"ESPIRITISMO" SEM KARDEC - Feira de livros em Resende enfatizou as obras mistificadoras de Chico Xavier.
Num país sem hábito regular de leitura, como o Brasil, é estranho que o "movimento espírita" invista na literatura como ênfase para sua suposta caridade. A partir da figura de Francisco Cândido Xavier, num Brasil ainda com altos índices de analfabetismo, como foi antigamente, lançar livros constituiu numa pretensa e estranha campanha filantrópica.
Por que tanto destaque à produção literária, se no Brasil ainda é problemática a cultura de leitura de livros? Mesmo quando o mercado literário se tornou mais popular nos últimos anos, a situação ainda é problemática, pelo próprio contexto em que vivemos.
Recentemente, tivemos o fenômeno dos "livros para colorir", dando cores surreais ao mercado literário que é, evidentemente, para publicações com textos, livros para serem lidos. A desculpa da "busca ao tesouro antiestresse" não colou, e os muitos jardins e florestas murcharam depois de estarem nas listas de 20 mais pedidos.
Muitos tomaram conhecimento que o papel é um material caro, e a produção de livros para colorir foi um grande desperdício. Afinal, são gravuras que podem ser baixadas na Internet com facilidade e, ainda assim, os "leitores" de livros para colorir nunca têm paciência para pintar todos os desenhos presentes em suas páginas. Eles geralmente pintam, quando muito, dez páginas, e param por aí.
Com o fim desse modismo, como atestam as listas de livros mais vendidos este mês, manteve-se outros que se referem à literatura água-com-açúcar ou, quando muito, por mero entretenimento, sem o compromisso de aprimorar o conhecimento.
Dessa forma, vieram livros sobre biografias de cachorros com nomes de músicos, puxando a onda do cinematográfico Beethoven, depois consagrada pelo livro Marley e Eu e culminada num livro chamado John & George que não fala dos dois falecidos ex-Beatles, mas de um sujeito chamado John com seu fiel cão chamado George.
Ao lado de "livros para colorir" e "biografias de cachorros com nomes de músicos", percorrem livros de auto-ajuda, obras de padres aeróbicos e livros de vlogueiros ou youtubers (pessoas que fazem sucesso no YouTube) que geralmente combinam frivolidades com senso de humor cínico.
Livros que contam fatos históricos, que apontam crises no cenário político e cultural, que produzem uma ampla e fundamental gama de conhecimento, não conseguem ser vendidos, e, quando seus autores são emergentes, o fracasso é praticamente certo.
KARDEC LANÇOU POUCOS LIVROS
Dentro desse cenário de erosão cultural que o crescimento do mercado literário não conseguiu amenizar, até porque a quantidade de livros a serem lidos não corresponde à qualidade de seu conteúdo, o "movimento espírita" cria um mercado literário próprio, mas também muito perigoso, que praticamente desmoraliza todo o trabalho feito por Allan Kardec.
Kardec era detentor de uma bibliografia quantitativamente modesta. Como o pedagogo Leon Rivail (seu nome de batismo), não lançou mais do que nove livros, que reúnem suas ideias em prol da educação pública e dos programas de ensino na França.
Com o famoso codinome do pensador espírita, publicou cerca de oito livros, dos quais cinco são considerados "obras básicas": O Livro dos Espíritos (1857 / edição definitiva em 1860), O Livro dos Médiuns (1861), O Evangelho Segundo o Espiritismo (1864), O Céu e o Inferno (1865) e A Gênese (1868).
A consideração dos cinco títulos como básicos é controversa, e equivocadamente definida pelos "espíritas" brasileiros como "pentateuco", numa alusão a cinco livros da Bíblia (Gênese, Êxodo, Números, Levítico e Deuteronômio).
Afinal, muitos especialistas na Doutrina Espírita original afirmam que os livros O Que É O Espiritismo, de 1859, e Obras Póstumas, de 1890, também apresentam conceitos fundamentais para quem quer iniciar-se no Espiritismo, já que o primeiro traz uma síntese do pensamento kardeciano e o segundo acrescenta dados importantes aos cinco livros.
