O FUNQUEIRO MC SMITH, CITADO POR UM DOS 33 ESTUPRADORES DE JACAREPAGUÁ.
O "funk carioca" é um ritmo muito estranho. Marcado por limitações sonoras que denunciam uma rigidez estética nivelada por baixo, suas letras variam entre um engajamento frouxo e simplório e grosserias explícitas, e, com interesses meramente comerciais, se traveste de movimento ativista para arrancar verbas públicas e seduzir os movimentos ativistas a aceitá-los sem questionamentos.
É um ritmo tendencioso, demagógico, conservador mas revestido de um verniz de pretensa liberdade que não se verifica na prática. Existe uma relação hierárquica entre o DJ, uma espécie de mentor, e o intérprete, no caso o MC, que é o porta-voz e o fetiche, e o som do "funk" é sempre o mesmo, seja o intérprete ou a temática que for. Só varia depois de longas temporadas.
O "funk" voltou aos noticiários policiais depois que um caso de estupro coletivo ocorrido em Jacarepaguá, no Rio de Janeiro, quando 33 homens levaram uma jovem de 16 anos para uma casa para ela ser dopada e estuprada, com o ato sendo gravado em vídeo e compartilhado por outros internautas entusiasmados.
Um dos estupradores havia citado um "baile funk" e um trecho da música "Mais de 20 engravidou", de MC Smith, conhecido intérprete de "proibidão" ("funk" com temáticas mais pesadas) que havia participado de apresentações da Furacão 2000, equipe que quis se autopromover com uma falsa solidariedade a Dilma Rousseff num evento anti-impeachment de 17 de abril passado.
Se os "espíritas" acreditam que o ultraconservador e retrógrado Francisco Cândido Xavier, o Chico Xavier tão conhecido pela sua religiosidade escancaradamente "tradicional" (leia-se católica e medieval), é "progressista" mesmo quando diz que a melhor manifestação do sofredor é "ficar calado, sem reclamar", fica complicado dizer que o "funk" não é "progressista".
O "funk", que devolveu o povo carioca aos parâmetros do começo do século XX, trabalha uma retórica que, ideologicamente, envolve uma série de contradições. O ritmo apresenta perspectivas de progresso cultural, provocação comportamental e riqueza artística, mas na realidade é primário, grotesco, retrógrado e adota atitudes completamente conservadoras.
Confusos, dirigentes do "funk" como MC Leonardo e ideólogos associados, como antropólogos e cineastas documentaristas, tentam dizer que o machismo do "funk" é "reflexo da realidade". Se confundem em argumentos quando tentam justificar que o "funk" não é obrigado a fazer conscientização nem defender a educação e os valores sociais edificantes.
O "funk" pretende ser o que não é, e recusa-se a ter responsabilidade de suas próprias pretensões. É uma grande confusão, que faz o ritmo entrar num impasse que, em outros momentos, poderia contornar com relativa facilidade.
Afinal, o caso do estupro coletivo, associado a um ritmo que se autoproclamava "feminista", e que, no calor das denúncias, foi surpreendido com a indiferença de Valesca Popozuda, que se dizia "militante feminista" mas foi passear na Disney com a ex-Big Brother Brasil Ana Paula Renault (não se está dizendo que Valesca foi conivente, ela pode até ser contra, mas ela não reagiu ao assunto com a firmeza esperada), fez os partidários do "funk" ficarem transtornados.
O choque entre discurso e realidade do "funk" o deixa em situação insustentável até na hora de comparar o ritmo carioca ao samba, ao rock ou ao jazz. Com todas as contradições que um ritmo culturalmente autêntico pode apresentar, o "funk" é estranho até diante dessa condição, já que o ritmo, na verdade, é um fenômeno meramente comercial e culturalmente postiço.
O samba, o rock e o jazz apresentavam variações sonoras e uma liberdade artística que o "funk" nunca teve. O samba, maior objeto de comparação do "funk", tinha uma infinidade de variações e derivados: jongo, lundu, coco, maracatu etc. Quando o samba ainda tinha festas reprimidas pela polícia, já havia uma variação quase erudita, chamada "chorinho".
Já o "funk" sempre foi preso numa mesma estrutura sonora que só variava, e mesmo assim tendenciosamente, de dez em dez anos. É quando o DJ sente as pressões sociais de públicos que ele precisa alcançar - como as classes A e B e turistas estrangeiros - ou de outras circunstâncias e daí ele muda o "funk" de acordo com as conveniências.
Ultimamente o "funk" só está "mudando" por causa dessas conveniências. A atenção que buscou chamar dos estrangeiros obrigou DJ e MCs a mudarem de atitude, mas sem a espontaneidade que se vê nos ritmos culturais autênticos.
A figura do MC, por exemplo, levou mais de 20 anos para descobrir a existência de um instrumento musical. O rock já se serviu de orquestras e arranjos elaborados com menos de cinco anos de existência.
A sofisticação do jazz, por sua vez, só era pouco perceptível pela precariedade da tecnologia fonográfica no começo de seu sucesso. O samba sempre teve uma diversidade instrumental que influía na música. E até o blues procurava variações sonoras à sua maneira, mesmo dentro de uma estrutura fixa de composição de versos.
O "funk", não. É só ver que o ritmo levou tempo para "mudar o som" e mesmo assim sem criatividade. Era apenas uma troca de "batida" e "sons de fundo". Nos anos 90, era só uma batida eletrônica. Nos anos 2000, a imitação de ritmo de umbanda. Nos anos 2010, uma combinação de sons imitando sirene e galopes, e um sâmpler de um rapaz balbuciando. E é uma mesma roupagem sonora para diferentes intérpretes.
Somente o "funk melody", que assimila elementos do pop convencional, e o "funk de DJ", conhecido como "funk exportação", no qual o DJ precisa concorrer com seus similares estrangeiros e precisa fazer um "som para turista ver", elaborando mais as colagens sonoras, é que existe alguma variação. Mesmo assim, altamente tendenciosas e movidas pelas circunstâncias. Sem falar que certas músicas gravadas pela cantora Anitta, ícone do "funk melody", nem "funk" são.
Como atitude, o "funk" está associado a uma visão glamorizada da pobreza, da ignorância e da libertinagem sexual e comportamental. Diante disso, seus ideólogos se contradizem constantemente quando as pretensões "vanguardistas" e "progressistas" se chocam com uma realidade conservadora e retrógrada, o que faz os funqueiros renegarem os próprios compromissos que prometeram assumir.
Um evento de riquinhos promovendo um "baile funk" no Pier Mauá recebeu protestos nas mídias sociais Internet porque "glamourizava a pobreza". O que poucos sabem é que ele é, sim, um reflexo e um espelho das pretensões do "funk" de atingir públicos de maior poder aquisitivo.
Falta de autocrítica, mania de coitadismo - o "funk" sempre procura fazer papel de "vítima" quando sofre impasses - , incapacidade de explicar seus equívocos. A repetição de circunstâncias parece fazer o "funk" ser vitorioso mais uma vez.
Mas, com as mudanças no contexto social e o aumento de reações críticas a muitos incidentes - o cyberbullying não tem mais a tolerância social de antes, por exemplo - , o "funk" é um dos alvos de um nível inédito de questionamentos, dos quais seus ideólogos já não conseguem ter o mesmo êxito que tiveram antes em rebater. Eles acabam sendo vítimas de suas próprias contradições.
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