quinta-feira, 22 de janeiro de 2015

O fundamentalismo "chiquista"


Passaram-se algumas semanas do atentado contra a redação do periódico francês Charlie Hebdo - com perfil semelhante ao nosso Pasquim - , que matou dez de seus funcionários, além de outros assassinados no caminho dos terroristas (que mataram outros, incluindo reféns, antes deles serem mortos pela polícia e de uma cúmplice fugir), trouxe discussões em torno do fundamentalismo religioso.

O Charlie Hebdo é um jornal que se dedicava a fazer críticas sociais e políticas, sobretudo de cunho religioso. Várias correntes religiosas são criticadas, e, exageros à parte, elas puxam um debate em torno do fanatismo religioso. O periódico continua sendo publicado, conduzido agora pelos remanescentes da redação tragicamente desfeita.

No Brasil, o fundamentalismo pode ter outro matiz, conforme indica a repercussão de um vídeo editado por nós no YouTube, que revela o lado oculto das "dóceis profecias" de Francisco Cândido Xavier naquele sonho que virou até livro e documentário, conforme sabemos por aqui.

Apesar de ter havido, até anteontem, quase 9 mil visualizações, a repercussão, como é de se esperar, é negativa. No termômetro de avaliação do YouTube, até anteontem 120 pessoas não gostaram do que viram, enquanto apenas 28 pessoas gostaram.

As pessoas que não gostaram acharam o vídeo "um absurdo". Tomados da idolatria a Chico Xavier e da vontade ufanista de ver o Brasil como nação mais poderosa do planeta - tudo isso às custas do "silêncio da prece" e da caridade paliativa, dentro de um quadro de grave contexto sócio-cultural e político - , os seguidores do anti-médium ficaram irritados com o que o vídeo mostrava.

Quisemos adiantar, no vídeo, muitos dos questionamentos que aqui fazemos em Data-Limite Segundo Chico Xavier. Vimos um dado oculto sobre o desejo de Chico Xavier ver o Brasil exercendo uma supremacia político-religiosa - como "nação poderosa" do planeta e como país que propaga seu "espiritismo" - , vendo as coisas por trás da aparência.

Pesquisamos reportagens referentes ao sonho de Chico Xavier em 1969 e ele anunciava o fim do "velho mundo", com a destruição da Europa, dos EUA, do Oriente Médio e do restante da Ásia, através de catástrofes ou de ações terroristas, abrindo o caminho para a ascensão do Brasil como potência máxima do planeta.

Isso significa a destruição de países que já atingiram um nível de qualidade de vida que ainda inexiste no Brasil. A Escandinávia (Noruega, Suécia, Dinamarca, Finlândia e Islândia, em que pese a estrutura vulcânica deste último), conhecida pelo seu elevado nível de vida, seria destruída pelas enchentes causadas pelo derretimento polar.

A França, Reino Unido e EUA seriam destruídos pelo terrorismo. Enchentes e terremotos destruiriam a Califórnia. A Ásia seria arrasada por catástrofes naturais e terrorismo. Multidões seriam dizimadas e quem tiver dinheiro que fugisse para a "terra abençoada pelo Cruzeiro do Sul".

Em contrapartida, no Brasil marcado pela mediocrização cultural, pelos baixos investimentos à Educação e à Ciência e pela baixa valorização de seu rico patrimônio cultural - só a chamada Música Popular Brasileira virou refém da canastrice brega-popularesca dominante e quase monopolista - , é anunciado como o eldorado de transformações profundas no âmbito sócio-cultural.

Isso significa que grandes cientistas, intelectuais e artistas surgirão do nada, sem investimentos nem visibilidade, se projetando no mundo não se sabe como. Talvez fazendo piruetas sob os semáforos nas ruas das cidades ou vendendo pipocas em estádios de futebol, porque eles não têm como furar o bloqueio da imbecilização cultural que no Brasil atinge níveis quase totalitários.

DOUTRINAS DETURPADAS PRODUZEM FANATISMO

Questionar tudo isso é um grave risco num país onde focos de pistolagem, violência conjugal e cyberbullying nas mídias sociais mostram o alto grau de reacionarismo que se vive no Brasil, e do qual o efeito da "má repercussão" do vídeo revelador é apenas uma das consequências.

A verdade dói, a realidade machuca, por isso o Brasil é um terreno fértil para movimentos fundamentalistas. O que preocupa, e muito, é que os seguidores de Chico Xavier possam resultar num movimento fundamentalista que, por enquanto, não incomoda, mas que pode gerar um comportamento violento amanhã.

