O processo dos herdeiros de Humberto de Campos contra Francisco Cândido Xavier e a FEB poderia ter saído vitorioso. As supostas psicografias de Chico Xavier revelam claramente irregularidades de estilo e outros aspectos relacionados aos autores mortos alegados, que apenas uma leitura atenta pode comprovar a fraude, para desespero de Alexandre Caroli Rocha, um "especialista em análise textual" que se recusava a fazer análise textual para verificar as "obras mediúnicas".
No entanto, havia dois problemas. Um foi o enunciado da ação judicial, que pedia à Justiça analisar se havia veracidade ou não nas obras "psicografadas" sob o nome de Humberto de Campos. Outro era a compreensão estreita dos juízes que avaliaram o caso, que apenas usaram como base teórica a questão dos direitos autorais.
No primeiro problema, a situação complicou para os herdeiros. Afinal, no caso da "psicografia" ser considerada autêntica, os familiares receberiam o dinheiro dos direitos autorais, participando do lucro da venda dos livros sob o nome do escritor. No caso de ser considerada fraude, Chico Xavier e a FEB teriam que indenizar os familiares do falecido autor. Isso fez os "espíritas" definirem, injustamente, os herdeiros de Humberto de Campos como "gananciosos" e "mercenários".
No segundo problema, os juízes, limitados a essa interpretação estreita, só entenderam o caso como uma questão de quem se responsabilizaria pelos direitos autorais de obras ditas "do além-túmulo". Algumas interpretações remetem ao "médium" a responsabilidade dos direitos, na condição de "autor empírico", o que seria uma festa para Chico Xavier, apesar do processo ter gerado num empate técnico.
Em todo caso, o empate fez o mito de Chico Xavier crescer e, com a memória curta das pessoas, que consagram imagens e estereótipos tardios e dóceis de quem esconde um passado mais sombrio, esse mito passou a crescer de forma descontrolada, a ponto de, praticamente, muitos considerarem a ideia de "verdade" privatizada: seu proprietário é Francisco Cândido Xavier e seus discípulos e herdeiros mais próximos.
O que poucos se lembram é que os herdeiros de Humberto de Campos, representados pelo advogado Milton Barbosa - o advogado da FEB, por outro lado, foi Miguel Timponi - , chegaram a recorrer da sentença, enquanto Chico Xavier teria que eliminar o nome de Humberto para "evitar maiores dissabores", usando, a título de paródia, o pseudônimo "Irmão X", imitação parcial de um dos pseudônimos que Humberto havia lançado em vida, o Conselheiro XX.
Sob o novo nome, Chico Xavier lançou o livro Lázaro Redivivo, em 1945, o primeiro dessa nova fase, na qual o nome de Humberto de Campos só era "reconhecido" nos meios "espíritas". A obra, todavia, dava sequência à usurpação que o anti-médium mineiro fazia do autor maranhense, transformando-o num "deprimente sacerdote" que nada tinha a ver com o estilo original do finado escritor.
Mas Chico Xavier, ao longo de pouco mais de uma década após o julgamento do processo de 1944, construiu seu arrivismo sob a ajuda de Antônio Wantuil de Freitas (pelo menos o antigo presidente da FEB poderia ser endeusado pelos chiquistas, não é mesmo?) e várias experiências foram feitas até a oportunidade de atrair para si o cético Humberto de Campos Filho.
Chico Xavier já usurpou a falecida jovem professora Irma de Castro Rocha, a Meimei, a ponto de atrair a cumplicidade do viúvo desta, Arnaldo Rocha (hoje já falecido). Partiu para supostas práticas de psicofonia e materialização, como forma de alimentar ainda mais o sensacionalismo da imagem do "médium". E começava a trabalhar livros "científicos" ao lado de Waldo Vieira, antigo menino prodígio da suposta mediunidade.
Diante disso, a FEB também procurou abafar e condenar ao esquecimento o livro O Enigma Chico Xavier Posto à Clara Luz do Dia, do jornalista Attila Paes Barreto, lançado em 1944 e que revelava detalhes sobre as irregularidades da trajetória do "médium". Excelente trabalho de jornalismo investigativo, o livro, porém, é oficialmente visto como "rancoroso" e está fora de catálogo, tornando-se uma preciosa raridade.
FASCINAÇÃO E ASSISTENCIALISMO
E aí chega-se a 1957 e Chico Xavier resolve convidar Humberto de Campos Filho para assistir a uma doutrinária (missa "espírita") num "centro espírita" de Uberaba. Então produtor de TV, o filho do autor maranhense havia demonstrado seu ceticismo quanto às supostas psicografias do pai, chegando a dizer que não autorizaria o uso do nome do escritor, em entrevista à Revista da Semana, de 08 de abril de 1944, respondendo à seguinte pergunta:
"- Mas encarando a questão seriamente. Acha concebível que aqueles livros tenham sido escritos por seu pai?
- Claro que não. Tanto assim que evitamos tocar no assunto e nunca demos a nossa permissão para a publicação desses livros a meu pai. Frequentemente apareciam delegações espíritas ou padres católicos e até representantes de outras religiões, todos querendo convertê-lo. Ele a todos recebia e ouvia com a devida consideração, mas era só. Nunca foi espírita."
Postura muito diferente ele escreveu no livro Irmão X, Meu Pai, que Humberto Filho lançou em 1997, quando descreveu o seu parecer, nesta época, sobre o desfecho do processo que ele, sua mãe e seu irmão Henrique moveram contra o "médium" e a FEB, 53 anos atrás:
"A causa não deveria terminar senão do jeito que terminou: praticamente um empate técnico. Os herdeiros nada obtiveram senão a retirada do nome do escritor daqueles livros. Em uma conotação com o pseudônimo que Humberto de Campos usou na série de onze livros com estórias galantes e humorísticas - Conselheiro XX - os livros psicografados por Chico Xavier passaram a ter a assinatura de Irmão X".
