segunda-feira, 6 de março de 2017

A pegadinha literária do pretenso Humberto de Campos


Quando se questiona a suposta psicografia de Francisco Cândido Xavier com base nas análises literárias, esse pode não ser o único critério a ser considerado para tais pesquisas, mas ela pode ser suficiente para fazer um levantamento de várias irregularidades.

O texto é expressão de quem escreve e, nele, são colocados os aspectos pessoais. Por outro lado, deve-se considerar a ideia de que o falso se esforça em se parecer com o verdadeiro, o que faz com que a veracidade não seja atestada ou presumida pelo número de semelhanças existentes ou pela aparente complexidade de algumas dessas similaridades. A veracidade se dá quando não há uma diferença sequer que comprometesse a natureza peculiar de um fenômeno ou expressão.

Os "espíritas" tentam uma postura hesitante para evitar o prejuízo dos livros de Chico Xavier, um ídolo religioso com status de popstar. Daí que eles tentam, até sob a roupagem "intelectual", dizer que "não é" possível analisar as irregularidades apenas pela pesquisa textual, como se houvesse chance de atribuir autenticidade a mortos que "pensam" como Chico Xavier.

Mais uma comparação, usando textos relativamente longos, envolve Humberto de Campos. Primeiro mostramos um texto do livro Memórias Inacabadas, segunda parte das memórias do autor que saiu incompleta, pelos efeitos graves da doença e pelo falecimento prematuro do escritor maranhense. Segundo, mostramos um texto atribuído a seu espírito, incluído no livro Crônicas de Além-Túmulo, de Chico Xavier, lançado em 1937, dois anos após o póstumo Memórias Inacabadas.

Lendo apressadamente, o leitor terá a impressão de que é o mesmo estilo de Humberto. Mas isso é bastante enganoso, Havendo um esforço de uma leitura mais apurada e cautelosa, desprovida de paixões religiosas (tentação das mais perigosas que pode atingir o ser humano), se verá que os estilos são diferentes e que a "erudição" do "texto espiritual" (que já apresenta apelo igrejeiro) é algo "qualquer nota" que não pode indicar a veracidade autoral a Humberto.

Portanto, esse texto é uma mostra que as pegadinhas literárias da suposta psicografia podem enganar o leitor, apresentando semelhanças ocasionais, que nem foram tantas assim como se supõe, entre as obras originalmente lançadas por Humberto e as ditas obras "espirituais". Havendo leitura atenta e vigilante, se verá que são estilos literários completamente diferentes.

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XIV

A HORA SAGRADA

Por Humberto de Campos - Memórias Inacabadas

Foi por esse tempo que surgiu, e verdadeiramente, em mim, a paixão literária. É possível que eu a tivesse trazido do Maranhão, escondida nas camadas subterrâneas do espírito. No discurso com que me recebeu na Academia Brasileira de Letras, na noite de 8 de maio de 1920, Luiz Murat, examinando a passagem da minha oração em que eu atribuía a influência de Coelho Neto à modificação do meu destino, opinou pela falsidade dessa suposição. O sentimento literário estava em mim; e quaisquer que fossem os fatores externos, eu viria a ser, tarde ou cedo, prosador e poeta. O que eu supunha causa desse fenômeno, constituíra, e apenas, um pretexto para a revelação, que se daria, em qualquer circunstância.

