície verde como uma lagarta escura e insignificante sobre uma folha de bananeira. À direita e à esquerda as linhas de rochedos altos, que orlavam a praia arenosa. E, para trás de tudo isso, as dunas alvas, ligeiramente vestidas de cajueiros, e em cujas depressões se agasalhavam pequenas casas de palha, humildes habitações de pescadores.

Chegamos aí ao anoitecer, a cavalo. Horas depois chegavam os cargueiros com a bagagem. Muitas famílias de Parnaíba tinham ido veranear ali naquele ano, de modo que nos foi impossível conseguir uma casa me­nos desconfortável. Aque meus tios haviam alugado devia ser coberta, ainda, de palmas de carnaúba, no dia seguinte: de modo que tivemos de nos contentar, por aquela noite, com uma esburacada em torno, a poucos metros do mar. Para podermos dormir, tivemos de amarrar lençóis nos grandes rombos abertos na palha, pelos quais entrava, assobiando como garotos e cortando como navalhas, o vento salitroso e inclemente. Obarulho do oceano, rugindo ao largo e estourando nas pedras, era, mesmo, tão profundo e alto, que se tornava necessário gritar para ser ouvido, a dois metros de distância.

Lembro-me, entretanto, que, nessa mesma noite, minha mãe nos tomou pela mão, a minha irmã e a mim, e saiu a passear pela praia. O oceano rolava e guinava, na sombra, atirando-nos ao rosto seu hálito úmido de gigante bêbado. E o vento gritava, gemia, repuxava-nos para trás as roupas e os cabelos, como se nos quisesse arrastar para longe. Minha mãe caminhava e cantava. Ela que sempre cantara baixinho, levantava, agora, a voz acima das vozes do mar e do vento. Canto de dor e de saudade. Grito de gaivota viúva pedindo ao oceano mergulhado na noite que lhe restitua o companheiro sepultado nas ondas. Lamento de mulher moça e solitária no mundo; gemido de mãe aflita, de andorinha do mar que se vê sozinha, e fraca, e desamparada, numa anfractuosidade de rochedo, cobrindo com as asas frágeis duas avezitas implumes. Vencendo o vento e o mar, a sua voz me chega ao ouvido, em dois versos que nele ficaram em toda a pureza de sua toada nostálgica e dolorida:

Com o sangue das minhas veias
Sete cartas te escrevi...

No dia seguinte, mudávamos para a casa que nos estava destinada. Era um albergue novo, de chão de barro batido, coberto e cercado de palha de carnaúba. Ficava longe do farol, mas dispunha, embora a alguma distância, de praia melhor para banho. Nessa praia, inteiramente aberta, existiam cavaletes mais altos do que um homem, os quais eram sumariamente cobertos de palha e serviam de barraca em que as senhoras mudavam a roupa. O vento era, porém, aí, tão rijo e permanente, que virava e revirava essas pequenas construções, fazendo-se mister ir buscá-las cada dia a grande distância, não obstante o seu volume e o seu peso. E esse vento, que arrastava barracas e assobiava e corria à noite como um louco em liberdade, era o mesmo que me aplicava nas pernas violentas surras de areia, fazendo-me invejar as mulheres de saia longa e os homens de calças compridas.

Situada na última trincheira de dunas, mais perto da várzea que se estendia para o interior do que do mar, a nossa casa possuía nos fundos, a três dezenas de metros, uma pequena lagoa em que viviam alguns peixes miúdos, característicos da água doce e parada. Armado de um caniço que trazia na ponta da linha de costura um anzol improvisado com um alfinete torcido, eu ia, todos os dias, a essa pescaria, voltando com alguns peixes achatados e negros a que davam, ali, a denominação de cará. Certo dia, porém, minha mãe me recomendou que não fosse à lagoa. Era Sexta-Feira Santa, dia consagrado ao jejum e à oração. Dia nublado, escuro, triste, como se o céu inteiro se tivesse coberto de um véu polvilhado de cinza. Uma das minhas virtudes era, no entanto, a desobediência. Ao ver que a família se achava entregue aos cuidados caseiros, tomei o caniço e corri para a lagoa. Alguns peixes beliscaram, mas não vieram. Os peixes sabem, parece, quando os meninos estão pescando sem a permissão dos pais, e não lhes dão o prazer de engolir a isca. Eu insisti, todavia. Se Deus não quisesse que o homem apanhasse o peixe não teria consentido que ele inventasse o anzol. Em determinado momento, porém, senti que vinha alguma cousa volumosa e pesada. Puxei a linha, aos poucos, desconfiado, e com cautela. De repente, emerge a presa. Olho e esfrio. Vinha no anzol uma botina velha!

É desnecessário dizer que abandonei botina, anzol, caniço, e até o meu chapéu de carnaúba, à margem da lagoa, e que desandei na carreira, apavorado, rumo de casa. Chamei minha mãe à parte, e contei-lhe o ocorrido, os olhos fora das órbitas. E ela:

– Eu não te disse? É castigo... E enchendo-me de terror:

– Quem pesca em lagoa Sexta-Feira Santa, o anzol só apanha sapato de defunto...

