quarta-feira, 16 de dezembro de 2015

Quando troleiros são os "cães de guarda" do "estabelecido"

IVETE SANGALO, ALEXANDRE PIRES, ZEZÉ DI CAMARGO & LUCIANO, MULHER MELÃO, RÁDIO CIDADE "ROQUEIRA" E ÔNIBUS COM PINTURA PADRONIZADA TAMBÉM ERAM APOIADOS PELOS TROLLS DA INTERNET.

Os casos das campanhas difamatórias contra famosas negras, como Maria Júlia Coutinho, Taís Araújo, Cris Vianna e Sheron Menezzes, ou contra pessoas como Bela Gil e Lola Aronovich, voltadas às causas, respectivamente, nutricionista e feminista, revelam a truculência dos chamados troleiros (do inglês troll) nas mídias sociais.

O fenômeno não é recente, mas foi só a repercussão das atrizes e da jornalista negras que fez a delinquência digital se tornar crime. Os suspeitos dos ataques racistas a Maria Júlia Coutinho começam a ser investigado e um deles disse negar ter feito o delito, mas prometeu denunciar todos os que participaram dos ataques.

Diante do começo da criminalização destas práticas, que envolvem não apenas ataques nas mídias sociais - não somente no hoje extinto Orkut e no atual Facebook, mas na invasão de fóruns de Internet e até em petições digitais - , fica a impressão de que a trolagem se resume a atos de desmoralização por si só.

Todavia, boa parte da trolagem corresponde aos chamados "cães de guarda" do "estabelecido", e é irônico que eles tenham se tornado famosos por atacar atrizes e jornalista da Globo, porque boa parte das causas que os delinquentes digitais defendem corresponde a modismos e ídolos consagrados pelo mercado, pela mídia e pelo poder político.

Pesquisas observam que a trolagem envolve não apenas valores racistas ou machistas, ou mal-entendidos referentes a uma má compreensão de uma frase de uma intelectual, como Simone de Beauvoir, "massacrada" por conta de uma metáfora de caráter sociológico, mas valores considerados "consagrados" e "na moda", tidos como pretensas novidades.

Em muitos momentos, os troleiros são "cães de guarda" do "estabelecido" e, com casos como os de Maju e das atrizes da Globo, eles acabam se voltando para seus "criadores", já que muito de sua ação era em defesa de valores estabelecidos pela mídia, pelo mercado e por autoridades políticas influentes.

A gíria "balada" (criada por uma parceria entre Rede Globo e Jovem Pan FM), a pintura padronizada nos ônibus do Rio de Janeiro (decidida por autoridades do retrógrado PMDB carioca), a programação "roqueira" da Rádio Cidade (defendida pelos grandes empresários do ramo do turismo e dos grandes eventos culturais e esportivos) e as "musas siliconadas" (defendidas por empresários do entretenimento "popular" em parceria com a grande midia) são algumas das causas apoiadas pelos mesmos que acham que cabelo cacheado é sinônimo de "esponja de lavar louça".

Por que eles agem assim? Simples. Eles são o retrato conservador que estava latente na juventude brasileira desde os anos 90. São filhos de adultos que eram felizes durante a ditadura militar ou eram esquerdistas frustrados que passaram para a oposição de caráter direitista. Geralmente jovens de classe média, membros das elites ou suburbanos com sonho de ascensão social, que endeusam tudo aquilo que vira "moda" ou é tido como "novidade".

Eles geralmente reagem aos estigmas que contrariam seu horizonte fechado de ideais e valores. Por isso esculhambam tanto internautas que questionam a pintura padronizada nos ônibus cariocas como a mudança de orientação de uma FM pop, a Rádio Cidade, para o rock (num desempenho, aliás, bastante sofrível e caricato), quanto esculhambam negras que se tornam atrizes e jornalistas bem sucedidas.

Os troleiros pensam como se estivessem isolados em algum escritório. Seu horizonte de valores é pequeno. Se limitam a raciocinar conforme suas convicções pessoais, e sua concepção de mundo é retrógrada, ultrapassada, o que revela o contraste da pouca idade, que à primeira vista sugeriria rebeldia e apreço ao novo e ao moderno, e os valores retrógrados e dominantes que defendem.

Eles são "rebeldes" na forma, mas extremamente retrógrados e reacionários no conteúdo. Se inserem no mesmo contexto em que se destacam movimentos do nível como Revoltados On Line e Movimento Brasil Livre, comentaristas da mídia como Reinaldo Azevedo, Diogo Mainardi, Marco Antônio Villa e Rachel Sheherazade e políticos como os deputados cariocas Eduardo Cunha e Jair Bolsonaro.