Ainda vamos explicar melhor isso, porque alegações "positivas" e "fraternais" não impedem que surjam fundamentalistas, porque o fanatismo religioso já demonstrou usar pretextos "superiores" para promover a violência e a barbárie.

Algumas pistas já foram lançadas para isso. Amauri Xavier, sobrinho de Chico Xavier, foi denunciar as irregularidades mediúnicas do tio, e a FEB teria ordenado que "sumissem com o jovem", criando uma campanha difamatória em que até os ínfimos defeitos de Amauri foram exagerados e outros foram até inventados, como a tal "falsificação de dinheiro".

Amauri foi vítima de uma campanha de pesada carga de ódio e rancor, vinda justamente daqueles que pedem o "perdão incondicional" e a "misericórdia". Chico Xavier poderia cometer das suas, que se recomenda "toda misericórdia a ele", mas quem denuncia irregularidades e equívocos graves é vítima de toda carga de ódio e fúria vinda daqueles que são "incapazes de ter ódio no coração".

No caso da farsante Otília Diogo, que criou fraudes de materialização sob o apoio de Chico Xavier, repórteres de O Cruzeiro que foram investigar o caso chegaram a sofrer ameaças e eram caluniados em matérias pagas por "espíritas" e em outros periódicos do "movimento espírita", apenas porque cumpriram sua missão de exercer o jornalismo investigativo.

Isso se deve porque o "espiritismo" brasileiro, distante das bases de Allan Kardec, produziu sua legião de fanáticos intolerantes (sim, o mesmo pessoal que defende a "tolerância" e o "perdão sem limites"), o que diz muito sobre diversas doutrinas e ideologias que, uma vez deturpadas, produzem suas legiões de fanáticos e fundamentalistas que agem com ódio e violência.

COMO SE FAZ UM FUNDAMENTALISTA

Não são as bases ideológicas originais que produzem fundamentalistas. O fanatismo surge quando um sistema de valores sofre sua primeira deturpação. As ideias originais são diluídas, muito de sua essência original é descartado e um outro sistema de ideias, menos ousado e supostamente pragmático, surge em seu lugar, prometendo vantagens pessoais imediatas.

Isso surge em vários tipos de ideologias. Na religião, é ilustrativo o fato do Cristianismo primitivo, humanista, progressista e pacifista, ter dado lugar ao retrógrado Catolicismo medieval, deturpação que produziu os primeiros fundamentalistas, criando um período de horror que consistiu na Idade Média que conhecemos.

Mas no Brasil até mesmo casos recentes são feitos, mesmo fora da religião. Na cultura rock, o descartamento da rádio Fluminense FM, que divulgava a cultura rock original, de influência nos movimentos juvenis dos anos 60 e 70 e no pós-punk, com toda a valorização do ativismo e da produção de conhecimento, deu espaço a rádios deturpadoras que produziram depois seus fanáticos.

A Fluminense FM era de Niterói e, na mesma região do Grande Rio, seguiu-se a deturpação grosseira, caricata e reacionária da Rádio Cidade, que nem era originalmente uma rádio de rock, surgida em 1977 como uma despretensiosa rádio pop.

Mas, uma vez assumindo o rótulo "rock", a Rádio Cidade criou uma deturpação violenta do gênero, com uma perigosa legião de fanáticos que parecem uma versão skatista do Tea Party, o movimento de extrema-direita dos EUA.

Os adeptos da Rádio Cidade são pessoas supostamente rebeldes que chegaram a fazer ameaças contra quem contestasse os desmandos e deslizes cometidos pela Cidade, cujos locutores são conhecidos pelo estilo animadinho que falam como se dirigissem a crianças mimadas de no máximo 12 anos de idade.

Quem acompanhou os fóruns de discussões da página da Rádio Cidade na Internet pôde perceber o ultrarreacionarismo desses "roqueiros de condomínio de luxo": eles defendiam o fechamento do Congresso Nacional e a extinção do Poder Legislativo, odiavam ler livros e condenavam os movimentos sociais de operários, camponeses e povos indígenas.

O reacionarismo faz sentido neste e em outros exemplos, como o fundamentalismo islâmico, que destoa da essência original da religião muçulmana e de uma figura admiravelmente pacifista que havia sido Maomé, que em sua vida se esforçou em fazer progredir a humanidade de seu tempo.

Maomé, Jesus Cristo, Allan Kardec, Karl Marx, Tropicalismo, cultura rock, movimento LGBT, cultura nerd, tudo isso é passível de más interpretações. Os fundamentalistas não buscam as bases doutrinárias ou ideológicas, o que eles defendem são as vantagens de ascensão rápida e ampla trazida pelas deturpações feitas pelas ideias originais.