Situada perto da várzea, nossa casa era uma das primeiras do arraial, à entrada deste, e o caminho natural de quem vinha de Parnaíba. As pessoas que procediam da cidade, e que eram portadores de encomendas –- café, açúcar, cereais ou carne, pois que aí não havia nenhuma casa de comércio –, chegavam à Pedra do Sal já noite fechada. Mas a aproximação desses emissários, que haviam partido pela madrugada a vender o produto da sua pescaria, era anunciada de longe pelos téu-téus, o indiscreto quero-quero das coxilhas do Sul, o qual é, no norte, o guarda infatigável das várzeas adormecidas. Ao perceberem, com os seus olhos que varam a sombra, vulto de cavaleiro ou de peão, essas aves erguem em bando o seu voo, em gritaria assustada. E com uma precisão tal que, pelo grito delas, se sabia, em casa, em que várzea e a que distância vinha o viajante.

A maior curiosidade do lugarejo marítimo eram, entretanto, os seus rochedos. Havia pedras enormes, de feitios bizarros, de dez e mais metros de altura. Algumas constituíam, mesmo, a reprodução da fisionomia humana. E eu ainda me lembro de uma, grande e alta como uma casa, que possuía dois olhos, e nariz, e a boca imensa, rota em uma das extremidades. A onda vinha de longe, e atirava-se à cara do monstro. Ele bebia-a; engolia-a; mas vomitava-a de novo com asco e com estrondo, repelindo o resto pelo rasgão de pedra, que a água cavara durante séculos.

Na Pedra do Sal, vivi cerca de três meses, dos meus nove anos, sem saber, sequer, se existia, com as suas largas folhas, o livro do Destino. Olhava o oceano durante o dia, e escutava, à noite, gritar assustadora­mente os téu-téus da várzea. E encontrei, também, ali, a síntese da minha atividade no mundo.

Que tenho eu feito, em verdade, na vida, senão pescar sapato de defunto!

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DE UM CASARÃO DO OUTRO MUNDO

Francisco Cândido Xavier - Crônicas de Além-Túmulo - 1937

27 de março de 1935
Muitas vezes pensei que outras fossem as surpresas que aguardassem um morto, depois de entregar à terra os seus despojos.

Como um menino que vai pela primeira vez a uma feira de amostras, imaginava o conhecido chaveiro dos grandes palácios celestiais. Via S. Pedro de mãos enclavinhadas debaixo do queixo. Óculos de tartaruga, como os de Nilo Peçanha, assestados no nariz, percorrendo com as suas vistas sonolentas e cansadas os estudos técnicos, os relatórios, os mapas e livros imensos, enunciadores do movimento das almas que regressavam da Terra, como destacado amanuense de secretaria. Presumia-o um velhote bem conservado, igual aos senadores do tempo da monarquia no Brasil, cofiando os longos bigodes e os fios grisalhos da barba respeitável. Talvez que o bom apóstolo, desentulhando o baú de suas memórias, me contasse algo de novo: algumas anedotas a respeito de sua vida, segundo a versão popular; fatos do seu tempo de pescarias, certamente cheios das estroinices de rapazola. As jovens de Séforis e de Cafarnaum, na Galiléia, eram criaturas tentadoras com os seus lábios de romã amadurecida. S. Pedro por certo diria algo de suas aventuras, ocorridas, está claro, antes da sua conversão à doutrina do Nazareno.

Não encontrei, porém, o chaveiro do Céu. Nessa decepção, cheguei a supor que a região dos bem-aventurados deveria ficar encravada em alguma cordilheira de nuvens inacessíveis. Tratava-se, certamente, de um recanto de maravilhas, onde todos os lugares tomariam denominações religiosas, na sua mais alta expressão simbólica: Praça das Almas Benditas, Avenida das Potências Angélicas. No coração da cidade prodigiosa, em paços resplandecentes, Santa Cecília deveria tanger a sua harpa acompanhando o coro das onze mil virgens, cantando ao som de harmonias deliciosas para acalentar o sono das filhas de Aqueronte e da Noite, a fim de que não viessem, com as suas achas incandescentes e víboras malditas, perturbar a paz dos que ali esqueciam os sofrimentos, em repouso beatífico. De vez em quando se organizaram, nessa região maravilhosa, solenidades e festas comemorativas dos mais importantes acontecimentos da Igreja. Os papas desencarnados seriam os oficiantes das missas e Te-Deuns de grande gala, a que compareceriam todos os santos do calendário; S. Francisco Xavier, com o mesmo hábito esfarrapado com que andou pregando nas Índias; S. José, na sua indumentária de carpinteiro; S. Sebastião na sua armadura de soldado romano; Santa Clara, com seu perfil lindo e severo de madona, sustentada pelas mãos minúsculas e inquietas dos arcanjos, como rosas de carne loura. As almas bem conceituadas representariam, nas galerias deslumbrantes, os santos que a Igreja inventou para o seu hagiológio.

