domingo, 2 de abril de 2017

"Espiritismo" pode ser extinto?

CHICO XAVIER (DIR, QUASE ESCONDIDO), PARTICIPANDO DA FARSA DE OTÍLIA DIOGO, COBERTA COM UM LENÇOL COMO A FALSA IRMÃ JOSEFA.

O Brasil sofre a decadência dos prestígios sociais. Um desgaste avançado, para o qual aparentemente são possíveis esforços de superação de problemas e resolução de escândalos, mesmo os mais graves e mortais. Um tipo de "sociedade ideal" marcada por sérias imperfeições está decaindo e perdendo o sentido, e os surtos reacionários dos últimos meses só revelam esse triste quadro.

Diante de um cenário político o qual o presidente Michel Temer impõe medidas não só impopulares - como ele mesmo admite - mas prejudiciais à população, por mais que se diga que são "medidas contra a recessão" e os poderes Legislativo e Judiciário atuando como se o povo brasileiro não existisse, até o "espiritismo" revela sua decadência preocupante.

É verdade que muitos brasileiros não conseguem enxergar essa situação. Acham eles que os defeitos do "espiritismo" são "superestimados". Essas pessoas, saudosas da antiga estabilidade forçada, quando a sociedade contraditória mas "estável" permitia fazer argumentos "racionais" para fenômenos irracionais, imaginam que o mal do "espiritismo" brasileiro é apenas ter "entendido mal" a obra original de Allan Kardec, como se isso fosse apenas um acidente e não um propósito.

Só que não se faz uma coisa por acidente com 400 livros ou centenas e centenas de palestras pelo mundo. Francisco Cândido Xavier, que como aniversariante de hoje é mais uma vez alvo das paixões religiosas de seus seguidores e simpatizantes, e Divaldo Franco eram há muito criticados pela deturpação igrejista e, mesmo assim, a levaram adiante e até as últimas consequências. Isso não se faz "sem querer", os dois sabiam muito bem o que estavam fazendo ao longo dos anos.

Mas o festival de desculpas até permite que a deturpação aconteça. Gente que nunca leu Kardec vai correndo pescar um parágrafo para interpretar mal e dizer que a deturpação é até "aceitável" ou "saudável", sob o pretexto da "tradição religiosa brasileira" ou das "afinidades com os ensinamentos cristãos", meros eufemismos para a catolicização que atingiu no nosso país a Doutrina Espírita.

Só que a coisa piora, em vários sentidos, acompanhando as várias "manadas" de privilegiados - que vão do porte de arma a um aparente carisma nas redes sociais, passando pelo dinheiro, fama, poder político e empresarial etc - , e as pessoas "de cima" estão cada vez escondendo menos o desejo de transformar em ruínas o lado de baixo da pirâmide.

Os "espíritas" entraram no espírito do tempo (olha o trocadilho) no qual se legaliza o descaso político com a coisa pública, através da emenda do corte de gastos públicos. É um contexto que, há poucos dias, aprovou a terceirização geral no mercado de trabalho, rebaixando o trabalho assalariado aos padrões do mercado informal e das pequenas prestações de serviço.

Daí que, a cada vez mais, os palestrantes "espíritas" se voltam mais para a Teologia do Sofrimento, corrente medieval da Igreja Católica que, no Brasil, teve em Chico Xavier seu adepto mais fervoroso. Quem for ler os princípios da Teologia do Sofrimento e compará-los com as obras do anti-médium mineiro, se surpreenderá com a identificação profunda entre ambas, embora, oficialmente, os "espíritas" nunca assumiram seguirem tal corrente católica.

Apelos para as pessoas suportarem as desgraças da vida, alegações de que o sofrimento "só traz" progressos humanos - esquece-se que o sofrimento, principalmente em excesso, também pode produzir também tiranos e chefes de narcotráfico, por exemplo - , súplicas para as pessoas abrirem mão de desejos e necessidades, e até textos hipócritas sobre "o ter e o ser" são difundidos nas páginas, periódicos e palestras "espíritas".

Isso é Teologia do Sofrimento. Até quando os "espíritas", assustados com essa constatação, dizem, desesperados, que "ninguém veio para sofrer, mas para encarar desafios e aprendizados", os adeptos católicos da Teologia do Sofrimento (que não é aceita por toda a Igreja Católica, mas por alguns setores mais conservadores) também dizem as mesmas desculpas. Leia os livros de João Mohana e compare com as obras de Chico Xavier. Os argumentos são exatamente os mesmos.

