terça-feira, 7 de novembro de 2017
Liberdade religiosa não é desculpa para se fazer o que quer
Até que ponto existe o limite entre ser vítima de injustiça e fazer jogo de cena com vitimismo? Até que ponto não pode haver, também, espécie de bullying jurídico, com processos judiciais que mais soam censuras do que reparos a danos morais?
O Brasil está sofrendo a crise das instituições, porque o topo da pirâmide se encontra em estado avançado de perecimento. Só no caso da violência contra a mulher, a prevalência de valores patriarcalistas na sociedade brasileira, mesmo entre uma parcela das mulheres, revela o quanto é socialmente aceito o "método Império Romano" de resolver os problemas conjugais, através do feminicídio de natureza conjugal.
Essa aceitação cria situações tão surreais que a sociedade moralista ou mesmo a imprensa se arrepiam de medo quando se fala da proximidade da morte de dois famosos feminicidas, Doca Street e Pimenta Neves, velhos e com indícios de doenças talvez terminais, contraídas não porque eu ou você quisemos ou não, mas porque os dois fizeram por onde para massacrar seus organismos, seja por um passado de tabagismo intenso e cocaína ou pela overdose de remédios que quase foi fatal.
Sim, perdemos muita gente importante ou adorada antes dos 60 anos - Santos Dumont, Leila Diniz, Renato Russo, Mário de Andrade, Gláucio Gil, Mané Garrincha, Lauro Corona, Cazuza, Chico Science, Sylvia Telles, Nara Leão, Noel Rosa, Olavo Bilac, Ayrton Senna, Cacilda Becker, Glauber Rocha e Raul Seixas - , que medinho é esse de que dois homens ricos que mataram suas mulheres podem morrer na casa dos 80 anos, quando, por sorte, eles poderiam até ter morrido bem antes?
Se as pessoas têm esse apego doentio a assassinos ricos - não só a Doca e Pimenta, mas, fora do femincídio, um Darly Alves (mandante da morte de Chico Mendes, outro ilustre falecido antes dos 60) com histórico de graves crises de úlcera - , só comparável ao que, nos EUA, se tem em relação a Charles Manson (outro aos pés do túmulo na casa dos 80 e que, se tivesse fora da prisão, teria morrido bem antes), então o nível moral da chamada "boa sociedade" está muito, muito ruim.
Isso reflete a seletividade que temos, e que mostra o quanto a moral severa não traz respostas à sociedade, assim como o status quo de toda ordem, do dinheiro ao prestígio religioso. Muitos se esquecem que, até nos atos de bullying e cyberbullying, também há o peso do status quo, quando os agressores também gozam de algum prestígio social e seus atos de humilhação a outrem encontram respaldo até de pessoas inocentes que pensam que isso é uma brincadeira ou espetáculo de humor.
INTOLERÂNCIA RELIGIOSA
Fala-se em "liberdade religiosa", muitas vezes, não sob o prisma das classes populares, que valorizam manifestações como a umbanda, o candomblé e o islamismo como crenças válidas que refletem também um rico acervo cultural de seus seguidores. Em muitos casos, a "liberdade religiosa" serve como escudo para proteger, por outro lado, crenças das classes dominantes e que, não raro, também praticam atos de intolerância religiosa, a mesma alegação de que dizem sofrer.
Houve, no Brasil, um aumento substancial de denúncias de intolerância religiosa, mas, conforme dados mais recentes, houve apenas uma denúncia envolvendo o "espiritismo kardecista" contra 39 envolvendo os cultos afro-brasileiros. Uma outra denúncia envolveu uma religião "evangélica", embora, geralmente, os evangélicos, pelo menos os chamados "pentecostais", estão associados a atos de intolerância contra a umbanda e o candomblé.
O que muitas pessoas ignoram é que os atos de intolerância religiosa, na verdade, são panos de fundo de outras intolerâncias, como a intolerância das elites que começou no plano político - uma parcela da sociedade não suportava ver seus privilégios serem limitados durante os 13 anos em que o PT estava no poder - e hoje liberou espaço até para crimes de ódio, preconceitos sociais abertos e humilhações gratuitamente pesadas, vindas de setores privilegiados da sociedade.
O "espiritismo" e as religiões "neopentecostais", como a Igreja Universal do Reino de Deus e a Assembleia de Deus, demonstram serem religiões de elite, e estão afinadas com o cenário político atual. Em 2016, aumentaram textos "espíritas" apelando para a "aceitação do sofrimento", trazendo a mensagem subliminar de defesa aos retrocessos sociais do governo Michel Temer. Enquanto isso, "neopentecostais" usavam o Poder Legislativo para criar leis para legitimar tais retrocessos.
