segunda-feira, 19 de outubro de 2015

O ano em que Chico Xavier se nivelou a Dequinha


Sem necessariamente compartilhar nem concordar com a raiva que Adilson Marcelino Alves, o Dequinha, o fez provocar o trágico incêndio que atingiu o Gran Circo Norte-Americano, no bairro de São Lourenço, em Niterói, no final de 1961, o anti-médium Francisco Cândido Xavier se nivelou a ele, no entanto por conta de um julgamento de valor travestido de psicografia.

A tragédia do circo é conhecida e foi notícia no mundo inteiro. O Gran Circo, que estava no seu terceiro dia de sua grande temporada, em 17 de dezembro, prometia um domingo de muita alegria e atrações surpreendentes. No entanto, foi só chegar o fim da tarde para suas lonas serem incendiadas, o fogo se espalhar e, entre queimados e pisoteados, morreram cerca de 500 pessoas (provavelmente mais), além de milhares e milhares de feridos.

A trágica ocorrência, que mobilizou personalidades como o cirurgião Ivo Pitanguy, o palhaço Carequinha e o modesto empresário José Datrino, que então se converteu no Profeta Gentileza, teria sido motivada pela demissão de Dequinha, que era funcionário avulso para armar a estrutura do circo, e teria discutido com um funcionário do lugar, que o agrediu. Condenado à prisão em 1962, Dequinha fugiu e, pouco depois, teria sido assassinado, já em 1973.

Chico Xavier, cinco anos depois, usando o nome de Irmão X - forma de se apropriar do nome do espírito Humberto de Campos (obsessão do anti-médium desde quando este não gostou das resenhas que o autor maranhense fez, ainda em vida, para Parnaso de Além-Túmulo), para evitar novos processos de seus herdeiros - , fez uma acusação leviana e infundada contra as vítimas da tragédia.

No ano da tragédia do circo, Chico Xavier havia perdido o sobrinho, Amauri Xavier Pena, em circunstâncias misteriosas, embora supostamente atribuídas a uma hepatite. Amauri acusava o tio de nunca ter feito psicografias e que tudo que ele fazia era uma fraude. Isso gerou um escândalo que obrigou Chico Xavier a abandonar Pedro Leopoldo e viver em Uberaba.

A acusação foi feita em 1966, no livro Cartas & Crônicas. Chico Xavier presumia que as vítimas do circo eram algozes que viveram no ano 177 de nossa era, na Gália, região da atual França pertencente ao Império Romano do Ocidente, entre autoridades, aristocratas e mesmo boa parte do povo, que sentiram prazer em ver hereges serem recolhidos de suas casas e jogados num estádio para serem queimados vivos.

Antes de reproduzirmos um longo trecho deste livro, vale a comparação com o caso da tragédia do avião da TAM, em 17 de julho de 2007, quando um avião do voo 3054, com destino Porto Alegre, se chocou com um depósito de cargas da mesma companhia aérea, causando uma explosão, que matou todos os 187 ocupantes do avião (passageiros e tripulação) e doze pessoas que estavam no solo, no local da explosão. Foi no Aeroporto de Congonhas em São Paulo e o avião se preparava para decolar.

DOIS PESOS, DUAS MEDIDAS - A gente humilde que ia ao circo em Niterói não tinha dinheiro para processar Chico Xavier por danos morais. Nas fotos, ruínas dos lugares incendiados, em Niterói, em 1961, e em São Paulo, em 2007.

Woyne Figner Sacchetin publicou, em 2009, o livro O Voo da Esperança. Como suposta autoria espiritual, usou o nome de Alberto Santos Dumont. Nele o "médium" alegou que "não havia espíritos inocentes" e as 199 vítimas eram todas integrantes da população da Gália que, no ano 58 antes de Cristo, tinham prazer em ver pessoas sendo queimadas vivas em um estádio.

O episódio rendeu um processo por danos morais movidos por Carmem Caballero. Ela perdeu a mãe e duas filhas na tragédia e ficou abalada com as acusações do livro. "A família ficou profundamente abalada por este livro. Ela ainda se recupera das perdas e agora aparece este livro para trazer mais sofrimento. Ao invés de trazer a misericórdia, o livro, pelo contrário, tenta justificar as mortes trágicas como punição", disse o advogado de Carmem, Marco Aurélio Bdine.