É possível que, durante a minha permanência no Maranhão, eu tivesse lançado às leiras profundas do cérebro, ignoradamente, o gosto da criação. Ele ficara, todavia, no subconsciente, como a semente d’anunziana, que os gelos do inverno escondem, mas que germina tempos depois, quando lhe é propício o clima da primavera. O que é verdade é que, um dia, eu me sentei em uma pedra tosca, na ponta da calçada de nossa casa, na parte que dava para o quintal, tendo à mão dois jornaisinhos literários, publicados em São Luís. Intitulava-se um Os Novos, e era órgão da Oficina dos Novos, associação constituída pela geração moça, orientada por Antônio Lobo e Fran Pacheco. Renascença, denominava-se o outro, e reunia uma dissidência combativa e heroica, sob a chefia de Nascimento Morais. O primeiro era sereno, ponderado, mergulhado em sonho e meditação. Trazia versos de Francisco Serra, Costa Gomes, e outro, cujo nome se me apagou na memória; e prosa de Godofredo Viana, Domingos Barbosa, Viriato Corrêa, João Quadros, e Astolfo Marques. A. J. Alves de Farias, que foi mais tarde, no Rio, diretor do Lloyd Brasileiro e era, então, chefe do distrito telegráfico no Maranhão, assinava uns alexandrinos severos, em que havia tamareiras debruçadas no Deserto. O outro periódico era mais variado e mais vivo.

Nascimento Morais, professor de português, criticava a língua d’Os Novos, arremetendo de palmatória em punho contra os rapazes do outro grupo. O que, porém, caracterizava a Renascença era a fartura de sonetos. Nas suas seis páginas amplas, espalhavam-se mais de trinta, cada um dos quais assinado por um poeta novo. Desses poetas, ao que parece, não vingou um só. À semelhança do que sucede, às vezes, as ninhadas de peru, desapareceram todos. Eu, porém, os achava, a todos, admiráveis. O que mais me impressionou foi, todavia, um de nome Otávio Galvão, autor de quatorze decassílabos realistas, de que faziam parte estes, num terceto, que nunca mais me desapareceu da lembrança:

“E, enquanto lá por fora cai a chuva,
A carne agrilhoada de desejos
Treme de gozo ao lado da viúva!”

Nos trinta e dois anos que rolaram sobre essa tarde parnaibana em que, na calçada do quintal de nossa casa, mergulhei na leitura d’ Os Novos e da Renascença, eu li grandes poemas, as obras capitais de quase todos os gênios da Humanidade. Li Homero e Virgílio; Hesíodo e Ovídio; Dante e Petrarca; Ariosto e Tasso; Shakespeare e Klopstock; Lope de Vega e Camões; Schiller e Goethe; Longfellow e Vitor Hugo. Milhões de versos passaram sob os meus olhos, entraram pelo meu entendimento, fixaram-se na minha memória, viveram na minha imaginação. Nenhum deles conseguiu, entretanto, jamais, apagar no meu cérebro esses três decassílabos de Otávio Galvão. Viva eu um século e eles viverão comigo. E quem sabe se, abusando da minha inconsciência, não serão eles as palavras que me virão à boca, profanando a santa hora da minha morte?...

Maranhão Sobrinho colaborava nos dois jornais, emprestando a cada um deles, com um punhado de versos, uma das asas da sua inspiração. Lembro-me, ainda, de dois sonetos seus, que vinham, se bem me lembro, n’”Os Novos”. Tinham por título Símbolos.

Concluída a leitura das duas folhas maranhenses, quedei-me quieto, os olhos perdidos no horizonte, que os coqueiros de Dona Páscoa enfeitavam de aranhas buliçosas. Seria difícil fazer versos? Evidentemente, não; porque, se fosse, aqueles jornaiszinhos não estariam repletos. Quem, porém, me ensinaria a fazê-los?

Resolvi examinar mais profundamente o assunto, consultando os almanaques, viveiro inesgotável de poetas. E levantei-me. O primeiro raio de sol havia tocado a semente. Ia começar, no meu coração e no meu cérebro, o milagre da germinação. Soara, para mim, a hora sagrada.

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UM CÉTICO

Por Francisco Cândido Xavier - Crônicas de Além-Túmulo - Atribuído ao espírito Humberto de Campos.

13 de Dezembro de 1935

 Ainda não me encontro bastante desapegado desse mundo para que não me sentisse tentado a voltar a ele, no dia que assinalou o meu desprendimento da carcaça de ossos.
Se o vinte e sete de outubro marcou o meu ingresso no reino das sombras, que é a vida daí, o cinco de dezembro representou a. minha volta ao país de claridades benditas, cujas portas de ouro são escancaradas pelas mãos poderosas da morte.

