segunda-feira, 26 de outubro de 2015

O Brasil e a mania de condenar o raciocínio questionador


"O mal de Allan Kardec é que ele é científico demais". "O mal do Espiritismo francês é seu excesso de lógica, que prejudica (sic) o melhor entendimento das coisas". "É necessário também fazer ouvir a fé, que também merece um lugar cativo na compreensão da realidade".

Frases assim são feitas até mesmo por "espíritas", mesmo aqueles que se dizem "inclinados" à racionalidade kardeciana. ilustram a tendência surreal de uma parcela de brasileiros que manifesta seu preconceito com o ato de raciocinar.

Até dez anos atrás, havia internautas que manifestavam, no extinto Orkut, seu orgulho em odiar ler livros. Mocinhas de boa aparência mas com a arrogância às alturas se julgavam "inteligentes" e "emancipadas" por nada, se achando "diferenciadas" pela convicção de ver no ato de ler livros uma atividade inútil, porque elas já estavam satisfeitas com a tal "universidade da vida", desculpa para usar a curtição como motivo para sua preguiça intelectual.

Hoje a coisa nem está tão convicta assim, mas se o hábito de valorizar livros cresceu de alguma forma, outro aspecto surreal veio à tona: o sucesso dos "livros para colorir" num mercado de livros que são para serem lidos, o que causa muita preocupação pelo que isto representa.

Afinal, são livros como "Jardim Encantado", "Jardim Secreto" e outros que ocupam boas colocações nas listas de vinte livros mais vendidos, e que revelam a futilidade do mercado literário. Os únicos livros relevantes, de ficção ou não-ficção, que aparecem nas listas ou são biografias de personalidades badaladas, nem sempre de renomado valor, ou obras dos anos 1940 (!) como O Diário de Anne Frank e O Pequeno Príncipe.

Para piorar, nas mídias sociais ainda há imbecis que convictamente declaram "não preciso raciocinar, já sou inteligente", e se irritam quando são chamados de alienados, burros ou desinformados. Estar "informado", para eles, é seguir o vento da grande mídia e do mercado, até mesmo falando as "gírias da Rede Globo" (como "galera" e a gíria-símbolo de Luciano Huck, "balada").

Numa época em que até as pessoas cultas se afastam de quem tem consciência crítica, vista como "arredia", "insuportável", "antipática" e "inclinada a desestabilizar as coisas", o Brasil sofre um período delicado de decadência não somente sócio-cultural, como mostra o processo de bregalização musical, mas pelo preocupante processo de declínio político.

O presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, inexpressivo político do Rio de Janeiro que foi "surpreendentemente" eleito (junto ao encrenqueiro Jair Bolsonaro) como expressão da complacência de cariocas e fluminenses para qualquer um que tenha algum status quo, reflete esse retrocesso que envergonha essas pessoas que, irritadas, agora abandonam aqueles que tentam alertar sobre certas armadilhas.

Até dentro da cultura rock a onda de complacência veio à tona. A Rádio Cidade, por exemplo, é uma espécie de "Eduardo Cunha" das rádios de rock, endeusada por "revoltados on line" cariocas que sempre formam uma "panelinha" para "pedir a volta da rádio" se a emissora ensaia algum retorno ao pop que consagrou a FM carioca surgida em 1977.

Em vez dos roqueiros autênticos, antes identificados através da influência cultural da Fluminense FM, reagirem como ocorreu com a concorrente Estácio FM, abatida pelo chamado marketing de guerrilha, o que se sucedeu foi um conformismo e uma resignação com webradios que dificilmente são sintonizadas fora de casa, já que, no celular, sua sintonia é falha, cara e esgota a bateria rapidamente.

Há pessoas que reclamaram dessa realidade e foram discriminadas pelos próprios roqueiros autênticos. Houve quem, destes, dissesse que a Rádio Cidade "segue outra linha" e "até faz um bom trabalho em sua proposta", e boicotasse o contestador de uma forma ou de outra.

A complacência, dentro de um reduto antes associado à rebeldia juvenil, a uma emissora FM que trata o jovem roqueiro como um idiota que põe a língua para fora e faz sinal do capeta com as mãos, reflete essa pouca disposição ao senso crítico. E a discriminação que as pessoas questionadoras recebe até de pessoas cultas revela o descaso que estas passaram a ter com a própria realidade.