A inclinação do "movimento espírita" brasileiro à Teologia do Sofrimento, não bastasse o igrejismo entusiasmado e a falsa mediunidade - os "médiuns", diante do vício tipicamente brasileiro da falta de concentração (que faz muita gente não ter interesse de ler livros e ouvir música), "falam" em nome dos mortos - fazem derrubar a doutrina brasileira, que com toda a evocação, a níveis bajulatórios, do nome de Kardec, se afasta cada vez mais de seus ensinamentos.

A "fase dúbia", que representou a ascensão de Divaldo Franco e o relançamento do mito de Chico Xavier nos moldes que o inglês Malcolm Muggeridge fez com Madre Teresa de Calcutá, só acentuou ainda mais as contradições do "movimento espírita", que com toda a promessa de recuperar as bases originais do Espiritismo, manteve toda a herança do igrejismo de Jean-Baptiste Roustaing.

É bom deixar claro que o plano ideológico da "fase dúbia" do "movimento espírita" sempre seguia o modus operandi dos cenários político-midiáticos conservadores, quando havia uma preocupação maior em simular uma "democracia" enquanto se mantinha valores autoritários, reacionários e pragmatistas. O moralismo "espírita", com suas alegações para "amar o sofrimento" e sobre os "reajustes espirituais" revela um acentuado conservadorismo neste movimento religioso.

E isso contraria severamente a natureza da obra de Allan Kardec, reduzido aqui a um autor que tem a obra distorcida irresponsavelmente por traduções igrejistas que rebaixam o pedagogo a um mero sacerdote católico. Kardec desenvolveu sua obra acompanhando os ventos do Iluminismo francês, e mesmo quando ele descrevia fenômenos e ideias católicas, o propósito dele nunca foi o igrejismo, mas o debate laico em torno de fenômenos espíritas.

Enquanto nas obras de Allan Kardec ele deixava claro que recomendava o debate e o questionamento, até porque ele lidava com um assunto novo e precisava de ajuda para compreender as problemáticas que apareciam, nota-se nas obras deixadas por Chico Xavier o contrário, a recomendação de que não se podia questionar nem contestar, subordinando a Razão aos limites da fé religiosa mais rígida.

A partir de Xavier, o "espiritismo" brasileiro caiu numa série de contradições e equívocos gravíssimos. Isso deixou a religião, que se autoproclamava "a vanguarda dos movimentos espiritualistas", numa posição pior do que o próprio Catolicismo medieval, do qual os "espíritas" embasam seus postulados, e as seitas neopentecostais, que concorrem com o "espiritismo" na veiculação de valores morais ultraconservadores.

As contradições criaram muitas confusões, da mais extrema gravidade. O caso Otília Diogo é um dos mais sérios escândalos da trajetória de Chico Xavier e simbolizou o rompimento dele com o discípulo Waldo Vieira, que se mudou de Minas Gerais para Foz do Iguaçu, no Paraná, para fundar uma outra seita, que comandou até o fim da vida.

No caso de Otília Diogo - um caso de "fogo amigo" em que um fotógrafo "espírita" registrou os bastidores da farsa, com Chico Xavier observando tudo animadamente - , produziu-se um espetáculo ilusionista que forjava uma suposta materialização de alguns espíritos, sobretudo a falecida irmã Josefa, que eram encenados pela farsante Otília, que pegava emprestado do trabalho circense técnicas como romper as correntes e atravessar grades, típicas dos mágicos circenses.

Chico Xavier era visto conversando com as pessoas presentes, vendo tudo, permanecendo animado e atento. O caso aconteceu entre 1963 e 1964, e, a partir desse último ano, começaram as denúncias que culminaram até 1970, com a apreensão de um material usado para a farsa. Chico Xavier, cúmplice da farsa, foi "inocentado", e a revista O Cruzeiro, antes hostil ao "médium" - que no entanto era blindado pela TV Tupi - , passou a lhe dar consideração e até ceder espaço para publicação de textos.

Levando em conta as "boas energias" de Chico Xavier, a "retratação" de O Cruzeiro custou caro para os Diários Associados. Em 1975, a revista faliu e, para continuar circulando, teve que mudar seu formato e linha editorial, se tornando uma clone fajuta da revista Visão (que lembrava mais aquelas seções de jornalismo geral que haviam nas revistas pornográficas), até desaparecer de circulação, dez anos depois.

Mas não foi somente isso: pouco depois da TV Tupi produzir a novela A Viagem, de Ivani Ribeiro, claramente inspirada no livro Nosso Lar e cuja temática envolvia mitos próprios do "espiritismo" brasileiro, como "resgates morais" e "colônias espirituais", foi a vez da pioneira emissora paulista amargar uma fulminante falência, com greves de funcionários com salários atrasados transmitidas em outras emissoras de TV.

