sábado, 6 de maio de 2017

"Espiritismo" e escravidão


Por trás da embalagem de belas palavras e aparente filantropia, o "espiritismo" brasileiro, de tão deturpado, se afunda em inúmeras e inúmeras contradições. Que a humanidade pode ter suas imperfeições, isso é compreensível, mas a forma com que o "espiritismo", roustanguista mas "fiel a Kardec", acumula tantas contradições, é algo bastante assustador.

É irônico que um dos fundadores da Federação "Espírita" Brasileira e ex-presidente, Adolfo Bezerra de Menezes - o "dr. Bezerra" que muitos acreditam "não ter reencarnado" e virado "santo plantonista" dos brasileiros - , tenha escrito um livro de ideias abolicionistas, A Escravidão e as Medidas que Convém Tomar para Extingui-la sem Dano para a Nação, de 1869.

O ano da publicação também é uma outra ironia, porque é o mesmo ano de falecimento de Allan Kardec, enquanto Bezerra de Menezes optava pelo roustanguismo, mais "digerível" para os dissidentes católicos que fundaram o "movimento espírita", que, com toda a tardia bajulação ao pedagogo francês, nunca passou de um sub-Catolicismo de moldes jesuítas-medievais.

Apesar do roustanguismo, o livro do dr. Bezerra é até bem intencionado, embora fora dos meios "espíritas" sua atuação tenha sido pouco expressiva. Isso não quer dizer que Bezerra tenha sido um político humanista, porque sua atuação parlamentar é um mistério, pois os dados biográficos que chegaram até nós revelam uma abordagem romanceada e fantasiosa, reduzindo o "dr. Bezerra" a uma espécie de "São Nicolau brasileiro", o nosso equivalente ao lendário Papai Noel.

Há que ter coragem para fazer uma biografia isenta de Bezerra de Menezes, sem a mitificação das paixões religiosas que omitem fatos reais mas apelam para "fantasias do além-túmulo", como um Bezerra se materializando para chamar a polícia para conter um estupro coletivo de uma moça, conforme relato de Divaldo Franco.

Esse "socorro" faltou às vésperas do "Você e a Paz" em dezembro de 2016, quando, a poucos metros da Mansão do Caminho, uma moça, que esperava um ônibus num ponto, foi sequestrada por um motoqueiro que a levou a um terreno, onde ele e os capangas a estupraram.

Bezerra era contemporâneo de personalidades ilustres como Machado de Assis, Joaquim Nabuco, Rui Barbosa e Olavo Bilac, que, por mais admiráveis que fossem, também tinham aspectos sombrios nas suas biografias, e que foram descritos e analisados sem medo. Mas Bezerra, que dizem, teria sido temperamental e oportunista, é só "flores" em sua biografia oficial.

A trajetória do "movimento espírita" ao longo dos tempos deixou estragos imensos, diante de atos e decisões tendenciosos, oportunistas, contraditórios, de um intenso e obsessivo arrivismo, que criou uma complicada teia de contradições, omissões e equívocos que só parecem harmoniosos aos leigos que não conhecem a Doutrina Espírita e assimilam essa forma deturpada que prevalece no Brasil e é difundida pela imprensa.

E agora que o Brasil vive uma agenda de profundos retrocessos políticos, econômicos e sociais, as elites que estão envolvidas direta ou indiretamente com o governo Michel Temer estão exultantes com as propostas do presidente, com as reformas trabalhista e previdenciária e a proposta de terceirização total, que, juntas, irão nivelar o emprego a uma mistura de trabalho informal com escravidão.

As três propostas, juntas, irão causar o seguinte quadro: o empregado trabalhará mais horas, receberá menos salários, terá reduzido seu tempo de férias, perderá garantias e encargos, sendo que custos como transporte e alimentação deixarão de ter uma remuneração própria, passando a ser despesas vinculadas ao salário, o que reduzirá o valor dos vencimentos.

Além disso, adicionais por insalubridade poderão ser cancelados, gestantes podem ser demitidas, acordos trabalhistas, perdendo a regulação da lei, podem fazer prevalecer os interesses patronais, e a estabilidade no emprego será praticamente extinta, porque os empresários estão autorizados a fazer até demissões em massa para sanear as dívidas de sua empresa.