Mas... não me foi possível encontrar o Céu;

Julguei, então, que os espíritas estavam mais acertados em seus pareceres. Deveria reencontrar os que haviam abandonado as suas carcaças na Terra, continuando a mesma vida. Busquei relacionar-me com as falanges de brasileiros emigrados do outro mundo. Idealizei a sociedade antiga, os patrícios ilustres aí refugiados, imaginando encontrá-los em uma residência principesca como a do Marquês de Abrantes, instalada na antiga chácara de Dona Carlota, em Botafogo, onde recebiam a mais fina flor da sociedade carioca das últimas décadas do segundo reinado, cujas reuniões, compostas de fidalgos escravocratas da época, ofuscavam a simplicidade monacal dos Paços de S. Cristóvão.

E pensei de mim para comigo: Os rabinos do Sinédrio, que exararam a sentença condenatória de Jesus-Cristo, quererão saber as novidades de Hitler, na sua fúria contra os judeus. Os remanescentes do príncipe de Bismarck, que perderam a última guerra, desejariam saber qual a situação do negócios franco-alemães. Contaria aos israelitas a história da esterilização, e aos seguidores do ilustre filho de Schoenhausen as questões do plebiscito do Sarre. Cada bem-aventurado me viria fazer uma solicitação, às quais eu atenderia com as habilidades de um porta-novas acostumado aos prazeres maliciosos do boato.

Enganara-me, todavia. Ninguém de preocupava com a Terra, ou com as coisas da sua gente.

Tranqüilizem-se, contudo, os que ficaram, porque, se não encontrei o Padre Eterno com as suas longas barbas de neve, como se fossem feitas de paina alva e macia, segundo as gravuras católicas, não vi também o Diabo.

Logo que tomei conta de mim, conduziram-me a um solar confortável, como a Casa dos Bernardelli, na praia de Copacabana. Semelhante a uma abadia de frades na Estíria, espanta-me o seu aspecto imponente e grandioso. Procurei saber nos anais desse casarão do outro mundo as notícias relativas ao planeta terreno. Examinei os seus infólios. Nenhum relato havia a respeito dos santos da corte celestial, como eu os imaginava, nem alusões a Mefistófeles e ao Amaldiçoado. Ignorava-se a história do fruto proibido a condenação dos anjos rebelados, o decreto do dilúvio, as espantosas visões do evangelista no Apocalipse. As religiões estão na Terra muito prejudicadas pelo abuso dos símbolos. Poucos fatos relacionados com elas estavam naqueles documentos.

O nosso mundo é insignificante demais, pelo que pude observar na outra vida. Conforta-me, porém, haver descoberto alguns amigos velhos, entre muitas caras novas.

Encontrei o Emílio (*) radicalmente transformado. Contudo, às vezes, faz questão de aparecer-me de ventre rotundo e rosto bonacheirão, como recebia os amigos na Pascoal, para falar da vida alheia.

- “Ah! Filho- exclama sempre -, há momentos nos quais eu desejaria descer ao Rio, como o homem invisível de Wells, e dar muita paulada nos bandidos de nossa terra.”

E, na graça de quem, esvaziando copos, andou enchendo o tonel das Danaides, desfolha o caderno de suas anedotas mais recentes. 

A vida, entretanto, não é mais idêntica à da Terra. Novos hábitos. Novas preocupações e panoramas novos. A minha situação é a de um enfermo pobre que se visse de uma hora para outra em luxuosa estação de águas, com as despesas custeadas pelos amigos. Restabelecendo a saúde, estudo e medito. E meu coração, ao descerrar as folhas diferentes dos compêndios do infinito, pulsa como o do estudante novo.

Sinto-me novamente na infância. Calço os meus tamanquinhos, visto as minhas calças curtas, arranjo-m à pressa, com a má vontade dos garotos incorrigíveis, e vejo-me outra vez diante da Mestra Sinhá, que me olha com indulgência, através de sua tristeza de virgem desamada, e repito, apontando as letras na cartilha: _ A B C...A B C D E ...

Ah!! Meu Deus, estou aprendendo agora os luminosos alfabetos que os teus imensos escreveram com giz de ouro resplandecente os livros da Natureza. Faze-me novamente menino para compreender a lição que me ensina! Sei hoje, relendo os capítulos da tua glória, por que vicejam na Terra os cardos e os jasmineiros, os cedros e as ervas, por que vivem os bons e os maus, recebendo, numa atividade promíscua da tua casa.

Não trago do mundo, Senhor, nenhuma oferenda para a tua grandeza! Não possuo senão o coração, exausto de sentir e bater, como um vaso de iniqüidades. Mas, no dia em que te lembrares do mísero pecador que te contempla no teu doce mistério como lâmpada de luz eterna, em torno da qual bailam os sis como pirilampos acesos dentro da noite, fecha os teus olhos misericordiosos para as minhas fraquezas e deixa cair nesse vaso imundo uma raiz de açucenas. Então, Senhor, como já puseste lume nos meus olhos, que ainda choram, plantarás o lírio da paz no meu coração que ainda sofre e ainda ama. 