O caso também poderia ter permitido processar Woyne pelo uso leviano da imagem de Alberto Santos Dumont, famoso aviador e engenheiro, que nunca teria escrito o livro. Afinal, se Santos Dumont se matou traumatizado pelo uso bélico de seu famoso invento, por que ele teria que "voltar" para acusar pessoas que pacificamente usavam um voo comercial comum?

Pois é o mesmo caso que deveria ter ocorrido com Chico Xavier. Mas as vítimas do circo, do contrário do acidente da TAM, que envolveu gente da classe média, não tinham dinheiro para pagar advogados para processar o anti-médium mineiro, e, com escolaridade baixa e vivendo seu contexto social humilde, não tinham consciência da gravidade que Cartas & Crônicas cometeu contra sua dignidade.

Chico Xavier acabou ficando impune numa acusação infundada que contraria a Doutrina Espírita, que nunca havia falado em "resgates coletivos", invenção brasileira, como se o povo pudesse ser punido como "gado". Cada pessoa sofre os efeitos de seus erros individualmente, e tal acusação de Xavier atribui, de forma generalizada e irresponsável, a culpa das vítimas do incêndio de terem necessariamente sido gauleses sanguinários.

Segue então a reprodução de trechos dos dois livros, primeiro os trechos do livro de Woyne, por serem mais curtos, e depois o longo trecho do livro de Chico Xavier, para comparação. A constatação será surpreendente.

Afinal, Chico Xavier não seguiu a misericórdia do Profeta Gentileza e, se Dequinha se vingou de funcionários para cometer o seu incêndio, a acusação infundada do anti-médium foi uma vingança simbólica contra a gente humilde que o mineiro acreditava terem sido sanguinários romanos que viveram no território da Gália.

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"Do outro lado de uma das avenidas mais movimentadas de São Paulo, em prédio pertencente à mesma empresa de aeronave, estavam alguns dos soldados do batalhão dos Leões, participantes das carnificinas na Gália, trabalhando em um posto de gasolina, ao lado da companhia aérea, quase esmagando um táxi na na avenida [...] Ontem vocês queimaram seres humanos, hoje veem seus corpos queimados"

"É a lei da ação e reação [...] A providência divina, em sua sabedoria infinita, não colocou neste avião espíritos inocentes, mas almas seriamente comprometidas com um passado de erros [...]"

"Esse grupo, de mais de duzentas pessoas, comprometidas com o passado de falta de compaixão para com os semelhantes [...]"

(O VOO DA ESPERANÇA)

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Naquela noite, da época recuada de 177, o concilium de Lião regurgitava de povo.Não se tratava de nenhuma das assembléias tradicionais da Gália, junto ao altar do Imperador, e sim de compacto ajuntamento.Marco Aurélio reinava, piedoso, e, embora não houvesse lavrado qualquer resolução em prejuízo maior dos cristãos, permitira se aplicassem na cidade, com o máximo rigor, todas as leis existentes contra eles.

Ninguém examinava necessidades ou condições. Mulheres e crianças, velhos e doentes, tanto quanto homens válidos e personalidades prestigiosas, que se declarassem fiéis ao Nazareno, eram detidos, torturados e eliminados sumariamente.Através do espesso casario, a montante da confluência do Ródano e do Saône, multiplicavam-se prisões, e no sopé da encosta, mais tarde conhecida como colina de Fourvière, improvisara-se grande circo, levantando-se altos tapumes em torno de enorme arena.

As pessoas representativas do mundo lionês eram sacrificadas no lar ou barbaramente espancadas no campo, enviando-se os desfavorecidos da fortuna, inclusive grande massa de escravos, ao regozijo público.As feras pareciam agora entorpecidas, após massacrarem milhares de vítimas, nas mandíbulas sanguissedentas. Em razão disso, inventavam-se tormentos novos.

