quinta-feira, 7 de abril de 2016

Mais duas comparações sobre Humberto de Campos e a suposta obra espiritual


Vamos mostrar aqui mais comparações da obra original do escritor Humberto de Campos (1886-1934) com a suposta obra espiritual trazida por Francisco Cândido Xavier, que sabemos que gerou uma grande confusão e causou profunda indignação dos críticos literários, que com seu conhecimento de causa sabiam que a obra "mediúnica" não refletia o estilo original do autor maranhense.

Publicamos aqui dois textos. Vamos primeiro ao texto "mediúnico", desta vez, para as pessoas perceberem o "Humberto de Campos" publicado por Chico Xavier. A obra escolhida foi "A Lenda das Lágrimas", lançada em 27 de novembro de 1936, no livro Crônicas de Além-Túmulo.

Depois publicamos um conto do livro A Serpente de Bronze, de 1921, quando o autor já era membro da Academia Brasileira de Letras, intitulado "A Mulata", que escolhemos para comparação, pois o conto é uma narrativa inspirada ao mito da criação divina, como parece também ser o conto "mediúnico".

Pedimos paciência para as pessoas lerem os dois textos, despindo-se, antes de mais nada, de paixões de cunho religioso em favor de Chico Xavier. Até porque a leitura mais atenta irá identificar as diferenças extremas de estilos, até pelo fato do conto originalmente escrito por Humberto de Campos mostrar o seu natural senso de humor e sua escrita refinada, porém acessível, do contrário da obra chiquista, de texto melancólico e escrita muito pesada de ser ler.

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A LENDA DAS LÁGRIMAS

Atribuído a Humberto de Campos - Divulgado por Francisco Cândido Xavier - Livro Crônicas de Além-Túmulo, FEB, 1936.
  