(*) Provavelmente Emílio de Menezes, escritor, membro da Academia Brasileira de Letras que, ao falecer, foi depois sucedido pelo amigo Humberto.

sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

Bezerra de Menezes e o "espiritismo" da República Velha

ILUSTRAÇÃO MITIFICADORA DO MÉDICO ADOLFO BEZERRA DE MENEZES, INSERIDO NUM CENÁRIO CÓSMICO.

Antes de Francisco Cândido Xavier, o "espiritismo" brasileiro trabalhou a mitificação do médico e político Adolfo Bezerra de Menezes, até hoje transformado num dos totens inabaláveis do chamado "movimento espírita" brasileiro.

A imagem que se tem do médico e deputado, que teria feito carreira no Segundo Império e se tornou um dos primeiros presidentes da Federação "Espírita" Brasileira, da qual participou também como um dos fundadores, é bastante glamourizada e fantasiosa.

É muito difícil obter relatos que mostrassem também os contras da carreira do dr. Adolfo. A busca do Google mostra apenas referências parciais, favoráveis ao médico, enquanto nos bastidores se observam informações que nem de longe foram investigadas a respeito do líder religioso que introduziu Jean-Baptiste Roustaing no imaginário brasileiro.

"Dr. Bezerra", como é carinhosamente conhecido pelos seus seguidores, foi cearense e viveu entre 1831 e 1900. Depois de falecer, tornou-se oficialmente um espírito a "sobreviver" desencarnado, virando uma espécie de "santo" do "movimento espírita" brasileiro.

Quase não se tem observações imparciais sobre ele. Tudo que chegou até nós, fora os relatos de descendentes de dissidentes espíritas, é de versões favoráveis a Bezerra de Menezes, em que são mais conhecidos relatos fantasiosos do que informações que contestassem seu perfeccionismo moral.

AFONSO ANGELI TORTEROLI - Um dos primeiros a reclamar o respeito às bases kardecianas.

Bezerra teve uma séria rivalidade com o italiano naturalizado brasileiro, o jornalista Afonso Angeli Torteroli. Este havia fundado o que poderia ser o embrião de uma instituição federal espírita, a Sociedade Espírita Deus, Cristo e Caridade, voltada a estudar a doutrina de Allan Kardec dentro da perspectiva original do pedagogo francês, de cunho científico.

Jogos de interesses deixaram Torteroli à margem, aos poucos diminuindo sua influência no nascente movimento espírita, enquanto os caminhos eram abertos à corrente de Jean-Baptiste Roustaing, o advogado francês que "adaptou" a Doutrina Espírita para os moldes religiosos e moralistas da Igreja Católica.

Houve uma polarização entre as correntes místico-religiosa, defendida por Bezerra, e científica, defendida por Torteroli, e prevaleceu a primeira, mais voltada aos interesses do nascente Espiritismo em moldar suas ideias para agradar a Igreja Católica, que havia sido hostil a essa crença.

Dessa feita, Bezerra, que originalmente era assumidamente católico, "catolicizou" o Espiritismo, se baseando nos ideais de Roustaing que durante anos foi entusiasmadamente defendido pela Federação "Espírita" Brasileira, até surgirem os movimentos dissidentes que denunciaram os exageros alucinados de Os Quatro Evangelhos, décadas após o falecimento de Bezerra.

Pouco se relata desses aspectos e o papel de Bezerra de Menezes é superestimado. Os relatos de dissidentes espíritas, depois de Torteroli, como Deolindo Amorim, Carlos Imbassahy (o pai) e José Herculano Pires, sobre os primórdios do "movimento espírita" da FEB foram subestimados e vagamente descritos pela historiografia original.

Segundo seus dissidentes, a figura "angelical" de Bezerra de Menezes, que se assemelha a de um "Papai Noel à brasileira", não passa de um mito construído pela FEB após seu falecimento e que continua valendo até hoje nos círculos "espíritas" brasileiros.

O lado sombrio de Bezerra é que ele era um político do tipo "fisiológico" - sem ideologia definida, mas eventualmente voltado à corrupção e ao jogo de interesses - , seu papel na campanha abolicionista, em que pese o lançamento de um livro, é minimizado pela História do Brasil e, como pessoa, o médico era temperamental e se irritava com muita facilidade.

Não há uma pesquisa isenta que pudesse falar desse lado, nem que pudesse investigar com detalhes a trajetória de Torteroli, jocosamente definido como "senhor T." por Canuto Abreu, biógrafo de Bezerra e membro da FEB.

O que se sabe é que, com Bezerra, o "espiritismo" brasileiro, em que pese as iniciais perseguições policiais aos seus cultos e à aparente rivalidade com a Igreja Católica, se adequou ao contexto da República Velha com seu jogo de interesses, seu conservadorismo moralista e as deturpações que transformaram o cientificismo de Allan Kardec em coisa muito bajulada e quase nunca estudada.

O "espiritismo" se encaixou nesse contexto em que o coronelismo, o voto de cabresto, o moralismo familiar, o fanatismo religioso, a pesada hierarquia social e a punitividade moral prevaleciam na sociedade brasileira.