Mas, aí, Chico não precisava mais da blindagem da TV Tupi. A FEB, depois da morte do ex-presidente Antônio Wantuil de Freitas - o "criador" de Chico Xavier - , o "médium" e beato católico passou a receber a ajuda da Rede Globo de Televisão, emissora favorecida pela ditadura militar (que o "bondoso homem" apoiou), que produziu um novo mito, mais "limpo" do que aquele criado por Wantuil, e inspirado em Muggeridge no documentário sobre Madre Teresa.

Parecia roteiro de novela. O "filantropo" chegava a um local, acolhido pela multidão, ele cumprimentava a todos, que o recebiam exultantes, ele pegava bebê no colo, depois se agachava para cumprimentar miseráveis sentados no chão, em seguida entrando na "casa de caridade" para ver seus aposentos, cumprimentar doentes deitados na cama, ver crianças pobres tomando sopa na copa-cozinha, e finalmente se dirigir a uma mesa em um salão para dar depoimentos que viravam frases de efeito para "filosofias baratas" que hoje preenchem as páginas de "pensamentos" nas redes sociais.

Tudo isso se observava em Madre Teresa e foi imitado por Chico Xavier. O problema é que as pessoas, que enxergam a realidade concreta como se fosse uma novela e atribui os prestígios sociais a dádivas divinas - daí a não estranheza da alta corte do Judiciário contar com um Alexandre de Moraes, apesar de seu currículo extremamente falho - , acham tudo ótimo e não percebem as armadilhas que suas paixões religiosas e sociais lhes mostram.

O "espiritismo" não se deturpou sem querer ou para se adequar, por si mesma, às tradições católicas (sob eufemismo de "cristãs"). Deturpou porque, em dado momento, julgava a obra kardeciana "indigesta" e "insuportável", e só aproveitou alguns aspectos genéricos, deixando o resto dos postulados "espíritas" brasileiros por conta da obra Os Quatro Evangelhos de Jean-Baptiste Roustaing.

Não se faz uma coisa "sem querer" com longa produção de trabalhos nem ampla difusão de ideias. Chico Xavier e Divaldo Franco fizeram tudo na plena consciência de seus atos, difundindo para o grande público ideias que causariam constrangimento ao próprio Kardec, tamanha a oposição a seus postulados. Há até alusões racistas e machistas na obra de Xavier.

Isso fez o "espiritismo" cair em tantas contradições que nem mesmo uma das causas associadas a Chico Xavier, a "profecia da Data-Limite", é uma unanimidade entre seus seguidores. A multiplicação de irregularidades é tal que o "espiritismo" já pode ser considerado em processo de decadência, de agonia, porque a "fase dúbia" revela seus graves equívocos e o esforço de neo-roustanguismo só reflete a precária situação deste movimento religioso.

As pessoas menos ingênuas até param para pensar: uma religião pode ser extinta? E o "espiritismo", ele pode também ser extinto? A compreensão ultraconservadora da realidade, na qual modos de ver a realidade são inspirados na ficção novelesca e no otimismo pragmático das corporações da mídia, sobretudo redes de TV como a Globo, que parece ter virado "espírita", faz as pessoas acreditarem que o mundo pode até acabar, mas as religiões não.

Mas as próprias pessoas que se irritam com o aprofundamento dos questionamentos à deturpação da Doutrina Espírita - sempre vem a turma do "não é bem assim" que tenta blindar Chico e Divaldo, mesmo "admitindo" também questionar a deturpação - acabam demonstrando seu conservadorismo, seu reacionarismo latente, com a defesa de ideias retrógradas sob a crença de que elas são "atemporais", "eternas" e "impessoais", "acima de classes e ideologias".

A julgar pelos próprios jargões transmitidos pelo poder midiático, nos quais há um coloquialismo de fachada feito para manipular as massas, já que gírias como "balada" e "galera" simbolizam esse controle dos meios de Comunicação na fala cotidiana, junto a jargões como "cliente" substituindo a expressão "freguês", resgate de expressões arcaicas como "traíra" no lugar de "traidor" ou neologismos como "sofrência" no lugar de "sofrimento", nota-se o quanto as pessoas viraram gado das redes de TV.

E é isso que as faz ao mesmo tempo falsamente esclarecidas, sempre dispostas a dar desculpas "racionais" para ideias sem pé nem cabeça, ou mesmo para prejuízos humanos. A própria concepção de "espiritismo" que temos só está consolidada por causa do poder da Rede Globo, que herdou de Wantuil a tutela de Chico Xavier e seus herdeiros. A sociedade brasileira acredita numa estabilidade forçada do status quo que favorece os "espíritas" mas também os próprios donos da Globo.

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