terça-feira, 7 de junho de 2016
As pessoas pensam que "bondade" é subproduto da religião
O Brasil peca por ser simplório. Se apega a estereótipos, à ilusão do jogo de aparências. Isso mostra o quanto o país tornou-se atrasado e o afastamento de Dilma Rousseff da Presidência da República, substituída pelo conservador Michel Temer, abriu a Caixa de Pandora dos males da sociedade brasileira.
Da mesma forma que os brasileiros acham que "opinião" não é algo que nasce de suas consciências mas um produto que vem pronto dos noticiários de TV e dos programas jornalísticos de rádio, através de comentaristas supostamente "esclarecidos" (mas cada vez se comprovando mais burros e estúpidos do que nós poderíamos admitir mesmo a contragosto), a ideia de "bondade" tem o mesmo sentido.
Muitos acham que a "bondade" não é um sentimento autônomo e, sim, um subproduto da religião, algo que não vem separado da fé religiosa. Ajudar o próximo torna-se, com essa interpretação, tão somente um ritual em que só varia a "grife" religiosa que a produz.
É por essa razão que, mesmo com um número ínfimo e humilhantemente inferior de beneficiados, o "médium" Divaldo Franco é considerado o "maior filantropo do Brasil", não pelo resultado realizado, constrangedor de tão inexpressivo, mas pela chancela religiosa ligada à sua pessoa.
A Mansão do Caminho não chegou a beneficiar, em toda sua trajetória, sequer 1% dos brasileiros, em termos quantitativos. Em termos qualitativos, além de um inócuo processo educativo de limitadas virtudes, como ensinar a ler, escrever e trabalhar, há o proselitismo religioso, que é aceito sem questionamentos porque ele sempre vem sob a desculpa do "ensinamento do bem".
Bobagens como as "crianças-índigo" que, além de ser um delírio esotérico que um casal de estadunidenses, hoje separado, utilizou para vender livros com muita facilidade, é uma discriminação contra pessoas de personalidade inconvencional e perfil intelectual diferenciado, são ensinadas sob o aparato dos "bons ensinamentos".
VISÃO DO "VENCEDOR"
Aí um divaldista, infiltrado numa comunidade de ateus no Facebook - é comum religiosos e teístas se associarem a essas comunidades para sutilmente tentar converter as pessoas - , diz que "já é muito" o projeto educacional da Mansão do Caminho ensinar a "ler, escrever e trabalhar", confundindo ponto de largada com linha de chegada.
Além desse equívoco de confundir o começo com o fim de um caminho, o divaldista tentava defender o título de "maior filantropo do Brasil" a Divaldo Franco com argumentos supostamente racionais, mas sem pé nem cabeça. Ele opina como se fosse um assessor da própria Mansão do Caminho ou algum propagandista religioso similar. O que ele cita é marketing, não uma visão realista das coisas.
Observando como discurso ideológico a "bondade" como algo inseparável da religião, porque é submetida ao paradigma da fé religiosa, mostra que a "bondade" só é significativa quando sob a sombra da religião, seja ela católica, evangélica ou "espírita", mas sempre uma religião, pelo menos no sentido "ocidental" da "religiosidade cristã".
Junte-se vários aspectos. Uma sociedade conservadora, marcada por uma elite privilegiada. Uma sociedade do "vencedor", que zela pelos "prêmios" conquistados. Diante disso, é compreensível que a "bondade" que não ameace privilégios de classe seja vista como "mais significativa" do que aquela que busca ampliar os benefícios do povo, mesmo sacrificando privilégios de classe existentes.
Comparando o projeto educacional da Mansão do Caminho e o Método Paulo Freire, projeto de educação para adultos das classes populares, é evidente que este último é bem mais significativo, pela capacidade de efeitos a serem causados e a amplitude dos mesmos na sociedade.
Em outras palavras, há mais bondade e caridade em Paulo Freire do que em Divaldo Franco. Em Paulo Freire, as pessoas são estimuladas a questionar o mundo, buscar soluções, se unir para a luta pelos direitos e, se preciso, reagir contra os abusos cometidos pelo poder dominante em vários de seus aspectos.
