segunda-feira, 9 de novembro de 2015

Espiritismo Anedótico?


Uma das gafes cometidas pelo "movimento espírita" envolve a obra Brasil, Coração do Mundo, Pátria do Evangelho, livro de teor ufanista e que, como livro sobre História do Brasil, consiste num dos piores livros já lançados no país em todos os tempos.

Antes que os chiquistas acusem esta constatação de "inveja contra um homem de bem" - no caso, Francisco Cândido Xavier - e "perseguição contra os ensinamentos superiores de espíritos benfeitores", é bom deixar claro que o livro é desmascarado por si só, uma vez que, pretensamente revelador, ele apenas reproduz uma visão de História do Brasil, ao mesmo tempo tosca, solene e preconceituosa, que existia nos livros didáticos da época, ano de 1938.

É claro que as acusações de "inveja", "perseguição" e outras alegações negativas contra quem questiona tudo que Chico Xavier havia feito em sua vida são papo furado, já que eles não têm coragem de contra-argumentar as análises que todos nós fizemos comparando textos aqui e ali e apresentando fatos e conceitos diversos.

Este caso, por exemplo, revela a impropriedade, por definitivo, de atribuir a autoria deste e tantos outros livros, a Humberto de Campos. Como espírito, podemos garantir que ele nunca foi ligado a Chico Xavier, o mito de que o autor maranhense apareceu para falar aos brasileiros por intermédio do mineiro não passa de uma mentira descarada.

Calúnia? Desaforo? Não. Basta comparar os textos que Humberto de Campos escreveu em vida com os que são atribuídos a seu espírito. A disparidade de estilos é simplesmente aberrante, em todos os aspectos.

Só mesmo a cegueira da emoção saudosa para a mãe de Humberto ver alguma "semelhança" entre o que ele escreveu em vida e o que Chico Xavier lançou sob o nome do prestigiado autor. E, o que é pior, os herdeiros de Humberto já desconfiavam da fraude e o advogado destes, Milton Barbosa, chegou a mostrar, para jornalistas, exemplos dessa fraude que não é difícil de se constatar.

Afinal, o Humberto de Campos que esteve entre nós tinha escrita fluente, culta mas simples, coloquial mas bem feita, falava de fatos culturais de seu tempo e constantemente usava uma narrativa descontraída e vibrante.

Já o "espírito Humberto de Campos" tinha escrita pesada, rebuscada, solene e prolixa, culta mas afeita a vícios de linguagem (como cacófatos), se concentrava em fatos religiosos e usava uma narrativa melancólica, triste e cuja leitura soa cansativa e entediante.

É claro que em alguns momentos o "espírito Humberto" tentava "mudar". Era o "animado viajante de Marte" ou o "excitado entrevistador do espírito de Marilyn Monroe", embora fosse também o "tirânico acusador" das vítimas do incêndio do Gran Circo Norte-Americano de Niterói, ocorrido no final de 1961. Alguns espetáculos textuais para "quebrar" um pouco a narrativa de padre católico que se tornou a obra do suposto espírito.

Um desses momentos "diferentes" foi quando "Humberto" escreveu algo que "lembra demais" um capítulo de um livro satírico, O Brasil Anedótico, de 1927, que reaparecia como "texto sério" em Brasil, Coração do Mundo, Pátria do Evangelho. Sim, um texto cômico que era reproduzido como uma passagem "séria" da História do Brasil, com semelhanças que indicam plágio.

Só que a comédia acabou sendo servida pelo então presidente da Federação "Espírita" Brasileira, Antônio Wantuil de Freitas, Tentando negar o plágio, Wantuil tentou argumentar que a semelhança dos dois textos provém da "necessidade do espírito" em "reproduzir as ideias anteriormente escritas":

"Os trechos de “Brasil Anedótico”, que são indicados como plagiados por Francisco Xavier, não podem ser considerados como tais. Qualquer escritor, relatando em nova obra o que já dissera em outra, repete frequentemente as mesmas expressões. Ademais, não haveria necessidade de plagiar naquela narrativa feita em termos comuns. Muitos dos plágios apontados são aliás transcrições de trechos de outros livros e se encontram entre aspas, na obra psicografada". 

O que Wantuil ignora é que um escritor, quando tenta relançar suas ideias, ainda que reproduza os mesmos argumentos, não o faz com a reprodução simples do que já foi escrito, a não ser quando o contexto exige. E, neste caso, não procede a hipótese de que o "espírito Humberto" teria que reproduzir um texto de um livro para reforçar uma ideia.

O próprio tema da lei de aposentadorias, que o Humberto de Campos original comentou a partir de um texto do Mosaico Brasileiro, obra de Moreira de Azevedo, não necessitaria de um texto reproduzindo as mesmas expressões, mas de uma redação que, embora possa evocar as mesmas ideias, tente apresentar outras diferentes e ampliadas.

Para quem não conhece a obra e a pessoa de Moreira de Azevedo, a menção de alguns dados principais sobre este autor revela o aspecto surreal do capítulo do livro de Chico Xavier, o que faz seu "espiritismo" parecer uma grande piada, dessas que rendem gargalhadas histéricas.

