terça-feira, 24 de maio de 2016
O caso Ana Hickman e o caos da vida amorosa no Brasil
No último fim de semana, um jovem fanático pela apresentadora Ana Hickman, da Rede Record, invadiu um hotel em Belo Horizonte, onde ela estava para divulgar um dos produtos que levam o seu nome e quase provocou uma tragédia, tendo que sofrer a dele, lembrando a frase de Allan Kardec: "melhor que caia um do que caiam várias pessoas".
O jovem, Rodrigo de Pádua, de 30 anos, sentia paixão doentia pela apresentadora, que é casada com seu agente, o empresário Alexandre Correa, e tem um filho do mesmo nome do marido. Rodrigo ignorava essa condição e escrevia frases ensandecidas que se queixavam da "paixão não-correspondida".
Ele havia chegado ao hotel na tarde do último dia 21 e, entrou no quarto da apresentadora, que estava com o cunhado, Gustavo Correa, e a concunhada e assessora, Giovana Oliveira, esposa de Gustavo. Ele teria rendido Gustavo primeiro, obrigando-o a dirigir-se ao quarto, e depois obrigou ele, Ana e Giovana a ficarem de costas.
Rodrigo então deu dois tiros que acertaram Giovana, que saiu ferida sem gravidade. Gustavo sentiu que poderia reagir e avançou sobre Rodrigo, Houve luta corporal e, na tentativa de desarmar Rodrigo, Gustavo o baleou, causando sua morte. Depois disso, Gustavo desceu até a recepção do hotel para entregar a arma.
O Brasil vive uma situação dramática no que se diz à carência amorosa e aos modelos ideológicos de machismo e emancipação feminina. Neste caso, o mal não está no casamento de Ana Hickman, que expressa com o marido uma relação de cumplicidade que se amplia na cooperação familiar, já que o cunhado Gustavo é da equipe que cuida da carreira dela, mas em outros aspectos bastante delicados vindos de uma sociedade ainda dominada por valores machistas.
Rodrigo personifica aquela teimosia doentia de homens que querem que mulheres se sujeitem a seus desejos e vontades. Seria um feminicida em potencial, já que estava indignado com a "indiferença" de Ana (ora, ela nem sabia que ele existia; ele teria sido um anônimo fã, como muitos), e eventualmente um feminicida que atingiria a esposa de outro, como Guilherme de Pádua, que assassinou a colega Daniella Perez em 1992, esposa de outro ator, Raul Gazolla.
SOCIEDADE MACHISTA
É um dado surreal homens que se acham no direito de vida e morte de suas mulheres, mas ignoram a própria tragédia. Um país com medo de encarar óbitos de feminicidas e cuja imprensa conservadora também tem receio de noticiar tais óbitos. Imagine o ex-promotor de Atibaia, Igor Ferreira, que mandou matar a esposa grávida, morrer de infarto em casa. E Doca Street morrendo no hospital, provavelmente derrotado pelo câncer. Mas suas vítimas morreram com menos idade que eles.
É um machismo que mata e se recusa a morrer, que pela fúria recorre ao revólver, à faca e outras armas, mas tem um medo enorme de encarar tumores malignos, ataques cardíacos ou acidentes de trânsito, causas potenciais dos feminicidas. Um machismo que, ideologicamente, tenta resistir simbolicamente nas restrições que tenta introduzir sutilmente na emancipação feminina.
Isso pega mais pesado nas mulheres solteiras, entregues a um processo de imbecilização cultural que inclui um gosto musical mais rasteiro, uma religiosidade exagerada e um apego a um entretenimento vazio de conteúdo e importância, sendo capachos do que a mídia dita para elas curtirem e apreciarem.
É certo que existe a regra da mulher inteligente e de personalidade distinta que precisa se vincular à imagem de um marido ou namorado, pouco importando se é uma relação de amor ou conveniência, uma liberdade de escolha ou um trampolim social. Simbolicamente, no contexto brasileiro, isso acaba sendo visto como um "filtro" para dificultar a frequência de mulheres emancipadas e solteiras como se observa em países como França e Bélgica.
A "MULHER IDEAL" E A "NÃO-IDEAL"
O grande problema não é exatamente a mulher se casar, mas a distribuição desigual de casadas e solteiras. A imagem da solteira é idiotizada pela grande mídia: ou é a fanática por noitadas, como as ex-integrantes do Big Brother Brasil, ou é a que aceita ser "coisificada" e ter seu corpo transformado numa mercadoria de consumo, como se nota em Solange Gomes, ex-musa da Banheira do Gugu Liberato, e a funqueira Renata Frisson, a Mulher Melão.
