segunda-feira, 31 de agosto de 2015

O "espiritismo" brasileiro é uma religião burguesa?


Sabe-se que o "movimento espírita" surgiu na aristocracia, através de dissidentes católicos que apenas variavam por aceitar conceitos de paranormalidade. E que o "espiritismo" brasileiro nunca passou de um Catolicismo paranormal, muito distante da essência de Allan Kardec.

Tido como o movimento religioso "mais transformador" do Brasil, sob o pretexto de promover a "reforma íntima" em prol da "vida futura", o "espiritismo" brasileiro consiste, todavia, num conjunto de valores moralistas, práticas mediúnicas precárias (para não dizer falsas) e filantropia paliativa que, na verdade, está muito longe de representar qualquer sentido transformador.

O "espiritismo" só é considerado "transformador" para uma parcela da sociedade ainda presa a valores conservadores, por mais que se diga "progressista". Seu apego ideológico à ideia do sofrimento "resignado" e da caridade superficial revela a origem elitista desse movimento.

A doutrina que se trabalha no Brasil já se distancia de Allan Kardec por recusar a seguir rigorosamente seu cientificismo. Quando muito, finge que o segue, enquanto mistura um cientificismo muito mal compreendido com esoterismo e crendice religiosa.

O "espiritismo" brasileiro não tem compromisso com a transformação social profunda. A filantropia se limita a se dividir entre as esmolas organizadas por "centros espíritas", doações que por si só nunca resolvem as questões da pobreza, e projetos educativos que não fazem as pessoas terem uma visão crítica e analítica do mundo em volta.

Por outro lado, os líderes "espíritas" são cortejados de uma forma acima do normal pelas elites, pela aristocracia, o que nos faz pensar além de uma simples aparência da vocação "ecumênica" e "conciliadora" dessas lideranças e também dos astros do "espiritismo", sobretudo os anti-médiuns.

Para quem ainda não entendeu, se Francisco Cândido Xavier e Divaldo Franco são chamados de "anti-médiuns", é porque eles deixaram de ter o papel intermediário que um médium deveria ter, para se tornarem as estrelas principais do espetáculo paranormal, bancando dublês de pensadores e virando "grifes" para um padrão de atividades tidas como "mediúnicas".

Tudo parece equilibrado. O assistencialismo aparente aos pobres e a cordialidade às elites diante de homenagens, festas e jantares. Eventos de palestras, os chamados workshops, dedicados ao "espiritismo" e com taxas de inscrições caras e realizadas em hotéis de luxo, são realizados, geralmente perdendo tempo com receituário moralista e pregações igrejistas.

No entanto, o que se observa é o mesmo jogo de aparências entre elites que trocam elogios e afagos entre si e pobres que só recebem benefícios provisórios, as tais cestas básicas e outros donativos que se esgotam em menos de um mês.

A burguesia elogiando os "astros" do "espiritismo", geralmente os anti-médiuns que se tornam centro das atenções pelo seu pastiche de filosofia barato, pela "boa palavra" que transmitem e pela falsa sensação de que a aristocracia usufruiria de uns quinze minutos de aparente humildade e elevação espiritual.

E ai, a cobertura das colunas sociais envolvendo "espíritas" é de uma adulação viscosa, que pouco influi na transformação das classes mais ricas, que ficam felizes posando ao lado de um Divaldo Franco ou similares ou, no passado, visitando Chico Xavier em Uberaba.

Em muitos casos, a única coisa "transformadora" que ocorre é que as elites passam a doar seus pertences não mais àquele brechó situado em um bairro de classe média da cidade, mas a um "centro espírita" que, muito provavelmente, desviará para das doações aos pobres para um outro brechó situado em um bairro de classe média.

Aquele vestido rasgado, aquela camiseta desbotada, aquele jeans que ficou apertado porque a madame que o usava engordou, tudo isso vai para o "centro espírita". E, obviamente, como os vestidos das madames não iriam ser doados para os pobres, eles vão diretamente para os brechós.

Infelizmente, o ato de doar pertences mais parece um "depósito de lixo" do que uma forma de renovar o acervo através do descarte de velhos objetos. As elites se livram de roupas como se livram de entulhos, e qualquer esboço de aparente humildade não elimina por completo os preconceitos elitistas dos mais ricos.

Um exemplo é a socialite Hildegard Angel, que se tornou esquerdista, simpatizante de movimentos sociais, amiga das causas progressistas, mas que manteve seus piores preconceitos elitistas, quando condenou a existência de linhas da Zona Norte para a Zona Sul como fator de "declínio" das praias cariocas por causa do aumento da frequência do povo pobre.

Em tempos que a ação do autoritário PMDB carioca quer mutilar itinerários de ônibus tradicionais como forma de dificultar o acesso das periferias para a Zona Sul - passando a pegar ônibus para o Centro e, daí, BRTs superlotados para a ZS - , Hildegard, além de defender a medida, chegou a escrever que as praias deveriam cobrar ingressos, para evitar a frequência do povo pobre.

Os "espíritas" têm consciência de que as elites são gananciosas, discriminadoras e egoístas? Aparentemente, sim. Mas não seriam eles uma elite dotada de seus preconceitos? O "espiritismo", pelo que se desenvolveu, é em si mesmo elitista, preconceituoso, é carregado de preconceitos místicos e moralistas, de uma visão discriminatória de justiça social.

Vide, por exemplo, os dois pesos e duas medidas em várias coisas, como a culpabilidade das vítimas de crimes e uma certa complacência com o crime e a corrupção, acreditando que os algozes "serão punidos, com certeza", mas acreditando num fiado moral, cujo pagamento será daqui a cem anos.

A religião "espírita" acaba permitindo o mau agouro a Juscelino Kubitschek, o qual não adiantou ser amigo de Chico Xavier e benfeitor da Federação "Espírita" Brasileira, pois o azar lhe bateu à porta, perdendo direitos políticos e passando por uma decadência que sucumbiu numa estranha tragédia automobilística, que oficialmente é dada como "um simples acidente".

Já Fernando Collor, mesmo investigado por corrupção, nem foi tão amigo de Chico Xavier, mas parece que foi beneficiado por esse jogo de relações - Chico Xavier, no fundo, foi um dos maiores espertalhões do país - a ponto de parecer capaz de passar por cima de qualquer encrenca, a não ser que Rodrigo Janot, procurador da República, mantenha sua firme atuação contra o ex-presidente.

O que se tem certeza é que o "espiritismo" não conseguiu cumprir as promessas de transformação social, e, mesmo se autoproclamando a vanguarda dos movimentos espiritualistas, reduziu-se em ser um engodo religioso-assistencialista que não vai além dos paradigmas de um Catolicismo paranormal.

Por efeito de seus valores medievais que inspiram todo o seu receituário moralista, seguindo de forma não-assumida a essência dos delírios místicos de Jean-Baptiste Roustaing - por mais que seu nome seja visto como "palavrão" entre os "espíritas" - , o "movimento espírita" consente com o contexto de desigualdades sociais, apenas resolvendo injustiças de forma que não afete o "sistema".

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