quarta-feira, 18 de maio de 2016

O primeiro trote de Chico Xavier com Humberto de Campos

HUMBERTO DE CAMPOS, EM 1909. O ESCRITOR FOI A MAIOR VÍTIMA DO OPORTUNISMO IGREJEIRO DE CHICO XAVIER.

Nem sempre o mel das palavras representa sinceridade e valor transformador. Nem sempre a aparência da bondade de fachada revela a verdadeira generosidade e solidariedade. Em muitos casos, a roupagem religiosa da "bondade" e da "fraternidade" escondem armadilhas perniciosas e traiçoeiras, como os buracos cobertos da mais admirável e verdejante relva.

Francisco Cândido Xavier era um estranho caipira, católico ortodoxo em ideias e rituais, mas tinha apenas o detalhe heterodoxo da paranormalidade, único ponto que fez com que o "médium" fosse excomungado pelos católicos. No entanto, em valores ideológicos, Chico Xavier era tão retrógrado quanto, por exemplo, Gustavo Corção, só ganhava deste a arte de manipular as ideias com dóceis palavras.

A maior obsessão de Chico Xavier foi com Humberto de Campos. Consta-se que foi uma revanche contra comentários irônicos do escritor maranhense, que não gostava de ver a "literatura do além" concorrendo com a literatura dos vivos.

Daí que o anti-médium mineiro resolveu usurpar o escritor, se passando pelo espírito dele em supostas psicografias, que sabemos serem bem mais prolixas, igrejeiras e melancólicas do que o estilo que o escritor nos deixou em vida.

Isso criou sérios problemas, mas num Brasil de leitura precária e com hábitos aberrantes (recentemente as pessoas passaram a "ler" livros para colorir), em que as pessoas não conseguem ver diferença entre Carlos Drummond de Andrade e Machado de Assis, muitos deixam passar as diferenças aberrantes entre a obra de Humberto deixada em vida e o suposto legado espiritual.

A "brincadeira" de Chico Xavier começou com um relato de um suposto sonho, que não se sabe se realmente houve, no qual um suposto Humberto se destacava de uma multidão para falar com o "médium" e, perguntando "Você é o menino do Parnaso?", teria se apresentado e cumprimentado o outro.

Era a desculpa que Chico usou para usurpar o nome de Humberto, dando início a uma farsa que, sabemos, gerou um processo judicial que deu em nada. Afinal, nem todos os juristas conseguem entender a complexidade das coisas. E isso vale até hoje, diante de um Sérgio Moro parcial que só incrimina quem for ligado ao Partido dos Trabalhadores e aliados, pouco importando as leis.

Reproduzimos aqui a primeira mensagem que Chico Xavier e seus colaboradores - deve ter havido revisão de Antônio Wantuil de Freitas, presidente da FEB, e editores associados - publicaram usando o nome de Humberto de Campos, intitulada "Aos Meus Filhos", divulgada em Pedro Leopoldo, no dia 09 de abril de 1935.

Antes de ler o texto, o leitor deve se atentar para algumas informações:

1) Num dos parágrafos ("Convidado pelo Senhor..."), Chico Xavier inseria valores da Teologia do Sofrimento, corrente católica que trata a desgraça humana como "meio de purificação da alma", na mensagem atribuída a Humberto. "Minha primeira dor foi a minha primeira luz" e "Minhas dores são a minha prosperidade" comprovam bem isso.

2) O texto é muito prolixo para a prosa de Humberto, e mesmo o tom paternal, feito para tentar envolver emocionalmente os filhos - a carta não se destina à viúva, Catarina - , não pode ser visto como autenticador da mensagem, pois ele não apresenta a fluência quase cinematográfica da prosa original de Humberto.

3) O tom da mensagem é bastante melancólico, como todas as obras "espirituais" de Humberto de Campos. Isso pode supor, em tese, que Humberto teria se entristecido ao morrer cedo (48 anos), mas isso não vem ao caso, porque simplesmente o estilo de mensagem "espiritual" destoa severamente do estilo pessoal do escritor maranhense, pois a "psicografia" revela uma outra linguagem, bem mais deprimente, pedante e desesperadamente igrejista (há até o apelo para se rezar o Pai Nosso!).

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Aos meus filhos

Meus filhos, venho falar a vocês como alguém que abandonasse a noite de Tirésias, no carro fulgurante de Apolo, subindo aos cumes dourados e perfumados do Hélicon. Tudo é harmonia e beleza na companhia dos numes e dos gênios, mas o pensamento de um cego, em reabrindo os olhos das rutilâncias da luz, é para os que ficaram, lá longe, dentro da noite onde apenas a esperança é uma estrela de luz doce e triste.

Não venho da minha casa subterrânea de São João Batista, como os mortos que os larápios, às vezes, fazem regressar aos tormentos da Terra, por mal de seus pecados. Na derradeira morada do meu corpo ficaram os meus olhos enfermos e as minhas disposições orgânicas. Cá estou como se houvesse sorvido um néctar de juventude no banquete dos deuses.

