Imagine alguém que está gravemente doente e não sente os efeitos de sua enfermidade. Quando aconselhado a procurar um médico, se revolta com aqueles que dão este conselho. Quando vai ao médico e ele pede um exame, o paciente resmunga e diz que é um exagero. Quando o exame é feito e o resultado, divulgado, confirma a doença, só falta o paciente esfolar quem lhe divulgou o resultado do exame.
É o que acontece com o povo no Rio de Janeiro. Mesmo com a grave crise e com milhares de incidentes trágicos ou surreais que mostram um declínio vertiginoso do Estado e sua respectiva capital, muitos acreditam que tais ocorrências são apenas "reflexo natural" da complexidade urbana e que o Rio de Janeiro continua em seus "melhores momentos" e ainda serve como modelo para o Brasil.
A doença mais grave é a cuja vítima se recusa a diagnosticá-la. E é isso que os cariocas fazem, minimizando a crise botando a culpa no PT ou nos "mimimis" das mídias sociais. E todo mundo se refugiando no WhatsApp ou na ilusória "felicidade" das reuniões do dia a dia para jogar conversa fora, enquanto os problemas ocorrem perto e ninguém percebe.
Os cariocas já nem estão mais percebendo o fedor nas ruas, e se um caminhão de lixo fedorento estaciona diante de um restaurante, exalando sua fumaça poluidora sobre os recipientes com comida a quilo, as pessoas mesmo assim vão almoçar ali, sem pensarem que podem contrair uma séria virose.
O mais preocupante não é a crise que o Rio de Janeiro sofre em todos os aspectos, seja na cultura, na política, na cidadania, na mobilidade urbana etc, fazendo a outrora Cidade Maravilhosa regredir para parâmetros de acomodação social comparáveis ao início do século XX.
O mais preocupante é que os fluminenses não admitem essa crise, a não ser nas classes populares que sentem na carne o descaso, o abandono e outros retrocessos. Mas a "boa sociedade" que recusa a admitir essa crise e acha tudo "natural", creditando o caos a uma "consequência natural" da modernidade urbana.
Isso é muito mal. A "boa sociedade" é até mais vulnerável do que as pessoas que são alvo de balas perdidas nos subúrbios cariocas. A "felicidade" em excesso revela ao mesmo tempo desdém aos problemas e uma acomodação doentia que pode significar uma tragédia futura para as elites.
Indignados em abrir mão de seu narcisismo para admitir que o Rio de Janeiro deixou de ser a "cidade-modelo do Brasil" e, arrogantes, se refugiam no escapismo do "funk", do "sertanejo", dos jogos de Minecraft, dos livros sobre jogos de Minecraft, das vídeocassetadas nas mídias sociais e outras coisas supérfluas ou tolas, os cariocas se expõem ao risco do imprevisto.
O mais surreal é que, com a crise econômica em que se vive, os fluminenses
desperdiçam dinheiro comprando cigarros ou tatuando o corpo, e perdem uma boa oportunidade de buscar conhecimento ou mesmo prazer se afundando em rodadas de cerveja que só engordam e fazem vomitar, ou fugindo para a literatura água-com-açúcar de livros de auto-ajuda e obras religiosas de gosto duvidoso, para não dizer modismos como os livros para colorir e os romances de Minecraft.
O Rio de Janeiro anda tão atrasado que há o fanatismo pelo futebol que transforma uma parcela de fluminenses em verdadeiros trogloditas, a gritar de maneira ensurdecedora em áreas residenciais, como se elas fossem uma extensão do Maracanã. E o futebol é quase uma moeda corrente para as relações sociais, quem não torce por um dos quatro times (Flamengo, Fluminense, Vasco e Botafogo) é discriminado por muitas pessoas.
Até os paradigmas de feminismo andam muito antiquados, quase pré-históricos. Ver que as referências de feminismo mal conseguem sair das órbitas de Solange Gomes, Mulher Melão e Valesca Popozuda, que expressam paradigmas machistas de sensualismo obsessivo (Valesca, apenas, de maneira politicamente correta), é assustador. Sobretudo Mulher Melão (Renata Frisson) e Solange, que mostram seus corpos como se fossem mercadoria em liquidação de loja.
Não, todas essas crises de valores não são efeitos naturais da modernidade urbana. Até porque houve muitos retrocessos no Rio de Janeiro, não é apenas um simples caos ou a óbvia incompetência das autoridades em lidar com a coisa pública. A decadência do Rio de Janeiro supera limites esperados para uma metrópole pós-moderna e atinge níveis dignos das piores cidades provincianas.
E o mais grave é ver que uma boa parcela da sociedade do Estado do Rio de Janeiro se recusa a admitir essa decadência. Jovens de "boa vida" conversam nas ruas como se ainda vivessem nos anos dourados descritos por seus avós. Pessoas se irritam quando alguém fala em crise, boicotam amigos e vão fugir para as redes sociais ver vídeocassetadas ou a mais novos livros sobre bonecos de Minecraft. E ainda querem que a fantasia em que vivem seja mais real que a realidade. A doença é crônica.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.