O "mundo perfeito" em que vivem combina valores que misturam uma falsa modéstia, uma resignação com a mediocridade cultural e uma esperança de progressos econômicos. Daí que os troleiros sempre reagiram às críticas feitas a sucessos "populares" como Ivete Sangalo, Alexandre Pires, Bell Marques e Zezé di Camargo & Luciano e contra modismos como a gíria "balada" e os ônibus com pintura padronizada para diferentes empresas.

Acham que, só por serem "novidades" ou "fenômenos bem sucedidos", esses ícones e ídolos não podem ser repudiados. Se o são, os troleiros reagem com campanhas combinadas de difamação, ou com mensagens ofensivas difundidas ou enviadas de qualquer forma na Internet. Isso quando a reação não culmina com algum blogue ofensivo dedicado à vítima ou mesmo a organização de grupos para promover agressões físicas às vítimas de trolagem.

Sem medir consequências contrárias contra si, os troleiros agiam acreditando na perfeita impunidade. Acham que nada lhes pode atingir e, quando são contrariados em alguma coisa ou advertidos dos riscos da delinquência digital, eles gracejam ou aumentam o teor dos ataques. Acham que estão protegidos pela reputação que acham ter - se acham "divertidos" e "populares" - e que nada lhes pode deter, e, quando vem alguma encrenca, eles ainda acham que podem agir com represália.

Eles acreditam num mundo fantasioso em que só existe curtição e consumismo. Acham, por exemplo, que é fácil ir e voltar de uma boate à noite, pouco importando se será difícil voltar de ônibus com segurança de madrugada.

Acham que o tipo de mulher ideal é a "mulher-fruta" - ou então subcelebridades como Solange Gomes e Geisy Arruda - , que homens não podem se queixar de carência amorosa, que todo mundo é obrigado a torcer por um time de futebol mais popular e que todos têm que apoiar decisões de autoridades, executivos de mídia e empresários que comandam o mercado.

Pouco importa estupidez, incoerências, perda de direitos. serviço mal feito, fim de tradições valiosas. ou mesmo a questão de direitos humanos ou segurança. Pouco importa se a pessoa não pode ir para a boate porque o caminho de volta fica perigoso de madrugada. Para o troleiro, espécie de ditador em potencial, a pessoa tem que seguir o "esquema" porque a vida "já oferece tudo de bom" e se há problema, o outro que "se vire".

O "mundo perfeito" dos troleiros não tem injustiças nem problemas ou, quando existem, são apenas "coisas corriqueiras" ou "casos isolados". Para eles, quem tem status quo sempre tem razão e às pessoas cabem apenas determinados papéis sociais, como nerds sendo "aconselhados" a namorar "mulheres-frutas" ou negros e negras se limitando a serem, quando muito, porteiros de prédios.

Daí o caráter obscurantista desses internautas encrenqueiros, aparentemente arrojados e modernos, dotados a despejar palavrões e mensagens sarcásticas na Internet. Protegidos pela relativa juventude, eles se passam por gente avançada e há quem se autoproclame "alternativo", "vanguardista", "diferenciado" ou mesmo "progressista", às vezes por ironia, outras por pretensiosismo e forma de tentar impressionar os outros.

Numa época em que os troleiros começam a ser enquadrados criminalmente, a prática começa a ter uma outra projeção. O mercado, o poder político e a mídia, que tinha nos troleiros seus "cães de guarda" - vários deles são funcionários de prefeituras ou governos estaduais, membros de fãs-clubes, produtores de rádios, assessores de imprensa, jornalistas ou produtores de TV - , acabam vendo neles, tardiamente, como Frankensteins que perdem o controle com suas delinquências.

A analogia pode ser comparada com o DOI-CODI, órgão da ditadura militar que surgiu para zelar por um modelo de "democracia" condizente ao mercado capitalista e ao poder hemisférico dos EUA. Quando os membros do temível órgão passaram a agir por conta própria, sem consultar os generais, o órgão se tornou uma ameaça ao regime, o que acabou sendo, diante das mortes dos prisioneiros políticos Vladimir Herzog e Manuel Fiel Filho, em 1975 e 1976, sem a autorização dos generais.

Os abusos de encrenqueiros e delinquentes que, em primeiro momento, agem em defesa do "sistema", acabam produzindo seu inferno astral, porque, num dia, eles agem sem controle e ignorando as consequências e efeitos de seus atos, e em outro são as consequências que surgem sem que eles possam controlar. Os destemidos troleiros de hoje se tornam as "vidraças apedrejadas" do dia seguinte, pelos efeitos naturais de seus atos arrogantes e agressivos.

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