Entretanto, meus filhos, levanta-se entre nós um rochedo de mistério e de silêncio.

Eu sou eu. Fui o pai de vocês e vocês foram meus filhos. Agora somos irmãos. Nada há de mais belo do que a lei de solidariedade fraterna, delineada pelo Criador na sua glória inacessível. A morte não suprimiu a minha afetividade e ainda possuo o coração de homem para o qual vocês são as melhores criaturas desse mundo.

Dizem que Orfeu, quando tangia as cordas de sua lira, sensibilizava as feras que se agrupavam enternecidas para escutá-lo. As árvores vinham de longe, transportadas na sua harmonia. Os rios sustavam o curso nas suas correntes impetuosas, quedando-se para ouvi-lo. Havia deslumbramento nas paisagens musicalizadas. A morte, meus filhos, cantou para mim, tocando o seu alaúde. Todas as minhas convicções deixaram os seus lugares primitivos para sentir a grandeza do seu canto.

Não posso transmitir esse mistério maravilhoso através dos métodos imperfeitos de que disponho. E, se pudesse, existe agora entre nós o fantasma da dúvida.

Convidado pelo Senhor, eu também estive no banquete da vida. Não nos palácios da popularidade ou da juventude efêmera, mas no átrio pobre e triste do sofrimento onde se conservam temporariamente os mendigos da sua casa. Minha primeira dor foi a minha primeira luz. E quando os infortúnios formaram uma teia imensa de amarguras para o meu destino, senti-me na posse do celeiro de claridades da sabedoria. Minhas dores eram a minha prosperidade. Porém qual o cortesão de Dionísio, vi a dúvida como espada afiadíssima balouçando-se sobre a minha cabeça. Aí na Terra entre a crença e a descrença está sempre ela, a espada de Dâmocles. Isso é uma fatalidade.

Venho até vocês cheio de amorosa ternura e se não me posso individualizar, apresentando-me como o pai carinhoso, não podem vocês garantir a impossibilidade da minha sobrevivência. A dúvida entre nós é como a noite. O amor, entretanto, luariza estas sombras. Um morto, como eu, não pode esperar a certeza ou a negação dos vivos que receberem a sua mensagem para a qual há de prevalecer o argumento dubitativo. E nem pode exigir outra coisa quem no mundo não procederia de outra forma.

Sinto hoje, mais que nunca, a necessidade de me impessoalizar, de ser novamente o filho ignorado de dona Anica, a boa e santa velhinha, que continua sendo para mim a mais santa das mães. Tenho necessidade de me esquecer de mim mesmo. Todavia, antes que se cumpra este meu desejo, volto para falar a vocês paternalmente como no tempo em que destruía o fosfato do cérebro a fim de adquirir combustível para o estômago.

- Meus filhos!... Meus filhos!... Estou vivendo... Não me veem?... Mas, olhem, olhem o meu coração como está batendo ainda por vocês.

Aqui, meus filhos, não me perguntaram se eu havia descido gloriosamente as escadas do Petit Trianon; não fui inquirido a respeito dos meus triunfos literários e não me solicitaram informes sobre o meu fardão acadêmico. Em compensação, fui arguido acerca das causas dos humildes e dos infortunados pelas quais me bati.

Viviam pois com prudência na superfície desse mundo de futilidades e glórias vãs.

Num dos mais delicados poemas de Wilde, as Órcades lamentam a morte de Narciso junto de sua fonte predileta, transformada numa taça de lágrimas.

- Não nos admira - suspiram elas - que tanto tenhas chorado!... Era tao lindo!...

- Era belo Narciso? - perguntou o Iago.

- Quem melhor do que tu poderia sabê-lo, se nos desprezava a todas para estender-se nas relvas da tua margem, baixando os olhos para contemplar, no diamante da tua onda, a sua formosura?

A fonte respondeu:

- Eu adorava Narciso porque, quando me procurava com os olhos, eu via, no espelho das suas pupilas, o reflexo da minha própria beleza.

Em sua generalidade, meus filhos, os homens, quando não são Narciso, enamorados de sua própria formosura, são a fonte de Narciso.

Não venho exortar a vocês como sacerdote; conheço de sobra as fraquezas humanas. Vivam porém a vida do trabalho e da saúde, longe da vaidade corruptora. E, na religião da consciência retilínea, não se esqueçam de rezar. Eu, que era um homem tão perverso e tão triste, estou aprendendo de novo a minha prece, como fazia na infância, ao pé de minha mãe, na Parnaíba.

- Venham, meus filhos!... Ajoelhemos de mãos postas. Não veem que cheguei de tão longe?! Fui mais feliz que o Rico e o Lázaro da parábola, que não puderam voltar;;; Ajoelhemos no templo do Espírito, inclinem vocês a fronte sobre o meu coração. Cabem todos nos meus braços? Cabem, sim...

Vamos rezar com o pensamento em Deus, com a alma no infinito. Pai Nosso... que estais no céu... santificado seja o vosso nome...

Humberto de Campos (sic)
Pedro Leopoldo, 09 de abril de 1935

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