   Rezam as lendas bíblicas que o Senhor, após os seis dias de grandes atividades da criação do mundo, arrancado do caos pela sua sabedoria, descansou no sétimo para apreciar a sua obra.
   E o Criador via os portentos da Criação, maravilhado de paternal alegria. Sobre os mares imensos voejavam as aves alegres; nas florestas espessas desabrochavam flores radiantes de perfumes, enquanto as luzes, na imensidade, clarificavam as apoteoses da Natureza, resplandecendo no Infinito, para louvar-lhe a glória e lhe exaltar a grandeza.
   Jeová, porém, logo após a queda de Adão e depois de expulsá-lo do Paraíso, a fim de que ele procurasse na Terra o pão de cada dia com o suor do trabalho, recolheu-se entristecido aos seus imensos impérios celestiais, repartindo a sua obra terrena em departamentos diversos, que confiou às potências angélicas.
   O Paraíso fechou-se então para a Terra, que se viu insulada no seio do Infinito. Adão ficou sobre o mundo, com a sua descendência amaldiçoada, longe das belezas do éden perdido, e, no lugar onde se encontravam as grandiosidades divinas, não se viu mais que o vácuo levemente azulado da atmosfera.
   E o Senhor, junto dos Serafins, dos Arcanjos e dos Tronos, na sagrada curul da sua misericórdia, esperou que o tempo passasse. Escoavam-se os anos, até que um dia o Criador convocou os Anjos a que confiara a gestão dos negócios terrestres, os quais lhe deviam apresentar relatórios precisos, acerca dos vários departamentos de suas responsabilidades individuais. Prepararam-se no Céu festas maravilhosas e alegrias surpreendentes para esse movimento de confraternização das forças divinas e, no dia aprazado, ao som de músicas gloriosas, chegavam ao Paraíso os poderes angélicos encarregados da missão de velar pelo orbe terreno.
   O Senhor recebeu-os com a sua bênção, do alto do seu trono bordado de lírios e de estrelas, e, diante da atenção respeitosa de todos os circunstantes, falou o Anjo das Luzes:
   — “Senhor, todas as claridades que criastes para a Terra continuam refletindo as bênçãos da vossa misericórdia. O Sol ilumina os dias terrenos com os resplendores divinos, vitalizando todas as coisas da Natureza e repartindo com elas o seu calor e a sua energia. Nos crepúsculos, o firmamento recita os seus poemas de estrelas e as noites são ali clarificadas pelos raios tênues e puros dos plenilúnios divinos. Nas paisagens terrestres, todas as luzes evocam o vosso poder e a vossa misericórdia, enchendo a vida das criaturas de claridades benditas!…”
Deus abençoou o Anjo das Luzes, concedendo-lhe a faculdade de multiplicá-las na face do mundo.
   Depois, veio o Anjo da Terra e das Águas, exclamando com alegria:
   — “Senhor, sobre o mundo que criastes, a terra continua alimentando fartamente todas as criaturas; todos os reinos da Natureza retiram dela os tesouros sagrados da vida, e as águas, que parecem constituir o sangue bendito da vossa obra terrena, circulam no seu seio imenso, cantando as vossas glórias incomensuráveis. Os mares falam com violência, afirmando o vosso poder soberano, e os regatos macios dizem, nos silvedos, da vossa piedade e brandura. As terras e as águas do mundo são plenas afirmações da vossa magnífica complacência!…”
   E o Criador agradeceu as palavras do servidor fiel, abençoando-lhe os trabalhos.
   Em seguida, falou, radiante, o Anjo das Árvores e das Flores:
   — “Senhor, a missão que concedestes aos vegetais da Terra vem sendo cumprida com sublime dedicação. As árvores oferecem sua sombra, seus frutos e utilidades a todas as criaturas, como braços misericordiosos do vosso amor paternal, estendidos sobre o solo do planeta. Quando maltratadas, sabem ocultar suas angústias, prestando sempre, com abnegação e nobreza, o concurso da sua bondade à existência dos homens. Algumas, como o sândalo, quando dilaceradas, deixam extravasar de suas feridas taças invisíveis de aroma, balsamizando o ambiente em que nasceram… E as flores, meu Pai, são piedosas demonstrações das belezas celestiais nos tapetes verdoengos da terra inteira. Seus perfumes falam, em todos os momentos, da vossa magnanimidade e sabedoria…”
   E o Senhor, das culminâncias do seu trono radioso, abençoou o servo fiel, facultando-lhe o poder de multiplicar a beleza e as utilidades das árvores e das flores terrestres.
   Logo após, falou o Anjo dos Animais, apresentando a Deus um relato sincero, a respeito da vida dos seus subordinados:
   — “Os animais terrestres, Senhor, sabem respeitar as vossas leis, acatar a vossa vontade. Todos vivem em harmonia com as disposições naturais da existência que a vossa sabedoria lhes traçou. Não abusam de suas faculdades procriadoras e têm uma época própria para o desempenho dessas funções, consoante os vossos desejos. Todos tem a sua missão a cumprir e alguns deles se colocaram, abnegadamente, ao lado do homem, para substituí-lo nos mais penosos misteres, ajudando-o a conservar a saúde e a buscar no trabalho o pão de cada dia. As aves, Senhor, são turíbulos alados, incensando, do altar da natureza terrestre, o vosso trono celestial, cantando as vossas grandezas ilimitadas. Elas se revezam, constantemente, para vos prestarem essa homenagem de submissão e de amor, e, enquanto algumas cantam durante as horas do dia outras se reservam para as horas da noite, de modo a glorificarem incessantemente as belezas admiráveis da Criação, louvando-se a sabedoria do seu Autor Inimitável.”
   E Deus, com um sorriso de júbilo paternal, derramou sobre o dedicado mensageiro as vibrações do seu divino agradecimento.
   Foi quando, então, chegou a vez da palavra do Anjo dos Homens. Taciturno e entre angústias, provocando a admiração dos demais, pela sua consternação e pela sua tristeza, exclamou compungidamente:
   — “Senhor!… ai de mim! enquanto meus companheiros vos podem falar da grandeza com que são executados os vossos decretos na face do mundo, pelos outros elementos da Criação, não posso afirmar o mesmo dos homens… A descendência de Adão se perde num labirinto de lutas criado por ela mesma. Dentro das possibilidades do seu livre arbítrio, é engenhosa e sutil, a inventar todos os motivos para a sua perdição. Os homens já criaram toda sorte de dificuldades, desvios e confusões para a sua vida na Terra. Inventaram, ali, a chamada propriedade sobre os bens que vos pertencem inteiramente, e dão curso a uma vida abominável de egoísmo e ambição pelo domínio e pela posse; toda a Terra está dividida indebitamente, e as criaturas humanas se entregam à tarefa absurda da destruição das vossas leis grandiosas e eternas. Segundo o que observo no mundo, não tardará que surjam os movimentos homicidas entre as criaturas, tal a extensão das ânsias incontidas de conquistar e possuir…”
   O Anjo dos Homens todavia, não conseguiu continuar. Convulsivos soluços embargaram-lhe a voz mas o Senhor, embora amargurado e entristecido, desceu generosamente do sólio de magnificências divinas e, tomando-lhe as mãos, exclamou com bondade:
   — “A descendência de Adão ainda se lembra de mim?”
   — “Não, Senhor!… Desgraçadamente, os homens vos esqueceram… — murmurou o Anjo com amargura.”
   — “Pois bem — replicou o Senhor paternalmente —, essa situação será remediada!…”
   E, alçando as mãos generosas fez nascer, ali mesmo no Céu, um curso de águas cristalinas e, enchendo um cântaro com essas pérolas liquefeitas, entregou-o ao seu último servidor, exclamando:
   — “Volta à Terra e derrama no coração de seus filhos este licor celeste, a que chamarás água das lágrimas… Seu gosto tem ressaibos de fel, mas esse elemento terá a propriedade de fazer que os homens me recordem, lembrando-se da minha misericórdia paternal… Se eles sofrem e se desesperam pela posse efêmera das coisas atinentes à vida terrestre, é porque me esqueceram, olvidando a sua origem divina.”
   E desde esse dia o Anjo dos Homens derrama na alma atormentada e aflita da Humanidade a água bendita das Lágrimas remissoras; e desde essa hora, cada criatura humana, no momento dos seus prantos e das suas amarguras, nas dificuldades e nos espinhos do mundo, recorda, instintivamente, a paternidade de Deus e as alvoradas divinas da vida espiritual.