Mas há também, fora do âmbito recreativo, a imagem estereotipada as solteiras "recatadas", geralmente sem apelo sexual, que a grande mídia também trabalha sob o pretexto do "popular": moças infantilizadas que ouvem geralmente "pagode romântico", axé-music e "sertanejo", são de classe média baixa e, "encalhadas", seu único envolvimento com os homens é através da relação com os afilhados, que se equipara à amizade entre duas crianças.
A grande mídia não trabalha apenas a imagem da mulher ideal, como a das apresentadoras, atrizes, jornalistas de TV e modelos de passarela, dotadas de algum diferencial de personalidade, associadas ao charme e à beleza naturalmente deslumbrante, consideradas "mulheres ideais". Ela também trabalha o oposto, ao promover a degradação de outras mulheres que não têm o aprimoramento cultural das "ideais".
As mulheres "não-ideais" são geralmente submissas à mídia, não têm muito o que dizer por conta própria, e são empurradas a uma solteirice compulsória, combinada a uma baixa-auto estima forjada pela manipulação midiática, que as impele a apreciar os piores referenciais culturais ou estabelecer uma personalidade submissa às convenções sociais ou mesmo aos ditames machistas.
Não se vê uma mulher solteira, no Brasil, que se destaca por um gosto musical mais refinado. Rock alternativo? Só se virar cover de uma banda de "forró eletrônico". MPB mais sofisticada? Só se aparecer na trilha sonora de novela da Rede Globo.
Isso faz com que as mulheres consideradas "ideais" tenham um perfil cada vez mais raro. A mulher que apresenta um programa de TV de viagens que toca uma banda de rock melodioso que quase ninguém conhece não existe aos montes.
Em contrapartida, há genéricos de Solange Gomes em pelo menos uma dezena de subcelebridades que fazem o tipo da "morena fogosa" de personalidade um tanto atrapalhada e cuja única "tarefa" é mostrar o corpo como uma mercadoria em liquidação.
Mesmo quando há atrizes consideradas "solteiríssimas", o referencial delas é lamentável: o pastiche de música caipira de Chitãozinho & Xororó, o comercialismo pedante de Ivete Sangalo, o "funk carioca", o "pagode romântico", ou "qualquer som da moda".
Essas solteiras refletem um tipo de mulher que só vai ouvir Flávio Venturini, Maria Bethânia, Djavan e Elis Regina se a Rede Globo deixar. Medem o gosto por livros pelos listões de best sellers, nem que seja para consumir apenas auto-ajuda, títulos religiosos ou "livros para colorir". O gosto literário chega a ser bem mais rasteiro do que as misses que afirmavam só ler O Pequeno Príncipe, de Antoine de Saint-Exùpery.
CONFUSÃO E DESIGUALDADE
A péssima aculturação das mulheres solteiras comuns, que se tornam até arrogantes nos seus referenciais culturais rasteiros - nas mídias sociais, há quem defenda essa "cultura" rasteira com muita convicção e fanatismo - , se comportando o contrário da "mulher ideal", menos pela obrigação de ter uma boa aparência, boa voz e bom vestuário do que pela imposição da mídia de serem "as piores possíveis".
Isso é tão certo que a chamada "ditadura da beleza" é a que mais pesa nas mulheres "não-ideais". Elas é que são induzidas a buscar a "estética ideal" mais do que as mulheres "ideais", mais espontâneas em suas qualidades.
Daí o fato de subcelebridades, funqueiras, axézeiras, mulheres-frutas, "miss bumbum", ring girls do UFC e similares terem apetite redobrado em plásticas faciais, uso de botox, apliques no cabelo e outros processos cosméticos e cirúrgicos que, em tese, são feitos para o aperfeiçoamento estético para competir com as mulheres "ideais".
Muitas mulheres comuns vão na onda. No meio do caminho, várias morrem fazendo tratamentos cirúrgicos ou cosméticos em clínicas de valor duvidoso, geralmente sem especialização nem higiene. Mas o aperfeiçoamento estético não reflete no aprimoramento cultural.
Também nem as causas modernas conseguem reverter a situação. Tantas dessas musas apelam para o apoio à causa LGBT, tentam adotar uma "atitude corajosa" em relação ao sexo, capricham na adesão às novidades tecnológicas, mas se atrapalham, sobretudo quando tentam forjar feminismo, confundindo-o com misandria (horror a homens).
Há uma grande confusão e isso reflete o pior legado do machismo às mulheres do contexto "mais popular": a precária educação escolar que atinge também a classe média e a péssima educação midiática que impõe os piores referenciais culturais, transformando seu público em capachos dos interesses midiáticos e do mercado. E a mulher solteira, no Brasil, é apenas uma das vítimas dessa verdadeira rede de intrigas do rádio, da TV e da imprensa escrita e digital.
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