Nessa noite, o ambiente do cemitério de São João Batista parecia sufocante. Havia um "quê" de mistérios, entre catacumbas silenciosas, que me enervava, apesar da ausência dos nervos tangíveis no meu corpo estranho de espírito. Todavia, toquei as flores cariciosas que a Saudade me levara, piedosa e compungidamente. O seu aroma penetrava o meu coração como um consolo brando, conduzindo-me, num retrospecto maravilhoso, às minhas feições comovidas, que haviam ficado a distância.

E foi entregue a essas cogitações, a que são levados os mortos quando penetram o mundo dos vivos, que vi, acocorado sobre a terra, um dos companheiros que me ficavam próximos ao bangalô subterrâneo com que fui mimoseado na terra carioca.

- O senhor é o dono desses ossos que estão por aí apodrecendo? - interpelou-me.

- Sim, e a que vem a sua pergunta?

- Ora, é que me lembro do dia de sua chegada ao seu palacete subterrâneo. Recordo-me bem, apesar de sair pouco dessa toca para onde fui relegado há mais de trinta anos... - O senhor se lembra? A urna funerária, portadora dos seus despojos, saiu solenemente da Academia de Letras, altas personalidades da política dominante se fizeram representar nas suas exéquias e ouvi sentidos panegíricos pronunciados em sua homenagem. Muito trabalho tiveram as máquinas fotográficas na camaradagem dos homens da imprensa e tudo fazia sobressair à importância do seu nome ilustre. Procurei aproximar-me de si e notei que as suas mãos, que tanto haviam acariciado o espadim acadêmico, estavam inermes e que os seus miolos, que tanto haviam vibrado, tentando aprofundar os problemas humanos, estavam reduzidos a um punhado de massa informe, onde apenas os vermes encontrariam algo de útil. Entretanto, embora as homenagens, as honrarias, a celebridade, o senhor veio humildemente repousar entre as tíbias e os úmeros daqueles que o antecederam na jornada da Morte. Lembra-se o senhor de tudo isso?

- Não me lembro bem... Tinha o meu espírito perturbado pelas dores e emoções sucessivas.

- Pois eu me lembro de tudo. Daqui, quase nunca me afasto, como um olho de Argos, avivando a memória dos meus vizinhos. O senhor conhece as criptas de Palermo?

- Não.

 - Pois nessa cidade os monges, um dia, conjugando a piedade com o interesse, inventaram um cemitério bizarro. Os mortos eram mumificados e não baixavam à sepultura. Prosseguiam de pé a sua jornada de silêncio e de nudez espantosa. Milhares de esqueletos ali ficaram, em marcha, vestidos ao seu tempo, segundo os seus gostos e opiniões. Muito rumor causou essa parada de caveiras e de canelas, até que um dia um inspetor da higiene, visitando essa casa de sombras da vida e enojado com a presença dos ratos que roíam displicentemente as costelas dos traspassados ricos e ilustres que se davam ao gosto de comprar ali um lugar de descanso, mandou cerrar-lhe as portas pelo ministro Crispi, em 1888. Ora bem: eu sou uma espécie dos defuntos de Palermo. Aqui estou sempre de pé, apesar dos meus ossos estarem dissolvidos na terra, onde se encontraram com os ossos dos que foram meus inimigos.

- A vida é assim disse-lhe eu; mas, por que se dá o amigo a essa inglória tarefa na solidão em que se martiriza? Não teria vindo do orbe com bastante fé, ou com alguma credencial que o recomendasse a este mundo cujas fileiras agora integramos?