O "espiritismo" só incomodava setores ortodoxos do Catolicismo dominantes na época, mas tão facilmente se adequou à religião, mas de forma quase heterodoxa, pois do Catolicismo aproveitou justamente vários aspectos medievais, como a glamourização do sofrimento humano, já trazida por Roustaing e, décadas depois popularizada por Chico Xavier.

A falta de dados imparciais sobre Bezerra, fora da visão glamourizada da FEB, é tanta que existem até relatos fantasiosos da vida espiritual do médico, descritos em palestras do anti-médium Divaldo Franco, que em muitos momentos usava falsetes como se estivesse incorporando o médico cearense.

O falsete foi constatado quando foram observadas irregularidades de timbre, linguagem e gestos das supostas psicofonias de Bezerra de Menezes por Divaldo Franco e por outro anti-médium baiano, José Medrado, em comparação registrada neste vídeo.

Dois relatos se referem, um, ao espírito de Bezerra transformado em caminhoneiro para transportar alimentos para a população carente por solicitação de Chico Xavier, e, outro, a ele se comunicando a policiais sobre a ocorrência de um estupro coletivo de uma jovem. Em ambos os relatos, Bezerra teria sido supostamente materializado.

Embora o "movimento espírita" anuncie como certeza absoluta que Bezerra permanece desencarnado, agindo como "espírito iluminado" a promover ações filantrópicas e a proteger os fiéis "espíritas" como se fosse um santo milagreiro - apesar do evidente não reconhecimento do Vaticano - , é duvidoso que Bezerra tenha realmente permanecido na órbita espiritual.

Consta-se que Bezerra teria, ao longo desses 114 anos, reencarnado pelo menos umas duas vezes, como identidades ignoradas, a primeira provavelmente cinco anos depois de falecido, vivendo até a velhice, a segunda, nos últimos 25 ou 30 anos.

Isso quer dizer que Bezerra de Menezes pode estar vivo e encarnado entre nós. E isso não é necessariamente bom: afinal, Bezerra teria muito que penar e resolver os seus defeitos devido à sua experiência como deturpador da Doutrina Espírita e político tendencioso que ele teria sido, e sobretudo quando seu passado foi dissimulado por uma imagem adocicada e glamourizada que hoje se conhece dele.

quinta-feira, 25 de dezembro de 2014

Chico e Wantuil escreveram texto atribuído a Humberto de Campos

EDIÇÃO QUE REÚNE DOIS LIVROS AUTOBIOGRÁFICOS DE HUMBERTO DE CAMPOS.

Uma pesquisa quanto ao texto atribuído a Humberto de Campos, divulgado em 15 de julho de 1944 e publicado no livro do advogado da FEB, Miguel Timponi, A Psicografia Ante os Tribunais, revelou que o texto não foi escrito pelo escritor maranhense, já que o mesmo escapava do estilo original do autor a que ele era atribuído.

Foi feita uma análise de discurso, confrontando estilos de linguagem, e apresentaremos aqui as provas de como o referido texto divulgado por Francisco Cândido Xavier, como uma suposta "resposta de Humberto de Campos" às polêmicas em torno de sua autoria, e o que surpreende é que o texto nada tem a ver com o estilo de Humberto em momento algum.

Por outro lado, o texto mostra estilos caraterísticos tanto do então presidente da Federação "Espírita" Brasileira, Antônio Wantuil de Freitas, de linguagem ao mesmo tempo burocrática, pseudo-científica e eventualmente agressiva, quanto de Chico Xavier, famoso por suas dóceis palavras de pregação religiosa e argumentações chorosas.

Procuramos aqui dar algumas amostras de como o texto atribuído a Humberto de Campos "espírito" não foi feito por ele, pelo conteúdo da mensagem. A isso, recorremos a amostras de uma obra que Humberto publicou em vida e fragmentos das escritas de Wantuil e Chico como forma de reforçar a nossa pesquisa.

Antes de recorrermos à análise do texto, vamos então às amostras. Primeiro, um capítulo do livro O Brasil Anedótico, que Humberto publicou em 1927. Segundo, um fragmento do livro Síntese de O Novo Testamento, que Wantuil lançou em 1949 sob o pseudônimo de Minimus (na época enigmático). Terceiro, frases de Chico Xavier colhidas na Internet.

A conclusão é chocante, para os partidários de Chico Xavier, e indica a apropriação indébita que o anti-médium mineiro fez do escritor maranhense, falecido em 1934, e tendo sido um grande sucesso literário entre as décadas de 1920 e 1930. E demonstram o quanto o texto surpreende pelas semelhanças de estilo não com o de Humberto em vida, mas com os de Chico e Wantuil.

O ORGULHO DE UM GÊNIO

Humberto de Campos - Carvalhos e Roseiras pág. 63

Joaquim Gomes de Sousa, o genial brasileiro, que, aos trinta anos, resumia todo o saber do seu tempo, era profundíssimo em tudo, principalmente em matemática. Na Câmara, discutia todas as matérias. Certo dia, ao apartear um deputado que discursava sobre finanças o orador retrucou veementemente:

- O assunto em discussão não é da especialidade de V. Ex.!