Os fanáticos se apegam ao que as deturpações prometem: ascensão social rápida, grandes privilégios, compactuação fácil com o poder, vantagens pessoais fáceis. Eles apenas se apoiam às ideologias originais na sua fachada, mas não raro eles mesmos criticam seus pioneiros, embora se autoproclamem seus seguidores.

A deturpação dissolve as ideias originais e tudo aquilo que as doutrinas, movimentos ou ideologias originais têm de essencial. Fundamentalismo não é necessariamente a defesa ou o esforço de resgatar os fundamentos originais, mas "fundamentalizar" a deturpação dos ideais e movimentos originais.

O fundamentalista quer que a caricatura seja o retrato oficial de seus ideais. Ele despreza o desenho original, muito "complicado" e "ineficiente" para seus propósitos. Usa a deturpação como forma de afirmar os ideais originais, alegando que o resgate dos fundamentos originais viria quando a deturpação prevalecesse, o que praticamente nunca acontece, apesar das promessas.

Daí que, quando se questiona a validade das deturpações, seus seguidores reagem da pior forma. Daí o rancor, as represálias, a violência, em diversas formas, de acordo com o contexto. E isso é muito perigoso e não exclui sequer o pretexto de "doutrina de amor e fraternidade" do "espiritismo" popularizado por Chico Xavier.

O próprio "espiritismo" já sinalizou que condena mais o suicídio do que o homicídio, visto como um "mal menor", um "ato de justiça para reparar as dívidas morais", aquele pretexto conhecido como "reajustes morais", alegando "acertos de contas" de "encarnações passadas".

O doloroso é revelar tudo isso e tirar o véu da ilusão, criando nos chiquistas uma irritabilidade da qual alguns até conseguem disfarçar, quando tentam, de forma cínica, criar um discurso raivosamente dócil do tipo "meu irmão, você está tomado da influência de nossos amiguinhos sofredores, que lhe fazem divulgar mentiras (sic) desse nível", "você está obsediado, querido irmão" etc.

Esse fundamentalismo não existe quando se defende, autenticamente, as bases de Allan Kardec. Tanto que Kardec foi atacado e humilhado e não surgiu um exército de seguidores raivosos para defendê-lo.

Pelo contrário, os seguidores de Chico Xavier, que deturpou a Doutrina Espírita de Kardec tal qual o imperador romano Constantino deturpou o Cristianismo primitivo dos adeptos de Jesus, é que preferiram desviar das bases kardecianas no que elas tinham de "complicado" e "pouco pragmático".

Eles preferiram a deturpação bem-sucedida de Chico Xavier, que não rompeu com os velhos dogmas católicos de influência ibérico-medieval, porque oferecia vantagens mais fáceis e não ameaçava o sistema de privilégios sócio-culturais, políticos, religiosos, econômicos etc. E isso sob o respaldo do espírito Emmanuel, que é o mesmo retrógrado jesuíta Manuel da Nóbrega.

O "espiritismo" segundo Chico Xavier era uma forma de eliminar tudo aquilo que havia de iluminista e transformador em Allan Kardec, reduzindo a Doutrina Espírita ao mais rígido conservadorismo, substituindo o ativismo social pelo "silêncio da prece" e condenando os movimentos sociais ao defender, em seu lugar, a "reforma íntima", eufemismo que significa conformismo e acomodação.

Por isso, não foi a doutrina de Allan Kardec que gerou fundamentalistas. Foi o fanatismo dos seguidores do sistema deturpado simbolizado por Chico Xavier, ele portador de estereótipos diversos associados a valores conservadores dominantes no país.

Os fundamentalistas "chiquistas" abandonaram os fundamentos de Kardec. Eles preferiram "fundamentalizar" os conceitos deturpados e de cunho conservador popularizados pelo anti-médium mineiro, do qual a fantasia está acima da realidade.

Por isso, eles preferem que o "silêncio da prece", associado ao ufanismo conservador, façam com que o Brasil em extrema crise de valores vire a "nação mais poderosa do planeta". É assim que surgem os fanáticos fundamentalistas, que poderão reagir de forma violenta a cada imperativo da realidade e da busca pela coerência dos fatos.

Os fundamentalistas perdem a razão, mas se acham donos dela. E isso é horrível, pois mesmo os pretextos de "amor, luz e fraternidade" podem gerar ódios, trevas e egoísmos de grupos. Vide o caráter anti-Cristo que teve o Catolicismo medieval, supostamente "cristão". O maior medo é que a história se repita com o "coração do mundo".

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