Já está até em andamento um projeto de lei do deputado federal Nilson Leitão (PSDB-MT) que autoriza os empregadores de substituir o salário por alimentação e habitação, degradando as condições de trabalho que já não são boas. E, no Estado do "generoso" deputado, ocorreu recentemente uma chacina que vitimou vários trabalhadores rurais. E Nilson é investigado pelo Supremo Tribunal Federal por irregularidades na campanha que o elegeu para o cargo.

A violência do campo aumentou, e os "espíritas" certamente "lamentam", mas consideram as vítimas "pagadoras de resgates morais", e, no seu "achismo" movido pela ignorância da Ciência Espírita, devem considerar os trabalhadores rurais vítimas da miséria e da violência supostas reencarnações de bandeirantes que dizimaram índios em séculos anteriores.

O próprio "espiritismo", voltado à Teologia do Sofrimento, pouco está se importando com os retrocessos. Depois que definiu as passeatas dos "indignados com a corrupção", no qual se viam políticos corruptos e grupos fascistas pedindo até intervenção militar, como "despertar da humanidade" e "indício de regeneração", imagina-se tudo por trás do aparato de "belas palavras" e "caridade consoladora" que a embalagem do "espiritismo" se mostra aos leigos.

Exaltando Francisco Cândido Xavier, autor do desumano apelo de aceitar o sofrimento e fingir que está tudo bem, o "espiritismo" acaba consentindo com essa pauta, obrigando os oprimidos a se conformarem com as desgraças e os opressores a manterem seus privilégios, com o único "sacrifício" de premiar, com os tesouros da Terra, palestrantes como Divaldo Franco em seu turismo verborrágico ostentando um belo balé de palavras para os mais ricos no exterior.

Por trás dessa embalagem de palavras bonitas e uma fachada de aparente caridade que tanto deslumbra os seguidores menos iniciados e os leigos que acham que tudo são flores na "doutrina" de Chico Xavier, há todo um moralismo severo que prega que os sofredores e desafortunados lutem demais para obter o mínimo dos benefícios, criando vibrações que atrapalham até quando eles se esforçam para conquistar um emprego razoável na vida.

O próprio "mentor" de Chico Xavier, o traiçoeiro jesuíta Emmanuel, impusera uma pauta "trabalhista" na qual vale mais a servidão do que o desempenho de habilidades, e isso inspira até, nas famílias, o moralismo dos pais que, apelando para os filhos "meterem a cara" para "vencer na vida", se importam mais com o sacrifício do que com o benefício conquistado.

Tanto isso é verdade que, em determinadas famílias, os pais ficam frustrados, mas consolados, quando os filhos obtém um emprego sem muita dificuldade, apenas se oferecendo para trabalhar e obtendo uma ocupação. Aquela "guerra" para obter um trabalho seria motivo de orgulho para um pai, e ele se frustra quando o filho pede um emprego e obtém imediatamente. Só se conforma com isso porque é o filho que passará a pagar por suas despesas, aliviando as despesas do pai.

Isso é um moralismo estranho, retrógrado, e mostra o quanto o Brasil está apegado a velhos valores sociais, que se mostram apodrecidos, em estado avançado de perecimento. O país está tomado de velhos paradigmas políticos, religiosos, econômicos, culturais e morais cuja prevalência causa espanto e estarrece as mais renomadas e evoluídas pessoas de outros países, assustadas com a persistência de tantos atrasos permanecendo no Brasil.

E ver que, ao menos, com todo o roustanguismo e os defeitos políticos de sua pessoa, Bezerra de Menezes pelo menos propunha a abolição da escravidão. Enquanto isso, um Chico Xavier que corrobora Emmanuel com seus apelos à conformação com o trabalho degradado, e que usa levianamente o nome de Humberto de Campos para definir negros e índios como "selvagens", parece reciclar e eternizar valores retrógrados, decadentes e que já deveriam ser obsoletos há muito tempo.

Isso é assustador para quem não tem contato íntimo com o que está por trás do "lindo espiritismo" que se mostra em dramalhões como Violetas na Janela e que acha absurdo que uma doutrina que sugira "consolação e conforto" na sua fachada revele um moralismo sangrento nos seus bastidores.

Mas isso é verdadeiro, infelizmente. E revela o cuidado que temos que tomar quando a retórica mostra uma overdose de belas palavras e imagens, pois, como Erasto recomendou nos tempos de Kardec, é preciso tomar cuidado com o aparato de "amor e caridade", que pode esconder a mistificação e a transmissão de ideias levianas e traiçoeiras.

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