E Gomes de Sousa, logo, de pé, com todo o fogo do seu orgulho:

- É por isso mesmo que eu o discuto com V. Ex. Se se tratasse de assunto de minha especialidade eu não admitiria V. Ex. à discussão.

Segue-se agora uma amostra do estilo do então presidente da FEB, Antônio Wantuil de Freitas, que em 1949, usando o enigmático pseudônimo Minimus - do qual, originalmente, não se deu qualquer esclarecimento - , no trecho extraído do livro Síntese de O Novo Testamento:

"(...)Supuséramos sempre como impossíveis de concatenação adequada: a mente prática de Mateus, a descritiva, de Marcos, a artística, de Lucas, e a divina, de João. (...) O Novo Testamento, revelação divina por instrumentos humanos, quais o foram os seus autores, apresenta-nos muitos degraus de revelação e conhecimento, somente acessíveis pela evolução com o tempo ou pela iluminação com o esforço próprio; uma só LUZ — por filtros diversos".

Agora vamos mostrar uma amostra do estilo de escrever de Chico Xavier ele mesmo, sempre se valendo de promover o conformismo e traduzir o conservadorismo da moral religiosa em palavras dóceis e meigas, que são usadas por internautas nas mídias sociais. Algumas amostras:

"A sabedoria superior tolera, a inferior julga; a superior perdoa, a inferior condena. Tem coisas que o coração só fala para quem sabe escutar!"

"Embora ninguém possa voltar atrás e fazer um novo começo, qualquer um pode começar agora e fazer um novo fim".

"Que eu não perca a vontade de doar este enorme amor que existe em meu coração, mesmo sabendo que muitas vezes ele será submetidoa provas e até rejeitado".

"Se o momento é de crise, não te perturbes, segue... Serve e ora, esperando que suceda o melhor. Queixas, gritos e mágoas são golpes em ti mesmo. Silencia e abençoa, a verdade tem voz".

Agora, vamos mostrar, em parágrafos separados, a análise do texto atribuído a Humberto de Campos divulgado por Chico Xavier em 15 de julho de 1944.

"Não desconheço minha pesada responsabilidade moral, no momento quando o sensacionalismo abre torrente de amargura em torno de minh'alma".

Este trecho se identifica plenamente com o estilo de escrever de Chico Xavier, com a semelhança explícita das frases que o anti-médium mineiro tanto lançou, estando algumas acima para você mesmo, leitor, comparar.

"Recebeu-me a Federação Espírita Brasileira, generosamente, em seus labores evangélicos, publicou-me as páginas singelas de noticiarista desencarnado, concedendo-me o ingresso na Academia da Espiritualidade. E continuei conversando com os desesperados de todos os matizes, voluntariamente, como o hóspede interessado em valer-se da casa acolhedora".

Embora seja uma argumentação combinada entre Chico e Wantuil, observa-se que a redação final do referido parágrafo se remete mais a Wantuil, até por estar puxado a uma retórica pretensamente científica e linguagem tipicamente editorial, como é de praxe de um chefe de uma instituição.

"Eis, porém, que comparecem meus filhos diante da justiça, reclamando uma sentença declaratória. Querem saber, por intermédio do Direito Humano, se eu sou eu mesmo, como se as leis terrestres, respeitabilíssimas embora, pudessem substituir os olhos do coração. Abre-se o mecanismo processual, e o escândalo jornalístico acende a fogueira da opinião pública. Exigem meus filhos a minha patente literária e, para isso, recorrem à petição judicial. Não precisavam, todavia, movimentar o exército dos parágrafos e atormentar o cérebro dos juízes. Que é semelhante reclamação para quem já lhes deu a vida da sua vida? Que é um nome, simples ajuntamento de sílabas, sem maior significação? Ninguém conhece, na Terra, os nomes dos elevados cooperadores de Deus, que sustentam as leis universais; entretanto são elas executadas sem esquecimento de um til".

Neste trecho, em que um pretenso "Humberto de Campos" pateticamente desvaloriza sua necessidade de provar a patente literária exigida pelos herdeiros do escritor maranhense, combina-se o sentimentalismo de Chico Xavier e uma argumentação agressiva e falsamente científica de Wantuil, que também teria escrito a redação final do texto, em que pese algumas palavras tipicamente xavierianas.

A argumentação é patética e hipócrita, uma vez que soa muito estranho que um autor se permita omitir-se de responsabilidade autoral, desafiando a lógica das coisas e dos fatos em nome dos "olhos do coração" e acusando a cobertura do processo movido contra Chico e a FEB de "escândalo jornalístico" que acende a "fogueira da opinião pública". O estranho "Humberto" permite-se proteger em um pretenso anonimato para fazer valer sua "mensagem".

"Na paz do anonimato, realizam-se os mais belos e os mais nobres serviços humanos."

Frase escancaradamente escrita por Chico Xavier, e desta vez somente ele, sendo absolutamente idêntica às frases que os internautas adoram mostrar nas mídias sociais, sobretudo Facebook.

