segunda-feira, 4 de janeiro de 2016

Sociólogo admite "religiosização" do Sudeste brasileiro


Em entrevista à revista Carta Capital, o sociólogo Jessé de Souza, presidente do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (IPEA) e autor do livro A Tolice da Inteligência Brasileira, admite que o Sudeste vive a predominância de uma visão religiosa trazida pelas seitas neopentecostais.

Para entender essa visão, reproduzimos um trecho desta entrevista, em que o autor analisa o problema de muitos trabalhadores atribuírem sua ascensão social através do mito do mérito pessoal ou da intervenção divina:

CC: Muitos dos novos trabalhadores têm ficado alheios à atuação sindical, e explicam sua ascensão social mais por méritos próprios ou pela intervenção divina do que pelo sucesso de políticas públicas. Isso fragiliza a base de apoio a um governo popular?

JS: Se a esquerda não construir uma alternativa, a única narrativa válida para os batalhadores será o pentecostalismo, que atrela em grande medida essa classe aos interesses de mercado. Isso não é, contudo, chapado. No Nordeste, essa classe percebe a relação da ascensão com os programas sociais, até porque lá a miséria anterior era muito maior. Sabem que devem a Lula. No Sudeste, a visão de que Deus ou o mérito pessoal foram mais relevantes é mais forte. Têm uma visão egoísta de mundo, atrelada a interesses de mercado. Essa própria classe não percebe quem são seus aliados políticos. O que mostra a pobreza de narrativa da própria esquerda. 

O sociólogo Jessé José Freire de Souza representa uma nova tendência da intelectualidade, que inclui outros pensadores e jornalistas como José Arbex Jr., da Caros Amigos, e Vladimir Safatle, professor de Filosofia da Universidade de São Paulo, que rompe com posturas complacentes com o mercado de uma geração de intelectuais "festivos" que dominou o país.

A intelectualidade "festiva" era simbolizada por "pensadores" como Paulo César Araújo, Pedro Alexandre Sanches, Denise Garcia, Ronaldo Lemos, Hermano Vianna e Milton Moura, entre outros, que reproduziam o mito da "cordialidade humana" e "mistura étnica" de Gilberto Freyre de acordo com clichês pós-tropicalistas que apoiam a utopia do "mau gosto popular" como fenômeno supostamente libertário das classes populares.

Com a publicação de muitos textos na Internet questionando o pensamento desta geração - que se esforçou em trabalhar suas visões mistificadoras sob o suporte "sério" de monografias e documentários, nos quais até aberrações como É O Tchan e o "funk carioca", com suas profusões de glúteos siliconados, eram vistos como se fossem "ativismo etnográfico" - , esses intelectuais perderam a influência que tinham, apesar de manter a alta visibilidade e parte de seu prestígio.

Jessé de Souza já personifica uma outra abordagem, ao lado de Safatle e Arbex Jr., que do contrário da geração "festiva" aponta a possibilidade de haver conflito de classes no âmbito das periferias, mesmo no entretenimento, em que ídolos "populares demais" estão a serviço de um mercado comandado por barões da mídia, multinacionais e até por latifundiários e rentistas.

Ironicamente, Jessé chegou a ser professor da Universidade Federal de Juiz de Fora, a mesma que mantém um núcleo "espírita" que, adotando metodologias bastante falhas, atribuiu erroneamente a Francisco Cândido Xavier suposto pioneirismo científico em relação à "previsão" de descobertas recentes.

Em outra ironia, Jessé leciona na Universidade Federal Fluminense, onde o escritor Gustavo Alonso Ferreira, espécie de Leandro Narloch (reacionário escritor paulista, ex-editor das revistas Veja e Superinteressante e autor dos "guias politicamente incorretos" sobre vários assuntos) da cultura musical brasileira, realizou suas teses de pós-graduação, uma delas sobre a "música sertaneja".

Curiosamente, Gustavo Alonso é um dos "braços direitos" da intelectualidade "festiva", pupilo de Paulo César Araújo (autor de um livro sobre os primeiros ídolos bregas, Eu Não Sou Cachorro Não, e vítima de processos judiciais devido a uma biografia não-autorizada de Roberto Carlos) e amigo de Pedro Alexandre Sanches (cria do neoliberal Projeto Folha, metido a "intelectual de esquerda").

Com sua visão expressa no trecho da entrevista de Carta Capital, Jessé admite que o Sudeste é marcado por uma visão "religiosista" das coisas. A combinação de crenças na meritocracia e na ideia teocrática da intervenção divina - que é defendida até pelo "espiritismo" a partir do exemplo de Chico Xavier - como fatores de ascensão pessoal é o que faz o Sudeste, sobretudo o Estado do Rio de Janeiro, atribuir a "religiosização" das coisas.

A "religiosização" combina ideias conservadoras, interesses egoístas e objetivos de mercado a procedimentos e medidas autoritárias e antipopulares, ou fenômenos de qualidade duvidosa que prevalecem não porque suas qualidades são consideradas melhores, mas porque atendem a um modelo de status e de relações sociais que o Sudeste quer que todos aceitem como "válidos" e até como "verdades absolutas".

Daí a defesa ferrenha de ídolos musicais popularescos, que nada fazem senão pastiches grosseiros e precários de música brasileira. Daí a defesa, no sistema de ônibus, da pintura padronizada em diferentes empresas, algo prejudicial aos passageiros, mas vista como uma "verdade absoluta" por causa da divinização do status quo de seu idealizador, o arquiteto paranaense Jaime Lerner, que havia sido político na ditadura militar.

Há, no Rio de Janeiro, o endeusamento aos quatro times cariocas de futebol (Flamengo, Fluminense, Vasco e Botafogo), que alimentam um fanatismo descomunal na sociedade fluminense. Mas o endeusamento envolve até mesmo o perfil "roqueiro" da Rádio Cidade, FM sem tradição nem vocação para o rock, mas que trabalha o gênero por atender aos interesses estratégicos de grandes empresários do turismo e de espetáculos de ponta, entre eles o conservador Roberto Medina.

O "funk carioca", expressão de espetáculos pagãos, também tornou-se alvo da "religiosização", como "doutrina ativista" que, tomando emprestado ideias da Teologia do Sofrimento católica e "espírita", promovia a glamourização da pobreza, da ignorância e do grotesco, defendendo o mito da ascensão social das classes pobres através da manutenção de valores retrógrados vinculados à inferioridade sócio-cultural trazida pelo sistema de exploração capitalista.

Até mesmo a reação jocosa e humilhante dos troleiros da Internet, "cães-de-guarda" do "estabelecido" que se tornaram conhecidos depois de despejar ofensas raciais a negras famosas que se destacam na mídia, segue esse fanatismo divinizado diante de valores retrógrados associados ao status quo, ao prestígio social e à visão reacionária do que devem fazer e pensar os estratos diversos da sociedade brasileira.

E é isso que se leva em conta, quando Jessé de Souza alerta para o vício do Sudeste brasileiro em pensar o prestígio social através de aparatos como o diploma, a fama e o sucesso imediato de mercado, e relações com a meritocracia - ideologia do mérito pessoal ou institucional determinada pelo status quo - e com a intervenção divina.

É por isso que o Sudeste tornou-se foco de intenso reacionarismo social, o que mostra que regiões outrora associadas às ideias de modernidade e progresso sócio-cultural, como os Estados do Rio de Janeiro e de São Paulo, se revelaram, nos últimos 25 anos, uma vertiginosa decadência de valores, atitudes e princípios, motivados pela predominância da visão religiosista que ultrapassa os limites litúrgicos, invadindo o terreno do laico e até do pagão.

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