Portanto, se a quantidade de livros produzidos por Allan Kardec é modesta, ela primava pela honestidade e abrangência de seu conteúdo. Se Kardec escreveu intensamente, foi para esclarecer o máximo possível sobre o assunto, muito complexo no seu tempo, que era o Espiritismo. Além disso, ele escreveu para a Revista Espírita, entre janeiro de 1858 até o mês de seu falecimento, março de 1869,
Além de Revista Espírita, que virou uma compilação de vários volumes que aprofundavam o pensamento kardeciano, Kardec também lançou Viagem Espírita em 1862, em 1867, no qual relata as viagens feitas entre 1860 e 1867 - principalmente no ano de 1862 - para fazer palestras e conferir a repercussão da Doutrina Espírita na Bélgica e no interior da França.
O FALSO LIVRO ATRIBUÍDO A ALLAN KARDEC
Convém tomar muito cuidado com o livro A Prece Segundo o Evangelho, supostamente uma seleção de preces contidas em O Evangelho Segundo o Espiritismo. além de dois de seus capítulos. A publicação é tendenciosa e feita sob o ponto de vista da tradução da Federação "Espírita" Brasileira e, de forma hipócrita, ainda usa o livro-fonte como título original da pretensa publicação.
Além do mais, A Prece Segundo o Evangelho, tem um agravante. Uma mensagem de um falso Allan Kardec aos brasileiros é publicada, com uma linguagem diferente, pois, em vez de um pedagogo de frases objetivas e análises simples, surge um padre de discurso ufanista, apelos piegas e pretensa erudição nas palavras.
O pseudo-Kardec aparece sob o título Instruções de Allan Kardec aos Espíritas do Brasil,
ditadas ao médium Frederico Júnior, em 1888 e 1889, na Sociedade espírita "Fraternidade", no Rio de Janeiro, em 05 de fevereiro de 1889. O suposto Kardec exaltava o "anjo" Ismael, tido como o "protetor" do "movimento espírita" brasileiro.
O "Kardec da FEB", citando expressões estranhas e jargões tipicamente próprios à federação, como "casa-máter", "Templo de Ismael", "Revelação da Revelação" (alusão ao livro Os Quatro Evangelhos de Jean-Baptiste Roustaing, que o verdadeiro Allan Kardec reprovou), "em Espírito e Verdade" (jargão roustanguista) e ainda por cima adotava posturas roustanguistas. Além disso, o "Kardec da FEB" usava jargões como "espíritos das trevas" que o professor lionês nunca usaria.
Embora o pseudo-Kardec fale de "coisas boas" como Caridade e Fraternidade, o discurso soa agressivo, além de bastante prolixo, em que quase nada se diz em 11 páginas. Curiosamente, o verdadeiro Allan Kardec estava prevenido de "falsos Cristos e falsos profetas", e provavelmente saberia que também surgiriam "falsos Kardec". Alguns trechos:
"Mas, infelizmente, meus amigos, não pudestes compreender ainda a grande significação da palavra — Fraternidade!
Não é um termo, é um fato; não é uma palavra vazia, é um sentimento, sem o qual vos achareis sempre fracos para essa luta que vós mesmos não podeis medir, tal a sua extraordinária grandeza!
Ismael tem o seu Templo, e sobre ele a sua bandeira — Deus, Cristo e Caridade! Ismael tem a sua pequenina tenda, onde procura reunir todos os seus irmãos — todos aqueles que ouviram a sua palavra e a aceitaram por verdadeira: e chama-se Fraternidade!
Pergunto-vos: Pertenceis à Fraternidade? Trabalhais para o levantamento desse Templo cujo lema é: Deus, Cristo e Caridade?
(...)
Entretanto, dar-se-ia o mesmo se estivésseis unidos? Porventura acreditais na eficiência de um grande
exército dirigido por diversos generais, cada qual com o seu sistema, com o seu método de operar e com pontos de mira divergentes? Jamais! Nessas condições só encontrareis a derrota, porquanto — vede bem —, o que não podeis fazer com o Evangelho: unir-vos pelo amor do bem, fazem os vossos inimigos, unindo-se pelo amor do mal!