"Quero, porém, salientar, nesta resposta simples, que meus filhos não moveram semelhante ação por perversidade ou má-fé. Conheço-lhes as reservas infinitas de afeto e sei pesar o quilate do ouro da carinhosa admiração que consagram ao pai amigo, distanciado do mundo. Mas que paisagem florida, em meio do mato inculto, estará isenta da serpe venenosa e cruel? É por isto que não observo esse problema triste, como o fariseu orgulhoso, e sim como o publicano humilhado, pedindo a bênção de Deus para a humana incompreensão".

Uma típica frase de duplo sentido. O estranho "Humberto" parece demonstrar afeição a sua família, mas também venenosa desconfiança, quando alude a presença de "serpe venenosa e cruel" numa "paisagem florida em meio do mato inculto". Pois aqui quem destila o seu veneno é o suposto espírito, bem no famoso ato de "morde e assopra", em que primeiro demonstra afeição a seus familiares, desmentindo perversidade e má-fé de sua ação judicial, mas depois suspeitando de intenções maldosas por trás desse processo, para em seguida dizer que não observa esse "problema triste" como "fariseu orgulhoso" e "sim como o publicano humilhado".

Diante desse parágrafo confuso, traiçoeiro e contraditório, observa-se algumas argumentações sentimentais típicas de Chico Xavier, mas os trechos ferinos indicam a contribuição de Wantuil, que parece ter escrito a redação final.

"Diante, pois, do complicado problema em curso, ajoelho-me no altar da fé, rogando a Jesus inspire os dignos juízes de minha causa, para que façam cessar o escândalo, em torno do meu Espírito, considerando que o próprio Salomão funcionasse nessa causa, ao encarar as dificuldades do assunto, teria, talvez, de imitar o gesto de Pilatos, lavando as mãos".

Esse parágrafo tem muito mais a cara de Chico Xavier, prevalecendo o seu estilo de analisar os problemas, usando principalmente desculpas típicas, como "ajoelho-me no altar da fé, rogando a Jesus inspire os dignos juízes de minha causa", bem típica do anti-médium mineiro. O religiosismo extremo, a choradeira das palavras dóceis, o parágrafo é escancaradamente de Chico Xavier.

Com isso, concluímos, com as provas apresentadas, que Humberto de Campos não escreveu o referido texto, uma vez que ele claramente expressa os estilos combinados de Chico Xavier e de Antônio Wantuil, não o do escritor maranhense. A análise cuidadosa de conteúdo mostra isso, pela maneira com que se organizam as frases e os argumentos.

quarta-feira, 24 de dezembro de 2014

O caso Humberto de Campos: alegações, confusões e emoções

ANTÔNIO WANTUIL DE FREITAS E FRANCISCO CÂNDIDO XAVIER.

Uma das mais habilidosas fraudes feitas em nome do "espiritismo" brasileiro pode ser observada na mensagem atribuída a Humberto de Campos publicada no livro A Psicografia Ante os Tribunais, de Miguel Timponi (FEB), lançado em 1944 como um relatório, sob o ponto de vista da Federação "Espírita" Brasileira, do processo movido pelos herdeiros de Humberto de Campos.

O processo, que teve como réus a FEB - sobretudo na pessoa de seu então presidente, Antônio Wantuil de Freitas - e Francisco Cândido Xavier, anti-médium mineiro que usou o nome de Humberto de Campos para lhe atribuir autoria espiritual de suas obras (sobretudo o ufanista Brasil, Coração do Mundo, Pátria do Evangelho), havia terminado em empate.

O empate favoreceu Chico Xavier, como naquele "0 X 0" que rende pontos a um time em vantagem. Primeiro, porque os padrões jurídicos da época não apreciavam questões envolvendo obras aparentemente produzidas por pessoas já mortas.

Segundo, porque os familiares deram um enunciado neutro à causa, pedindo para se verificar se a autoria atribuída era autêntica ou não, em vez de investir no propósito direto de processar a FEB e Chico Xavier pela apropriação indébita do nome de Humberto de Campos.

REAÇÕES DOS DOIS LADOS

Astuciosos, Chico e Wantuil acusaram os herdeiros de Humberto - D. Catarina e dois de seus filhos, Humberto Filho e Henrique (a irmã dos dois, Lourdes, apenas participou como solidária ao processo dos familiares) - , de quererem faturar com as obras "espirituais" de Humberto de Campos através da reivindicação de direitos autorais.

Por outro lado, Chico Xavier alegava "sentir-se triste" com o processo e com a repercussão negativa de sua "psicografia": "Será que esses livros, por mim psicografados, são vendidos aos milhares e a ponto de causar tanta celeuma? Meu Deus, tudo que eu faça é a chamado dos espíritos e por profunda caridade!"

Críticos de Chico Xavier contestam essa declaração. Um comentário de Humberto de Campos Filho, um dos que moveram o processo contra o anti-médium, no seu livro Irmão X, Meu Pai, é ilustrativo da indagação que se fazia a respeito das supostas obras espirituais:

"Se essa Federação estampasse, como autor, o nome de João da Silva, os venderia com a mesma facilidade? Por acaso os laços que sempre prenderam, em vida, o escritor aos seus herdeiros desapareciam com a sua morte? Pela simples razão de não fazer mais parte do rol dos vivos, o seu nome caía no domínio público?"

