domingo, 12 de fevereiro de 2017
Seria a "moral espírita" uma moral elitista?
Embora o "espiritismo", em tese, dê mais valor a dois mandamentos moisaicos - "Amai a Deus sobre todas as coisas" e "Amai o próximo como a si mesmo" - , observa-se dois outros mandamentos, próprios da doutrina de raiz roustanguista, bem mais valorizados por seus palestrantes: "Ao sofredor se deve aceitar as desgraças impostas" e "o sofredor deve perdoar seu algoz nos seus abusos".
Vinculado à Teologia do Sofrimento, corrente medieval da Igreja Católica, o "movimento espírita" tem motivos históricos para isso. A doutrina tem raiz roustanguista que, por seu ranço católico rigoroso, se baseou em Os Quatro Evangelhos para restaurar elementos do Catolicismo jesuíta português, que mantém muitas abordagens medievais, para compor a doutrina que de "kardecista" só tem o nome.
Em certos aspectos, o "espiritismo" brasileiro é mais católico do que o próprio Catolicismo, e, apesar da fachada "futurista" que toma emprestado o aparato da Doutrina Espírita original, o "movimento espírita" carrega um conteúdo ideológico mais próximo do Catolicismo medieval, como se a doutrina da FEB tivesse aproveitado do "espólio" descartado pelos católicos no final do século XIX.
Daí o acolhimento fácil a um beato católico ortodoxo, Francisco Cândido Xavier, cuja única diferente era de ter sido um paranormal. Um rezador de terços, adorador de imagens de santos, moralista retrógrado, caipira ultraconservador que adorava circo e que, por isso, tomou emprestado suas atividades ilusionistas para "anabolizar" uma paranormalidade que existia, mas era limitada: dizia conversar com os espíritos da mãe e de um antigo padre jesuíta muito conhecido de nossa História.
Chico Xavier virou então um mito do "movimento espírita" e, com isso, o anti-médium mineiro - o termo "anti-médium" se refere à recusa do "médium" se manter numa função intermediária, devido ao "culto à personalidade" - inseriu vários dogmas e ritos católicos, dos quais a Teologia do Sofrimento, corrente que toma o sofrimento como "caminho mais curto para se chegar a Deus".
Ultimamente, as pregações "espíritas" se dedicam a enfatizar a Teologia do Sofrimento, em que até um tal "poeta alegre" de Portugal se torna um animado propagandista. A ideia de dizer que a pessoa é beneficiada pelos prejuízos revela, portanto, muito mais do que uma moral conservadora que faz apologia à opressão, mas também uma moral elitista que parece legitimar as desigualdades sociais.
Sim, porque vejamos a quem se dirige os apelos de "aceitação do sofrimento" e de "perdão ao agressor", criando um espetáculo de "misericórdia" que aparece muito lindo e muito comovente, mas estabelece posições desiguais na justiça humana, desigualdades aceitas sob a desculpa de que "as coisas serão melhores na vida espiritual".
Quando se fala na "aceitação do sofrimento", se dirige ao sofredor, ao oprimido, ao desafortunado. Se um injustiçado morreu, atribui-se um juízo de valor de "pagamento de crime da vida passada". Note-se que esse discurso sempre se dá para as vítimas, e não para os algozes.
Aos algozes, se dirige outro discurso. "Perdõe, sempre e incondicionalmente", revela a "moral espírita", num discurso aparentemente belo, mas de uma complacência estranha, que contrasta quando, do lado do sofredor, se mantém uma exigência severa de aceitar o "remédio amargo" mesmo quando está acima da dose necessária, causando os efeitos colaterais.
No caso da tragédia de Bophal, na Índia, quando um vazamento de gases tóxicos de uma usina da britânica Union Carbide, em 1984, deixou vários mortos, a "santa" Madre Teresa de Calcutá, quando foi perguntada sobre o caso, ela fez um pedido às pessoas para perdoar os algozes, no caso os empresários britânicos, cujo descaso propiciou o acidente. "Perdoe, perdoe", disse Madre Teresa, com um tom moralista e antipático, lembrando o "nosso" Chico Xavier.
O "espiritismo" tem até um princípio, nunca assumido no discurso, que é o do "fiado espírita". É uma crença de que os algozes têm uma encarnação inteira e relativamente longa para cometer abusos e crimes dos quais só sofrerão os efeitos drásticos em encarnações posteriores. É como se, numa promoção, fosse permitido a alguém praticar todo tipo de mal, sem sofrer consequências danosas para si, só tendo que "pagar pelo que fez" a partir da próxima encarnação.
Isso mostra o quanto a "moral espírita" é uma moral elitista e o caso da pediatra de Rondonópolis, Mato Grosso do Sul, explicitou essa postura. E ela não é um caso isolado, pois até os "espíritas" mais "responsáveis" têm o mesmo juízo de valor severo, cruel e punitivo,
É só ver o teor das "mensagens positivas" que pedem para as pessoas "aceitarem o sofrimento". Apenas difere na sua forma, mas a essência não difere da declaração da pediatra que não quis atender uma menina vítima de estupro porque ela "estava pagando pelo que fez em vidas passadas" e se recusava a atender alguém com "problemas espirituais".
Não é diferente. De um lado, diz-se que a vítima é "culpada" e está "pagando pelo que fez". De outro, o palestrante que, com um tom paternal, diz para a pessoa "aceitar o sofrimento", porque "o que é uma vida de desgraças diante das bênçãos da eternidade?", como se fosse moleza aguentar infortúnios que esmagam a alma durante anos sucessivos. Não são os palestrantes "espíritas" a sofrer desgraças...
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