Eles não obedecem a diversas orientações, nem colimam objetivos diversos; tudo converge para a
Doutrina Espírita — Revelação da Revelação — que não lhes convém e que precisam destruir, para o que empregam toda a sua inteligência, todo o seu amor do mal, submetendo-se a uma única direção!"
A LITERATURA "ESPÍRITA" NO BRASIL: TUDO POR DINHEIRO
Os livros "espíritas" se tornaram um filão comercial não-assumido, feito "para a caridade", e se tornaram uma literatura de péssima qualidade, apesar dos clamores de muita gente que acredita que tais publicações do gênero sejam "de altíssimo nível".
Mesmo obras dos "renomados" Chico Xavier e Divaldo Franco são de péssima qualidade. A desonestidade doutrinária diz muito a respeito dessa constatação. Além do mais, são livros de narrativa prolixa e pedante, pretensamente eruditas, que não raro consistem de eventuais plágios literários e de vícios de linguagem diversos.
Quando as obras ainda são atribuídas, tendenciosamente, a nomes ilustres, como Humberto de Campos, a coisa torna-se desastrosa, pois nota-se a disparidade do estilo dos "autores espirituais" com o que eles faziam em vida, o que rendeu, do jornalista Léo Gilson Ribeiro, na época da revista Realidade, um comentário irônico: "O espírito sobe, o talento desce".
Fora a pompa dos anti-médiuns que atingem o estrelado, as obras "espíritas" geralmente são folhetins ou romances de ficção científica, de péssima qualidade, conteúdos piegas e pregação moralista, de conflitos emocionais, ajudas paternalistas, além de apelos ao conformismo e à devoção religiosa.
Existem até clichês de romances "espíritas", nos quais se criam pastiches de Em Algum Lugar do Passado (Somewhere in Time), filme definido como ficção científica e que, sendo estrangeiro, não compartilha com as delirantes abordagens "espíritas" brasileiras, com Nosso Lar, além de seguir uma fórmula de narrativa trazida pela novela A Viagem, de Ivani Ribeiro.
Veio uma onda de folhetins que eram lançados com entusiasmo pela imprensa "espírita" pelo menos regional, mas que sumiram na poeira do tempo. É certo que os líderes "espíritas" tentam minimizar o problema, dizendo que "existem obras ruins, sim", mas eles não percebem que até Chico Xavier e Divaldo Franco merecem ir para o lixo, da mesma forma que os "autores menores".
A literatura "espírita", com seus romances e seus tratados "teóricos", com seus livros de auto-ajuda enrustidos, com suas obras pseudo-científicas, simplesmente não passou de um engodo que deprecia o esforço árduo de Allan Kardec de lançar ideias que, no caso do Brasil, foram praticamente ignoradas.
E, quem imagina que a literatura "espírita" é feita para a caridade, é bom prestar atenção para a euforia maior que a festa. Afinal, alguém acha que as pessoas ficariam realmente eufóricas por saberem que a renda da venda de seus livros iria, de fato, para o sustento dos pobres e desamparados?
Muitos autores "espíritas" se enriqueceram e obtiveram conforto com isso. Até Divaldo Franco se diverte viajando, com as passagens pagas pelo dinheiro da "caridade" - não muito diferente de políticos viajando pagos pelo dinheiro público - , e nota-se, nos "centros espíritas", seus membros exibindo carrões e deixando joias brilhando dentro de seus apartamentos de luxo.
Tudo isso é comércio, é exploração da fé alheia em nome do lucro financeiro. Quase nada vai para os pobres e desamparados. É como naquelas estórias de desenho animado, em que um personagem ganancioso, ao distribuir o dinheiro para seus subordinados, comete desigualdade quando faz e diz: "um pra você, outro pra você, dois, três, dez para mim". Para o "movimento espírita", é um punhado de dinheiro para os pobres, um montão para suas lideranças.
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