Mas a FEB tentava defender a sua apropriação. O advogado da federação, Miguel Timponi, autor do referido livro sobre o processo, dentro da retórica habilidosa que advogados costumam ter para promover a persuasão ao juri e criar uma sentença favorável ao seu cliente, veio com a seguinte argumentação em defesa da "psicografia":

"Há injúria ao nome venerado de Humberto de Campos? Há, porventura, desrespeito à sua memória? Há qualquer referência desprimorosa ao seu caráter? Há qualquer insinuação maldosa, reticente, equívoca, à sua personalidade? Há qualquer aleivosia ou depreciação à sua conduta como cidadão ou como escritor?

— Não. — São livros de robusta e austera moral e que têm merecido as melhores apreciações. São ditados de grande saber e de profundas cogitações filosóficas. São obras que convidam ao estudo, à meditação, e que não comprometem os princípios da nossa organização política, porque não atentam contra a segurança pública e os bons costumes".

Isso não indica, necessariamente, que a veracidade autoral ocorra em função de "lições morais" ou que aparentemente respeite a reputação da pessoa a que se atribui a autoria, Essa argumentação nada diz sobre a veracidade da autoria de Humberto de Campos, por mais que sejam difundidos "ditados de grande saber e de profundas cogitações filosóficas".

Outro aspecto a ressaltar é a exploração do sentimentalismo à mãe do escritor, Ana de Campos Veras, que, lendo Crônicas de Além-Túmulo, de 1937, primeiro livro de Chico Xavier feito sob a "grife Humberto de Campos", acreditou identificar nele o estilo de escrita do falecido filho.

UM CASO MAIS ATUAL, A TÍTULO DE COMPARAÇÃO

No entanto, familiares, com toda a intimidade que possuíram e a permanente afeição aos entes que já faleceram, não são necessariamente especialistas ou cúmplices de seus trabalhos. Vide, por exemplo, o caso recente de Giuliano Manfredini, filho de Renato Russo, que não possui a compreensão vivencial da trajetória da Legião Urbana.

Giuliano trava uma disputa judicial com dois músicos da antiga banda, o guitarrista Dado Villa-Lobos e o baterista Marcelo Bonfá, que de fato conviveram com Renato e compartilharam com ele toda a experiência profissional, artística e social do famoso grupo de Rock Brasil.

Já o filho de Renato, Giuliano, que reclama ser o herdeiro do espólio do pai, era criança quando a Legião Urbana acabou devido à morte do vocalista. Giuliano não acompanhou as referências culturais do pai, estando mais próximo de referências como Charlie Brown Jr. (grupo cujos fãs chegaram a ser hostis com Renato e a Legião Urbana, mas depois embarcaram no saudosismo do grupo, após a banda dos falecidos Chorão e Champignon ter gravado "Baader-Meinhof Blues").

Familiares conviveram com seus entes em situações que não envolvem produção artística ou cotidiano profissional. Podem até se sentir solidários a tais atividades, mas não necessariamente exercem acompanhamento intenso a ponto de se especializarem nesses trabalhos.

Pelo contrário, é nessas situações que se encontra o distanciamento familiar, por mais que a afeição seja intensa, permanente e inabalável. E é aí que a individualidade de alguém se torna complexa para que seus familiares, mesmo os que o acompanharam desde o berço e entendem seus aspectos mais íntimos, compreenderem de fato.

Ana de Campos Veras, viúva do comerciante Joaquim Gomes de Farias Veras, não era uma estudiosa em literatura, do nível que seu filho Humberto foi. Por isso ela, tomada pela emoção, viu algumas semelhanças entre o livro do suposto espírito de seu filho e atribuiu veracidade, tão comovida com o rumor da atividade espiritual de Humberto e traída pelos arroubos de saudade intensa.

O êxtase da saudade, depois da perda de um ente querido, faz a emoção cegar a razão. Pela ânsia de alguma mensagem nova de um morto, muitos familiares se deixam iludir pelas relativas semelhanças, sem saber que a intenção do pastiche é apresentar uma parte do verdadeiro, as semelhanças parciais não indicam veracidade, embora tenham a pretensão de representá-la.

As semelhanças vagas e superficiais, porque genéricas, banais, manjadas e conhecidas por um amplo público, não sugerem necessariamente que tal pastiche é verdadeiro, por mais que ele acumule semelhanças ao original, tais como um boneco de cera que simboliza virtualmente um indivíduo.

Por isso, a emoção acaba cegando, e nesse turbilhão de confusões, contradições e emoções, a veracidade não pode ser vista como um indivíduo que entra pela porta dos fundos e domina o ambiente. A veracidade é subordinada a rigoroso exame, que relativizações, argumentações contraditórias e arroubos de emotividade saudosa não conseguem justificar com isenção.

Ainda mais quando se observa contradições de estilo entre uma mensagem tida como "espiritual" e o estilo original do autor a que tal mensagem é atribuída. Quando aparecem as contradições, a presunção de veracidade torna-se uma ideia discutível e de crédito bastante duvidoso.