Manuel Duarte Moreira de Azevedo foi um médico e historiador bastante famoso. Tendo vivido entre 1832 e 1903, ele ensinou História no Colégio Pedro II, no Rio de Janeiro. Sua obra mais famosa foi o livro Mosaico Brasileiro, que em si já era um livro humorístico, que fazia uma abordagem bem-humorada sobre curiosidades históricas.

O livro foi lançado em 1869, está disponível no setor de obras raras da Biblioteca Nacional e tem alguns exemplares vendidos na Estante Virtual, portal de venda de livros usados pela Internet. A obra fez muito sucesso nos meios literários da época.

Humberto de Campos, em seu O Brasil Anedótico, fazia comentários trazidos por fontes bibliográficas diversas, dele e de outros autores. Os créditos eram citados como epígrafes para cada texto do livro.

Ver que Humberto fez um comentário humorístico de um livro de humor e, depois, ele foi reproduzido como "artigo sério" num livro de credibilidade duvidosa, como o de Chico Xavier, feito por encomenda do Estado Novo à FEB (visando a proteção institucional da entidade, numa época em que centros "espíritas" eram reprimidos pela polícia), é algo insólito e se soma a uma carreira de confusões e escândalos que envolveu o anti-médium brasileiro.

Segue aqui as reproduções do texto de Humberto de Campos, extraído de O Brasil Anedótico, e o que Chico Xavier fez usando o nome do autor em um capítulo do livro ufanista. Portanto, primeiro o original, e depois o plágio, nesta presente postagem:

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A LEI DAS APOSENTADORIAS

Humberto de Campos - O Brasil Anedótico - Editora Leite Ribeiro

Moreira de Azevedo – “Mosaico Brasileiro”, pág. 52.

Chegada ao Rio de Janeiro em 1808 a família real portuguesa com todo o seu séquito de fidalgos e fâmulos, foi posta em execução a chamada lei das aposentadorias, a qual obrigava os proprietários e inquilinos a mudarem-se, cedendo as casas para residência dos criados e servidores d’el-rei. Bastava que o fidalgo desejasse uma casa, para que o juiz aposentador intimasse o morador por intermédio do meirinho, que se desempenhava do seu mandato escrevendo sumariamente na porta, a giz, as letras P. R. Estas significavam — “Príncipe Regente”, ou, como interpretava o povo — “ponha-se na rua”.

Era Agostinho Petra de Bitencourt juiz aposentador quando, um dia, lhe apareceu um fidalgote, requerendo aposentadoria em uma excelente casa, apesar de já ter uma. Dias depois veio pedir-lhe mobília e, finalmente, escravos.

Ao receber o terceiro pedido, Agostinho Petra, que acompanhava a indignação do povo com tantos abusos da Corte, gritou para a esposa, no interior da casa:

— Prepare-se Dona Joaquina, que pouco tempo podemos viver juntos.

E indicando, para a mulher, que acorrera, o fidalgote insaciável:

— Este senhor já duas vezes me pedir casa, depois mobília, e agora, criado. Brevemente quererá, também, mulher, e como eu não tenho outra senão a senhora, ver-me-ei forçado a servi-lo!

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TRECHO DO CAPÍTULO "D. JOÃO NO BRASIL"

Francisco Cândido Xavier - atribuído ao "espírito Humberto de Campos". Brasil, Coração do Mundo, Pátria do Evangelho. Editora da FEB, 1938.

A chamada lei das aposentadorias obrigava todos os inquilinos e proprietários a cederem suas casas de residência aos favoritos e aos fâmulos reais. Bastava que qualquer fidalgote desejasse este ou aquele prédio, para que o Juiz Aposentador efetuasse a necessária intimação, a fim de que fosse imediatamente desocupado. Ao oficial de justiça, incumbido desse trabalho, bastava escrever na porta de entrada as letras “P. R.”, que se subentendiam por “Príncipe Regente”, inscrição que a malícia carioca traduzia como significando — “Ponha-se na rua”.

Moreira de Azevedo conta em suas páginas que Agostinho Petra Bittencourt era um dos juizes aposentadores ao tempo de D. João VI, quando lhe apareceu um fidalgo da corte, exigindo pela segunda vez uma residência confortável, apesar de já se encontrar muito bem instalado. Decorridos alguns dias, o mesmo homem requer a mobília e, daí a algum tempo, solicita escravos. Recebendo a terceira solicitação, o juiz, indignado em face dos excessos da corte do Rio, exclama para a esposa, gritando para um dos apartamentos da casa:

— Prepare-se, D. Joaquina, porque por pouco tempo poderemos estar juntos.

E, indicando à mulher, que viera correndo atender ao chamado, o fidalgo que ali esperava a decisão, concluiu com ironia:

— Este senhor já por duas vezes exigiu casa; depois pediu-me mobília e agora vem pedir criados. Dentro em breve, desejará também uma mulher e, como não tenho outra senão a senhora, serei forçado a entregá-la.

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