Verdugos inconscientes ideavam estranhos suplícios.Senhoras cultas e meninas ingênuas eram desrespeitadas antes que lhes decepassem a cabeça, anciães indefesos viam-se chicoteados até a morte. Meninos apartados do reduto familiar eram vendidos a mercadores em trânsito, para servirem de escravos domésticos em províncias distantes, e nobres senhores tombavam assassinados nas próprias vinhas.Mais de vinte mil pessoas já haviam sido mortas.

Naquela noite, a que acima nos referimos, anunciou-se para o dia seguinte a chegada de Lúcio Galo, famoso cabo de guerra, que desfrutava atenções especiais do Imperador por se haver distinguido contra a usurpação do general Avídio Cássio, e que se inclinava agora a merecido repouso.Imaginaram-se, para logo, comemorações a caráter.

Por esse motivo, enquanto lá fora se acotovelavam gladiadores e trovadores, o patrício Álcio Plancus, que se dizia descendente do fundador da cidade, presidia a reunião a pedido do Propretor (magistrado abaixo do Juíz), programando os festejos.

- Além das saudações, diante dos carros que chegarão de Viena - dizia, algo tocado pelo vinho abundante -, é preciso que o circo nos dê alguma cena de exceção... O lutador Setímio poderia arregimentar os melhores homens; contudo, não bastaria renovar o quadro de atletas...- A equipe de dançarinas nunca esteve melhor - aventou Caio Marcelino, antigo legionário da Bretanha que se enriquecera no saque.

- Sim, sim... - concordou Álcio - instruiremos Musônia para que os bailados permaneçam à altura...- Providenciaremos um encontro de auroques (boi selvagem, bisão) - lembrou Pérsio Níger.

- Auroques! Auroques!... - clamou a turba em aprovação.

- Excelente lembrança! - falou Plancus em voz mais alta - mas, em consideração ao visitante, é imperioso acrescentar alguma novidade que Roma não conheça... 

Um grito horrível nasceu da assembléia:- Cristãos às feras! Cristãos às feras!Asserenado o vozerio, tornou o chefe do conselho:- Isso não constitui novidade! E há circunstâncias desfavoráveis. Os leões recém-chegados da África estão preguiçosos... - Sorriu com malícia. - Ouvi, porém, alguns companheiros, ainda hoje, e apresentaremos um plano que espero resulte certo. Poderíamos reunir,nesta noite, aproximadamente mil crianças e mulheres cristãs, guardando-as nos cárceres... E, amanhã, coroando as homenagens, ajuntá-las-emos na arena, molhada de resinas e devidamente cercada de farpas embebidas em óleo, deixando apenas passagem estreita para a liberação das mais fortes. Depois de mostradas festivamente em público, incendiaremos toda a área, deitando sobre elas os velhos cavalos que já não sirvam aos nossos jogos... Realmente, as chamas e as patas dos animais formarão muitos lances inéditos...

- Muito bem! Muito bem! - rugiu a multidão, de ponta a ponta da sala.

- Urge o tempo - gritou Plancus - e precisamos do concurso de todos... Não possuímos guardas suficientes...E erguendo ainda mais o tom de voz:- Levante a mão direita quem esteja disposto a cooperar.

Centenas de circunstantes, incluindo mulheres robustas, mostraram destra ao alto, aplaudindo em delírio.Encorajado pelo entusiasmo geral, e desejando distribuir a tarefa com todos os voluntários, o dirigente da noite enunciou, sarcástico e inflexível:

- Cada um de nós traga um... Essas pragas jazem escondidas por toda parte... Caçá-las e exterminá-las é o serviço da hora...

Durante a noite inteira, mais de mil pessoas, ávidas de crueldade, vasculharam residências humildes e, no dia subsequente, ao Sol vivo da tarde, largas filas de mulheres e criancinhas, em gritos e lágrimas, no fim de soberbo espetáculo, encontraram a morte, queimadas nas chamas alteadas ao sopro do vento, ou despedaçadas pelos cavalos em correria.

Quase dezoito séculos passaram sobre o tenebroso acontecimento... Entretanto, a justiça da Lei, através da reencarnação, reaproximou todos os responsáveis, que, em diversas posições de idade física, se reuniram de novo para dolorosa expiação, a 17 de dezembro de 1961, na cidade brasileira de Niterói, em comovedora tragédia num circo.

(CARTAS & CRÔNICAS)

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