segunda-feira, 20 de julho de 2015

Tudo passa?


Francisco Cândido Xavier era dado a um sadismo. Ele foi o maior sado-masoquista que existiu na história do Brasil, porque fazia apologia o sofrimento com seus livros, cartas e depoimentos, e se divertia explorando as tragédias humanas.

É sempre aquele mesmo papo: você sofre as piores coisas da vida e vai o "bom médium" dizer para você aguentar tudo sem se queixar. Lhe aconselha, com palavras mansas, a não questionar, evitar o raciocínio contestatório e, o que é pior, ainda tem o descaramento de dizer que o melhor é "sofrer amando".

Sim, é isso mesmo que você vai ler se consultar as frases de Chico Xavier. Você, que se ilude com a boa imagem dele e com os estereótipos maravilhosos a ele associados, sabe que ele teve uma maneira bem dócil e suave para dizer, em textos às vezes prolixos, em outros carinhosos, que no fundo querem somente dizer "VÁ SE FERRAR!".

Você até se ofende, porque a única coisa que importa na vida é o "bom velhinho". Você não liga para seus pais idosos, para seus tios e avós, seu professor idoso dos tempos de escola lhe cumprimentou e você foi lacônico e insensível com ele, o Noam Chomsky lançou um livro sobre alertas políticos sérios e você nem deu bola e você ainda disparou dizendo que João Gilberto é ultrapassado.

Desprezando os idosos e idosas diversos, você se apega a Chico Xavier - o pior apego que um cidadão, sobretudo brasileiro, pode ter é aos estereótipos do anti-médium mineiro - com a forma mais obsessiva que se pode imaginar. Você está obsediado e não sabe. Nem tem razões para adorar tanto o anti-médium mineiro, mas faz e continua fazendo, mesmo se isso lhe der um maior azar (e dá).

Aí você, no seu doce masoquismo de aceitar o pior sofrimento "com amor", responde que nós estamos sendo cruéis com Chico Xavier, que ignoramos sua "inigualável bondade" e blablablá. E aí tenta desmentir o sadismo do "bom velhinho" ao lembrar que, apesar de recomendar que "soframos com amor", Chico nos lembrava de que, na vida, "tudo passa".

Claro. Pimenta nos olhos dos outros é refresco. Sofremos ano após ano, a dor aumenta, os infortúnios crescem, nossa capacidade de resolvê-los se torna cada vez mais difícil, pessoas nos caluniam e nos humilham sem que possamos reagir para salvar nossos direitos.

Aí temos que achar tudo isso ótimo, desperdiçar uma encarnação inteira com tudo dando errado, sem que trabalhássemos nossa inteligência e senso de justiça para coisa alguma, tratando o prazer e a vontade como se fossem atos criminosos e sermos escravos do destino e dos arbítrios alheios, acreditando que a "vida futura" nos trará recompensas melhores e maiores.

Chico Xavier faltou com o respeito à gente. Perdemos um prazo de cerca de 80 anos de vida, talvez menos, talvez mais, para ficar sofrendo enquanto as soluções para superarmos esses sofrimentos se tornam piores, e a água invade o fundo do poço até nos afogarmos.

Sofremos tudo isso "com amor" para só conseguir alguma coisa depois que morrermos e desperdiçar uma encarnação inteira nada fazendo senão só aguentar males dos mais absurdos. Em muitos casos morremos cedo e nem precisamos escrever cartas para nossos entes, porque os "médiuns" escrevem por nós e acabam fazendo propaganda religiosa só para lotar "centros espíritas" e vender mais livros.

O que a ideologia de Chico Xavier fez seus deslumbrados seguidores se esquecerem é que temos esse breve período de vida material para desempenharmos nossa inteligência e aperfeiçoarmos nosso caráter, e não virarmos escravos do infortúnio, da calúnia e da má sorte.

Se em algum momento sofremos ou perdemos as coisas, o ideal seria que fossem apenas formas de aprendizado e regulação dos nossos desejos e atos, mas não a ponto de fazer com que as melhores pessoas fiquem sofrendo demais e as pessoas de mau caráter tivessem sorte para contornarem as mais complicadas encrencas.

A doutrina de Chico Xavier, que nada tem a ver com Allan Kardec, parece que não quer que os bons tenham o necessário, e permite que os maus tenham mais do que merecessem ter. É uma religião que acaba protegendo um Fernando Collor, aparentemente capaz de contornar qualquer encrenca, mas deixa um José Wilker morrer no meio do caminho.

Foi José Wilker, um dos mais talentosos artistas da atuação do país e uma das mentes mais brilhantes de criação e análise das artes cênicas, profundo conhecedor de cinema e teatro, foi só consultar um "centro espírita" para morrer de infarto no meio do caminho, antes de completar 70 anos.

Wilker tinha um projeto de carreira para os 90 anos de idade. Tinha planos de filmes, estava dirigindo novas peças de teatro, e disponível para muitos novos papéis como ator. Faleceu com pelo menos 25 anos de caminho pela frente.

Já se Fernando Collor morresse hoje, aos 66 anos de idade, não faria falta. Como político, foi um dos piores da história de nosso país. Foi um corrupto de carreira, tão cafajeste que é viciado em uma boa retórica. Mas ele parece ganhar todas, e mesmo estando sob investigação, parece ter condições de contornar tudo e, o que é pior, agora com reputação de político "progressista".

O Brasil passa por retrocessos profundos. Isso porque seu sistema de valores privilegia a mediocridade, a incompetência, o maucaratismo, as conveniências e os jogos de interesses. E é toda essa escória social que parece ser favorecida pelas circunstâncias. Tudo passa?

A impunidade que os maus sofrem, se ela terminar, ocorre geralmente na encarnação em que eles já estão arrependidos. É o "fiado espírita": faça mal primeiro e pague as consequências depois de se arrepender.

Esse receituário moralista, vindo do "bondoso" Chico Xavier, é a cicuta que adoça primeiro mas envenena os corações das pessoas. Gente que não é capaz de criar bons exemplos por si só, com a dependência psíquica dos "bons exemplos" do anti-médium mineiro.

Incapazes de criarem seus próprios bons exemplos, sua própria caridade, sua própria humildade, essas pessoas acabam preferindo que os brasileiros sofram, que infortúnios cresçam e apareçam, que as pessoas sejam proibidas de realizar seus desejos e projetos de vida, enquanto Chico Xavier é sempre lembrado pelas palavras bonitinhas que não passam de conversa para boi dormir.

Além disso, o termo "tudo passa" de Chico Xavier acaba se tornando uma forma sádica, porém em dóceis palavras, de querer que se adiem as coisas. Deixa-se tudo para depois, sejam a melhoria de vida dos bons e a punição aos maus. Como se uma encarnação nada valesse, como se a vida fosse inútil.

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