segunda-feira, 23 de novembro de 2015

O absurdo do personagem André Luiz


André Luiz, o suposto médico que divulgava ideias através de Francisco Cândido Xavier, nunca existiu na realidade. Independente de quem teria contribuído para conceber o personagem - Xavier, Antônio Wantuil de Freitas, a influência de George Vale Owen ou mesmo a colaboração do então jovem Waldo Vieira - , o que se constata é que o personagem foi pura obra de ficção.

Como é de praxe no "espiritismo" brasileiro, o rol de confusões e desentendimentos faz com que se suponha, sem qualquer precisão de dados, vários possíveis personagens históricos reais que teriam se transformado em "André Luiz", de acordo com as delirantes suposições dos "espíritas".

Há uma hipótese de que ele teria sido Osvaldo Cruz, médico sanitarista brasileiro. Outra, defendida por Waldo Vieira, alega que teria sido Carlos Chagas. Outra tese, de Luciano dos Anjos, afirma que ele teria sido Faustino Esporel, médico e ex-dirigente do Clube de Regatas Flamengo, entidade que chegou a presidir em 1921.

O "cientista" André Luiz já começa mal com isso. Há outros que atribuem até mesmo ao médico Miguel Couto. Fora o que vier por aí. Ver que, na doutrina "unificadora" que se autoproclama o "espiritismo" brasileiro, há dados divergentes sobre quem teria sido André Luiz entre nós, mostra o quanto a situação é ridícula.

Mas é evidente que André Luiz é fictício. Seu molde inicial foi o livro A Vida Além do Véu (Life Beyond the Veil), de George Vale Owen, que teria também inspirado em parte a "carreira" de Chico Xavier, já que Owen também dizia fazer psicografia sob intuição de sua mãe e um mentor.

Alguns aspectos estranhos se relacionam ao suposto espírito de André Luiz, e que remetem ao dado da "evolução em linha reta" (imediata e sem etapas) descrito por Jean-Baptiste Roustaing na sua obra Os Quatro Evangelhos.

Consta-se que André teria sido um médico fanfarrão, boêmio, alcoolista, e teria falecido prematuramente de ataque cardíaco, durante um jantar com a esposa. Ele também era usuário de remédios prescritos, sobretudo contra depressão.

Ele teria sido de caráter moral mediano. Não era uma pessoa cruel, mas quando voltou ao mundo espiritual foi dirigido para zonas sombrias que são conhecidas como "umbral", ambiente visto de forma controversa como a analogia ao Inferno católico, para algumas fontes, e ao Purgatório da mesma religião, para outras fontes.

Em Nosso Lar, o umbral é narrado como se fosse o Inferno, enquanto a suposta colônia espiritual que leva esse nome parece um misto de Purgatório com Paraíso, talvez um misto desses dois paradigmas trazidos pela mitologia católica.

Aí tem uma confusão. André não era considerado uma pessoa perversa. Era um dedicado médico que apenas tinha vícios alimentícios e lúdicos. No umbral, foi tratado como suicida por uma multidão que parecia zumbis de filme de terror.

Ele foi para o umbral porque "comeu besteira" e "se divertiu demais". Isso sugere um julgamento moralista, em que pese serem reprováveis, sim, os excessos na alimentação e no lazer. O moralismo consiste na grave sentença para vícios como estes, como se eles não fossem apenas vícios, mas crimes.

Mas aí entra outra contradição. André ficou oito anos no umbral. O tempo não existe no mundo espiritual, não há a convenção que se adota no Ocidente da Terra (a antiga Rússia e a China adotavam outro tipo de calendário e a Antiguidade Clássica tinha outro critério de tempo, diferente do "antes de Cristo" que hoje adotamos).

Se as formas de calcular o tempo na Terra são divergentes e o tempo não existe no mundo espiritual, que sentido tem os "oito anos" de André no umbral? Eles seriam mais rápidos ou mais lentos? Ele teria que passar por esse tempo todo, ou mais, ou menos? Ou bastava uma avaliação de consciência?

Aí André vai para a colônia Nosso Lar depois que sua mãe, na Terra, tenha feito toda uma porção de preces e súplicas para Jesus e Deus. Ela era devota religiosa, mas no fundo era uma cover da mãe de Owen, se bem que o autor de A Vida Além do Véu, com sua "trindade" envolvendo o próprio reverendo e os espíritos de sua mãe e de seu mentor inspiraram Chico Xavier a fazer o mesmo, com Maria João de Deus e Emmanuel.

Outro aspecto estranho. No mundo espiritual, as habilidades intelectuais costumam ser ampliadas e não diminuídas, por causa do desprendimento do corpo físico. Mas André Luiz "decai" nos seus conhecimentos e tem que reaprender a ser médico em Nosso Lar. Isso porque "bebeu demais" e "se divertiu demais". A comilança e a boemia o deixaram meio burro, contrariando nossa tradição de que cientistas e intelectuais boêmios continuam sendo cientistas e intelectuais.

Aí, passam se os anos e André Luiz passa a ter como missão socorrer pessoas que eram dizimadas na Europa durante o começo da Segunda Guerra Mundial. Era o ano 1939 e o super-herói da ficção científica de quinta categoria, mas com pretensões de ser "realidade fidedigna", foi fazer sua poderosa missão, como um super-homem do além-túmulo.

E aí, o que acontece? André se torna, num piscar de olhos, "espírito superior", e em 1943 lança seu "testemunho", Nosso Lar, dando início a uma "pequena dívida" que ele, agora "iluminado", passou a desempenhar: transmitir sua "sabedoria" recuperada na colônia espiritual para os leitores.

E aí vieram os trabalhos "científicos", que na verdade camuflam pregações religiosas com arremedos de análises científicas, de estudos sobre Espiritismo, de reflexões filosóficas. Tem desde uma "resposta" brasileira ao kardeciano O Livro dos Médiuns - Nos Domínios da Mediunidade, de 1955 - até relatos supostamente pioneiros de dados sobre Biologia.

E isso tudo também traz muita incoerência. Afinal, são livros lançados por Chico Xavier. E, além do mais, a pretensão "científica" piora, na medida em que a transmissão de conhecimento é confusa e deturpada por uma série de mistificações e pelo pedantismo. O conteúdo dessas obras completa e consagra a figura absurda e aberrante do fictício médico da imaginária cidade de Nosso Lar.

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