Mas isso é apenas um dos muitos aspectos que fazem a "boa sociedade" de pessoas cultas, bem instruídas, aparentemente bem intencionadas mas resignadas com os retrocessos que acontecem na atualidade. Reflete o espírito do tempo que camufla insegurança com acomodação: "Vamos parar de reclamar, gente! Tem as Olimpíadas ano que vem! É só chover dinheiro que tudo melhora, até Valesca Popozuda vai passar a cantar Bossa Nova!", dizem.

Tem a fantasia de que a "chuva de dinheiro" vai transformar os canastrões e medíocres de hoje em gênios visionários de amanhã. No auge da Era FHC, muita gente acreditou que bastava o mercado e a Rede Globo injetarem dinheiro nos "pagodeiros" e "sertanejos" canastrões da Era Collor, dando banho de loja e tecnologia, para fazê-los a imagem e a semelhança dos grandes artistas de MPB.

Grande ilusão. Esses ídolos musicais se perderam na mesma pasteurização que já desqualificou a MPB nos anos 80, e sua "sofisticação" musical se restringiu à aparência e ao tendenciosismo de covers emepebistas que, em grande quantidade, dissimulam o fraquíssimo e duvidoso repertório autoral, alimentado também por factoides e por um falso carisma que esses "artistas" trabalham sob o apoio da grande mídia.

A discriminação ao pensamento questionador também reflete pela literatura inócua mesmo fora dos aberrantes "livros para colorir" (produtos desnecessários, se percebermos que ilustrações para colorir podem ser baixadas facilmente pela Internet). Depois das biografias de cachorros com nomes de músicos estrangeiros, agora são os livros de bobagens dos chamados "vlogueiros" ou "youtubers".

Obras que divagam demais sobre coisas inócuas, como se o batom que a garota deveria usar deve combinar sua cor com a blusa ou com a saia, e reflexões "filosóficas" sobre acordar com sono numa segunda-feira, acabam ficando em alta numa sociedade pouco disposta a ouvir questionadores.

Há livros e livros de pessoas querendo dizer e informar coisas importantes, mas que mesmo o mercado literário considerado "sério" discrimina. E há autores independentes que não têm espaço para divulgar seus produtos, porque "contestam demais" as coisas. Isso quando até vlogueiros que escrevem livros inteiros sobre espinha na cara se tornam best sellers da noite para o dia.

No "espiritismo" então, a coisa é grave. A leitura de livros de Chico Xavier é alvo de intensa propaganda, mas raramente alguém os lê de maneira decidida e firme. A verdade é que essa literatura é irregular e de qualidade bastante duvidosa, pois são textos rebuscados, falsamente cultos, que envolvem mistificação religiosa retrógrada e visões ficcionais que querem se impor à realidade.

Chico Xavier, com sua abordagem anti-Kardec e seus indícios de plágios literários, confirmados ao longo do tempo através de comparações e pesquisas sérias, puxou toda uma literatura irregular, em que a maioria dos livros é "fogo de palha", lançados com muito estardalhaço nos meios "espíritas" e desaparecendo com o tempo, desacreditados.

A cultura sofre uma degradação e as pessoas cultas, resignadas com seus poucos espaços e praticamente sem dialogar com o resto da sociedade, agem mal quando discriminam quem "reclama demais" das coisas. Se sentem ofendidos quando outros descrevem essa crise, achando que tudo está bem e basta aumentar os investimentos que tudo melhora.

Isso porque, enquanto acreditam que se afastam de pessoas "simpáticas, mas muito incômodas e até insuportáveis", destroem a única ponte que faria com que seus valores culturais relevantes fossem repensados e retrabalhados para a divulgação pública.

Essa atitude das pessoas cultas discriminarem os questionadores se compara aos moradores de uma bela cidade que, para se sentirem protegidos, destroem a única ponte que a ligava para outros lugares. E, em vez de se sentirem protegidos, acabam se autodestruindo pela ilusão da auto-reverência, da apreciação privativa de seus valores e da falta de comunicação com o mundo de fora.

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