Nomes como Magno Malta, Marco Feliciano, Silas Malafaia e Janaína Paschoal se projetaram defendendo retrocessos sociais "em nome de Deus". No "espiritismo", não se pode subestimar o fato dos "médiuns" Divaldo Franco e João Teixeira de Faria, o João de Deus, aparecerem ao lado de políticos retrógrados como João Dória Jr. e Michel Temer, algo que não deve ser visto como mera coincidência, pois está clara a afinidade de sintonia com o "novo momento".
Os "médiuns" também estão associados à desfiguração do legado de Allan Kardec, rebaixado, no Brasil, a uma retomada do antigo Catolicismo jesuíta medieval, algo que deixa muito claro quando as "casas espíritas" evocam jesuítas como "espíritos protetores".
Refletindo o vício brasileiro de dissimulação de atos pela "ginástica mental", os "espíritas" traem Kardec mas insistem em dizer que são "rigorosamente fiéis" a ele. Dizer que eles são traidores não é desaforo nem ofensa. É só ver os livros lançados por Divaldo Franco e por Francisco Cândido Xavier para cairmos da cadeira diante da presunção de que os dois são (supostamente) "os maiores discípulos de Kardec no mundo".
A bibliografia desenvolvida por Chico Xavier e Divaldo Franco mostra sempre conceitos igrejistas e aspectos que contrariam, de forma explícita, os postulados espíritas originais. Para piorar, os dois investem em aspectos e atitudes já condenados claramente por Kardec em O Livro dos Médiuns e O Livro dos Espíritos: textos rebuscados, ideias impróprias, uso de nomes ilustres para impressionar a opinião pública etc.
Mas como o Brasil é a pátria da pretensão, na qual feminicidas falam em "direito à honra", latifundiários mandantes de homicídios em "direito à propriedade" e movimentos fascistas, como os que envolvem Jair Bolsonaro, em "defesa da Pátria", as elites fazem o que querem e não querem sofrer os efeitos de seus atos. Se sofrem, alegam "intolerância" e "perseguição" e uns chegam a processar seus críticos diante da desesperada luta para se salvarem das consequências.
E aí muitos apelam para a "ginástica mental" para justificar suas atitudes e procedimentos equivocados, lutando para prevalecer, dependendo do caso, a omissão, a permissividade ou a impunidade.
No caso da "farinata" de João Dória Jr., que de forma explícita lançou o alimento no evento Você e a Paz, promovido por Divaldo Franco, quando se fala que houve vínculo de imagem de Divaldo e seu evento a esse alimento condenado por movimentos sociais e entidades de saúde pública, não se está cometendo intolerância religiosa.
Está tudo explícito. É a regra da publicidade. O prefeito de São Paulo foi escolhido para ser homenageado por Divaldo e seu evento mesmo quando até a imprensa que apoiava João Dória Jr. admitia que ele estava em decadência. E João Dória não era um "Cristo crucificado pelos romanos", mas um queridinho das elites ricas e poderosas.
Além disso, João Dória Jr. poderia ter usado apenas paletó e camisa de colarinho, como todo ricaço, mas decidiu vestir a camiseta do Você e a Paz, citando o nome de Divaldo Franco. E se o prefeito nunca foi processado pelo uso da imagem do evento para promover o alimento condenado pelos nutricionistas mais sérios, é porque Divaldo assumiu o risco de tal empreitada.
Divaldo pôs sua reputação a perder, dez meses após ter feito um juízo de valor contra os pobres refugiados do Oriente Médio. Aliás, não seria um ato de intolerância religiosa esse juízo de valor, acusando, sem provas, os refugiados - vários deles muçulmanos - de terem sido "tiranos sanguinários em outra vida"?
No episódio da "farinata", Divaldo, cuja fama remete a um "sábio que responde a tudo e tudo prevê", pôs sua reputação a perder, pois, se agiu sem saber, desmentiu o "sábio" que se dizia ser, e, se agiu sabendo, desmente também a fama de "humanista" que encantava seus seguidores.
O que se deve admitir é que não se pode colocar a lógica, o bom senso, a coerência ou a ética no lixo, em benefício da fé. Se uma religião ou um ídolo religioso cometem atitudes equivocadas, ele deve ser questionado por isso. Não é intolerância religiosa, mas intolerância a vícios como a hipocrisia ou a omissão. A liberdade religiosa não é desculpa para se fazer o que quer. Misericórdia não é permissividade.
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