sábado, 6 de junho de 2015
O sutil racismo do Correio Espírita
A edição deste mês do jornal Correio Espírita fez uma demonstração sutil de racismo nos comentários de uma de suas matérias de capa, intitulada "Africanos retornam à sua pátria (sic), a Europa", através das seguintes palavras, que nos fazem refletir de forma questionadora:
"Agora, os invasores do pretérito aparecem reencarnados, no mesmo solo que pintaram de sangue, e com a roupagem física de africanos e tentam voltar às pátrias de origem, necessitando drasticamente de amparo, proteção e ajuda".
A expressão revela um forte teor moralista, e em poucas palavras comprova o quanto o "espiritismo" brasileiro tem muito mais a ver com o antigo moralismo do Catolicismo medieval português, que ainda no final do século XIX ainda guardava fundamentos da antiga religião romana, que após o fim do Império Romano se consolidou no Império Bizantino e no território da atual Itália.
O texto se refere aos naufrágios que acontecem nas migrações clandestinas de povos africanos para a Europa, fugindo de países em conflitos bélicos ou em governos ditatoriais. Os africanos vão para países europeus em busca de asilo e de emprego, e as autoridades estão indecisas entre políticas de restrição à imigração e à assistência aos oprimidos.
Se algumas autoridades já erram pensando em repatriar os africanos para suas nações de origem, mesmo com governos ditatoriais ou guerras civis, ignorando as tragédias desses países ou mesmo das embarcações que, em parte, naufragaram e, em outros casos, tiveram passageiros morrendo doentes, o "espiritismo" não parece muito generoso apesar do texto "misericordioso" da edição.
Pois o pequeno texto diz muito na mistura de três elementos da "moral espírita" expressa: o pedantismo reencarnacional, o moralismo punitivo e o racismo sutil. Vamos analisar esses três pontos, um por um.
O pedantismo reencarnacional é feito porque, no "espiritismo" brasileiro, há todo um desprezo à Ciência Espírita, respaldada apenas no discurso, mas completamente ignorada na prática. Vide a falsa mediunidade das mensagens que só refletem o estilo do suposto médium e quase nada dizem da pessoa a que supostamente se atribui a autoria.
Havendo esse desconhecimento, constatação nunca assumida por razões óbvias, não há como ter um conhecimento exato nem rigoroso sobre vidas passadas. Daí o pedantismo, que é presunção de supor saber o que não se sabe, que se atreve a atribuir encarnações passadas sem ter a menor noção de como ou se realmente as vítimas teriam sido algozes em outras vidas.
O moralismo punitivo é uma herança do Catolicismo medieval, trazido pelo "movimento espírita" sem os aspectos abertamente coercitivos. O que não significa que o "dedo acusador" dos "espíritas" seja menos afiado do que o dos antigos patrícios romano-bizantinos.
Tendo a pretensão de culpabilizar as vítimas, vistas generalizadamente como "reencarnações" de antigos algozes, mesmo com o total desconhecimento da Ciência Espírita, o "espiritismo" brasileiro estabelece um rigor moralista não muito diferente dos antigos imperadores romanos, deles trazendo a mesma ganância em cobrar os chamados "reajustes morais" ou "resgates espirituais".
Já o sutil racismo está no etnocentrismo de herança luso-romana medieval do "movimento espírita", que ainda se respalda em visões já superadas de povos indígenas e africanos como "primitivos" e "selvagens", ora "ingênuos", ora "agressivos", visão já superada pela moderna abordagem da História e da Antropologia trazidas nos anos 1930 do século XX.
Isso quer dizer que Chico Xavier ainda definia os negros como "selvagens" pouco depois que Marc Bloch e Lucien Febvre, na França, lançaram as diretrizes de uma compreensão mais justa e edificante dos povos tribais que existiram e ainda restam vestígios na África e no Brasil, entre outras áreas, e cuja organização social, cultural, educacional e política são hoje devidamente reconhecidas.
Chega a ser constrangedor que um livro que se pretendia "revelador", como Brasil, Coração do Mundo, Pátria do Evangelho, tenha que apelar para uma visão ultrapassada de povos indígenas e tribos africanas, dotada de tão lamentável preconceito étnico e racial.
Através da presunção de que os "antigos invasores" que "banharam a África de sangue" passaram a expiar suas faltas "sob a roupagem de africanos" indica que a negritude é vista como um castigo, o que faz com que o "espiritismo" veja a imagem dos povos negros como uma "multidão de desgraçados".
Isso vai contra, severamente falando, com as modernas concepções sociológicas, antropológicas, históricas e geográficas que se referem aos negros como uma simples variação biológica que em nada contribui para diminuir nem aumentar a diferença dos humanos em relação às demais raças.
O que se comprova, hoje, é que os negros têm o seu valor na diversidade cultural mundial, e sua cor de pele passa a ser uma estética diferente e não menos admirável, com seus valores de elegância, bom gosto, sua linguagem própria e seus grandes valores pessoais.
No Brasil, um dos maiores intelectuais de sua História foi um negro, o geógrafo Milton Santos, cuja refinada qualidade de pensador o fez derrubar fronteiras, principalmente quando a ditadura militar o fez viver fora do país. Seu pensamento é até hoje considerado moderno e uma referência para os estudantes de Geografia Humana, pelo admirável diálogo que Santos estabeleceu com a Sociologia, a Antropologia e a História.
Há milhares e milhares de grandes exemplos de negros brasileiros, assim como há no exterior. E os "espíritas" devem ficar constrangidos diante da figura do pastor evangélico Martin Luther King Jr., que nos EUA brilhou em seu ativismo e sua figura de grande líder humanista e formador de opinião, embora lamentavelmente assassinado em 1968.
Ver a negritude como um castigo corresponde a um julgamento de valor retrógrado, e é lamentável que uma publicação como o Correio Espírita venha a corroborar isso, em se sabendo que o "movimento espírita" não pode dar pitacos na vida espiritual da qual só tem uma ideia confusa e pedante demais para fazer julgamentos moralistas tão desprovidos de fundamento.
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