Em Divaldo Franco, porém, as pessoas são induzidas a serem "carneirinhos sociais", apenas sendo gentis e simpáticas com os outros e fazer alguma coisa honestamente, sem enganar nem explorar o outro. Todavia, diante dos abusos do poder dominante, as pessoas são aconselhadas a "reagir" com perdão, resignação e os problemas serão resolvidos, mediante a solicitação confortável da prece, pela "força de Deus".
E por que Divaldo Franco é tido como "mais expressivo" no seu projeto educacional do que Paulo Freire? Porque vivemos uma sociedade plutocrática na qual a "bondade" é apenas uma qualidade servil à fé religiosa. Não é o número de beneficiados que vale num "ato de bondade", mas o vínculo com preceitos e valores de natureza religiosa.
Uma escola que "ensina" que o mar um dia foi "cortado pelo meio", que a primeira mulher a surgir na Terra foi gerada da costela de um homem ou que pessoas com uma inteligência acima do comum são "índigos" ou "cristais" é vista como "mais transformadora" do que um projeto de ensino que impulsione pessoas a fazer passeatas para pedir melhores condições de trabalho, ensino e vida em comunidade.
"BONDADE" SEM RELIGIÃO É VISTA COMO "PIRATARIA"
Isso envolve um conteúdo ideológico sutil. A "bondade" tem que se submeter à religião. A solidariedade tem que ser castrada pela fé religiosa, senão vira "guerrilha", que é o que se prega, de forma preconceituosa, as pessoas que querem apenas justiça social e protestam contra abusos e injustiças impostos pelas elites ou por leis que estas façam em causa própria.
"Bondade" é a pessoa que sofre aguentar desgraças acima de sua capacidade perdoar o algoz e sobreviver às custas de leis abusivas e castradoras e reduzir sua qualidade de vida a uma dieta de pão e água. "Bondade" é a pessoa ver que a tarifa cobrada numa conta é abusiva e ela pagar resignadamente e agradecer ao poder político pelo abuso cometido.
Na visão do "espiritismo" brasileiro, a "bondade" é apenas uma mercadoria simbólica patenteada por Francisco Cândido Xavier e um "produto" que só faz sentido sob o selo da fé religiosa. Outras religiões podem reproduzir o "produto bondade", até da forma como quiserem, mas a "bondade" que ocorre fora do "selo de aprovação" religioso é visto como se fosse um "produto pirata".
Daí que o Método Paulo Freire incomoda mais uma boa parte das pessoas do que o método da Mansão do Caminho, por mais que o primeiro seja mais eficiente e significativo em benefícios e resultados.
É porque existe o temor, de uma sociedade plutocrática e outras classes solidárias ao poder dominante, mesmo as pobres, de que o Método Paulo Freire crie "conflitos" por causa do estímulo ao raciocínio crítico e à inconformação com os abusos e irregularidades do poder dominante da sociedade burocratizada, privatista e elitista.
A ideia do "incômodo", dentro de uma perspectiva religiosa, naturalmente conservadora, é um ponto que, no seu juízo de valor, "macula" iniciativas como as do educador Paulo Freire, erroneamente tido como "manipulador ideológico".
Olhem só quem fala: o método que insiste em dizer que pessoas com inteligência incomum são "índigos" ou "cristais", num processo de discriminação social "positiva", um sutil e cruel preconceito contra pessoas que não se encaixam num repertório de convenções e compreensões socialmente aceitos, porém limitados e equivocados, não é visto como "manipulador ideológico".
Isso vai contra a natureza da moral humana. Transformar a "bondade" numa qualidade subordinada à religião é simplesmente subestimar a capacidade natural das pessoas se ajudarem por conta própria, sem se prenderem a paradigmas religiosos. Como se "ajudar" fosse uma qualidade menos importante do que "acreditar". E isso não é bom.
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