Humberto chegou a atribuir o processo aos interesses pessoais de Milton Barbosa, acusado de manipular a viúva do escritor e mãe do produtor, Catarina Vergolino, a "dona Paquita", e ainda alegou que o episódio "só serviu para fazer propaganda do Espiritismo", entendido aqui o "espiritismo" deturpado no Brasil.
E o que fez Humberto mudar de opinião? Não bastasse ele trabalhar num meio televisivo, em que há um lobby de profissionais "espíritas" - vários simpatizantes de Chico Xavier, como Augusto César Vannucci, Nair Bello, Paulo Goulart, Nicette Bruno, Ana Rosa, e, mais recentemente, Carlos Vereza - , ele ainda se rendeu aos encantos do manipulador de mentes que era o anti-médium mineiro.
A narrativa de Humberto, ainda que pareça "linda" aos leitores tomados de muita paixão religiosa, revela três armadilhas usadas por Chico Xavier para seduzir Humberto Filho e conquistar sua confiança (ou credulidade, ou, digamos, boa-fé): o apelo à emoção, a fascinação e o assistencialismo.
As três estratégias são consideradas perigosas. O apelo à emoção (Argumentum Ad Passiones) estava no aparato "comovente" da doutrinária e outras atividades que Chico mostrou a Humberto Filho. É considerado um tipo de falácia, e um dos mais perigosos, recentemente associado à pós-verdade, fenômeno no qual mentiras e meias-verdades "confortáveis" estabelecem supremacia sobre a realidade lógica e objetiva.
A fascinação, ou fascinação objetiva, é um tipo de obsessão descrito por Allan Kardec em O Livro dos Médiuns. É considerado um tipo grave, ainda que em nível inferior ao da possessão. Na fascinação obsessiva se trabalham ideias e paradigmas supostamente sublimes para veiculação de ideias e práticas mistificadoras que trazem ideias desprovidas de coerência, lógica e bom senso. Em muitos casos o Ad Passiones é um instrumento usado ela fascinação obsessiva.
A fascinação obsessiva, na narrativa que reproduziremos abaixo de Irmão X, Meu Pai, se manifesta sobretudo no abraço de Chico Xavier em Humberto de Campos Filho, no qual Chico lança mensagens "carinhosas" e faz um falsete que fez o filho "suspeitar" se era a voz do autor maranhense. Vale lembrar que Chico teria seduzido Humberto Filho também pela linguagem tenra usada nas supostas cartas do "espírito Humberto de Campos".
O assistencialismo, também visto como uma prática negativa de "caridade tendenciosa", em que a ajuda ao próximo é quase sempre inócua, feita mais para promover a imagem do "benfeitor", que tira vantagem dessa "filantropia", é visto no caso pela caravana de Chico Xavier, que dá à suposta caridade um caráter ostensivo, quando se percebem que os propósitos são bem inócuos e meramente paliativos (doação de mantimentos). Algo que apenas resolve parcialmente o problema.
Segue então o texto que deve ser lido sem qualquer paixão religiosa, mas com um criterioso senso crítico para percebermos como Humberto de Campos Filho caiu na "doce emboscada" armada por um dos maiores deturpadores da Doutrina Espírita para abafar qualquer risco de ser novamente processado:
"Chegamos a tempo de conseguir entrar na sala superlotada, onde pouco depois, começaria a sessão, com a presença de Chico. Lá pelas tantas, vozes partidas da mesa, por ele presidida, pediam que Humberto de Campos Filho se aproximasse para falar com o médium. É fácil imaginar minha emoção. Sei que meus olhos estavam inundados pelas lágrimas quando nos abraçamos, comovidamente. De início, foi o Chico que falou, dizendo coisas tocantes e carinhosas. À certa altura, era outro alguém... Talvez meu pai?... E o que ouvi teve o efeito de um impulso que fez disparar uma sucessão de soluços, que pareciam que jamais iriam parar.
No dia seguinte, um sábado, ainda com a impressão de que meu espírito havia tomado um banho de luz, fomos participar da distribuição de mantimentos.
Sem mais nem menos, tive a nítida impressão de que estava em alguma cidade da Galileia, nos primórdios do cristianismo.
Em um enorme galpão, sem paredes laterais, senhoras e moças, alegres e sorridentes preparavam a sopa que, mais tarde, seria distribuída entre os pobres. Pilhas de cenouras, montes de batatas, iam sendo descascadas e levadas para os caldeirões que, a um canto, fumegavam cheirosamente.
Ao cair da tarde, nos incorporamos à caravana, liderada pelo Chico, que ia distribuir sacolas de mantimentos pelos casebres da periferia. Ao lado do Waldo Vieira, caminhamos naquele pôr-de-sol, com a certeza de que uma legião de espíritos luminosos também caminhavam conosco. Lá pelas tantas, Chico entrou numa palhoça, de um só cômodo. Ficamos à porta, com espaço bastante para ver Chico sentar-se na beirada de uma cama estreita e miserável. Nela estendido, um pobre velho, pouco mais que um monte de ossos, sob uma cabeça coberta por uma grande barba e cabelos desgrenhados. O coitado fez menção de erguer-se mas Chico, colocando a mão no seu peito, não deixou. De onde estávamos não era possível ouvir o que ele dizia. Mas o que disse fez o pobre homem se transformar em um enorme sorriso, cheio de gratidão e alegria. E, ao mesmo tempo, sentimos uma onda de perfume, de jasmins colhidos naquele instante, invadir completamente aquela tapera..."
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