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A MULATA

Humberto de Campos - A Serpente de Bronze - 1921

   Aumentados com a descoberta do Brasil os limites civilizáveis do mundo, compreendeu Jeová, do seu trono de nuvens, a necessidade de multiplicar o homem, para povoar, em nome da sua gloria, as novas regiões desbravadas. De que espécie devia ele encher, porém, a terra maravilhosa, que se mostrava tão promissora? A raça branca, que ele tanto amava e protegia, dominava, já, na Europa tumultuosa. A Ásia, berço da humanidade e dos grandes mistérios eternos, fervilhava de homens amarelos, que a enchiam toda, e que se haviam derramado, aventureiros, pelas ilhas circunvizinhas. À própria raça negra, que tanto se lamentava da sua condição e do seu destino, coubera a África inteira, de que se tornara senhora. Fazia-se mister, pois, criar um tipo novo, urna raça nova e bendita, que se apropriasse com autoridade e com orgulho, da nova terra exumada das ondas.
   Resolvido isso, tomou o Senhor do seu camartelo, do seu buril, da sua verruma, do material, em suma, com que trabalhava na fabricação meticulosa dos seres vivos, e, misturando um pouco da pasta com que fizera o negro, com outra, absolutamente igual na dosagem, de que fabricara o branco, formou com as duas, uma pasta morena e macia, em que se pôs a modelar, cuidadoso, uma figura de mulher.
   Concluída a obra, o estatuário quedou fascinado. Última flor do jardim humano em que pusera toda a sua experiência de escultor inexcedível, a nova Afrodita resumia, com os seus olhos negros, os seus cabelos crespos, as suas linhas voluptuosas e a sua pele acentuadamente castanha, todos os encantos e todas as graças da criação. Deslumbrado, encantado, embevecido, Jeová mirou-a, remirou-a, examinou-a, banhou-a com a luz dos seus olhos, e, de repente, com um sorriso, teve uma idéia. Foi ao laboratório, tomou nas mãos uma folha de cebola, um dente de alho, amassou-os, triturou-os, diluiu-os e, voltando à estatua, friccionou-lhe pausadamente os ombros, as espáduas e a parte superior e interna dos braços. Em seguida, ordenou-lhe, recuando:
   - "Surge et ambula!"
   A estatua moveu-se, preguiçosa, e com um andar lúbrico, remexido, sensual, desceu do solo em que fora polida.
   Jeová sorriu, de novo, e, com orgulho paternal, apontou-lhe para debaixo do braço, dizendo-lhe, como dissera a Constantino, na legenda sagrada:
   - "In hoc signo vinces!"
   A mulata abriu os lábios num sorriso dengoso, e, como o Criador lhe indicasse, com um gesto, o caminho da terra, através das estrelas, rumou, enamorada de si própria, em direção ao Brasil. Vinte e quatro horas depois, porém, batia, de novo, à porta da oficina celeste.
   - Você por aqui, ainda? - estranhou Jeová, espantado.
   A mulata baixou os olhos, procurando justificar-se:
   - Foi impossível chegar ao meu destino, meu Senhor; e eu, então, regressei, ali, das nuvens.
   - Por que? - trovejou o Criador, indignado.
   E ela, corando, envergonhada:
   - As almas dos portugueses não me deixaram passar...

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