- Credenciais? Trouxe muitas. Além da honorabilidade de velho político do Rio de Janeiro, trazia as insígnias da minha fé católica, apostólica romana. Morri com todos os sacramentos da igreja; porém, apesar das palavras sacramentais, da liturgia e das felicitações dos hissopes, não encontrei viva alma que me buscasse para o caminho do Céu, ou mesmo do inferno. Na minha condição de defunto incompreendido, procurei os templos católicos, que certamente estavam na obrigação de me esclarecer. Contudo, depressa me convenci da inutilidade do meu esforço. As igrejas estão cheias de mistificações. Se Jesus voltasse agora ao mundo, não poderia tomar um átomo de tempo pregando as virtudes cristãs, na base, luminosa da humildade. Teria de tomar, incontinenti, ao regressar a este mundo, um látego do fogo e trabalhar anos afio no saneamento de sua casa. Os vendilhões estão muito multiplicados e a época não comporta mais o Sermão da Montanha. O que se faz necessário, no tempo atual, no tocante a esse problema, é a creolina de que falava Guerra Junqueiro nas suas blasfêmias.

- Mas, o irmão está muito cético. É preciso esperança e crença...

-Esperança e crença? Não acredito que elas salvem o mundo, com essa geração de condenados. Parece que maldições infinitas perseguem a moderna civilização. Os homens falam de fé e de religião, dentro do esnobismo e da elegância da época. A religião é para uso externo, perdendo-se o espírito nas materialidades do século. As criaturas parecem muito satisfeitas sob a tutela estranha do diabo. O nome de Deus, na atualidade, não deve ser evocado senão como máscara para que os enigmas do demônio sejam resolvidos. Não estamos nós aqui dentro da terra da Guanabara, paraíso dos turistas, cidade maravilhosa? Percorra o senhor, ainda depois de morto, as grandes avenidas, as artérias gigantescas da capital e verá as crianças famintas, as mãos nauseantes dos leprosos, os rostos desfigurados e pálidos das mães sofredoras, enquanto o governo remodela os teatros, incentiva as orgias carnavalescas e multiplica regalos e distrações. Vá ver como o câncer devora os corpos enfermos no hospital da Gamboa; ande pelos morros, para onde fugiu a  miséria e o infortúnio; visite os hospícios e leprosários. Há de se convencer da inutilidade de todo o serviço em favor da esperança e da crença. Em matéria de religião, tente materializarse e corra aos prédios elegantes e aos bangalôs adoráveis de Copacabana e do Leblon, suba a Petrópolis e grite a verdade. O seu fantasma seria corrido a pedradas. Todos os homens sabem que hão de chocalhar os ossos, como nós, algum dia, mas um vinho diabólico envenenou no berço essa geração de infelizes e de descrentes.

- Por que o amigo não tenta o Espiritismo? Essa doutrina representa hoje toda nossa esperança.

- Já o fiz. É verdade que não compareci em uma reunião de sabedores da doutrina, conhecedores do terreno que perquiriam; mas estive em uma assembléia de adeptos e procurei falar-lhes dos grandes problemas da existência das almas. Exprobrei os meus erros do passado, penitenciando-me das minhas culpas para escarmentá-los; mostrei-lhes as vantagens da prática do bem, como base única para encontrarmos a senda da felicidade, relatando-lhes a verdade terrível, na qual me achei um dia, com os ossos confundidos com os ossos dos miseráveis. Todavia, um dos componentes da reunião interpelou-me a respeito das suas tricas domésticas, acrescentando uma pergunta quanto à marcha dos seus negócios. Desiludi-me. Não tentarei coisa alguma. Desde que temos vida depois da morte, prefiro esperar a hora do Juízo Final, hora essa em que deverei buscar um outro mundo, porque, com respeito a Terra, não quero chafurdar-me na sua lama. Por estranho paradoxo vivo depois da morte, serei adepto da congregação dos descrentes.

- Então, nada o convence?

- Nada. Ficarei aqui até à consumação dos evos, se a mão do Diabo não se lembrar, de me arrancar dessa toca de ossos moídos e cinzas asquerosas. E, quanto ao senhor, não procure afastar-me dessa misantropia. Continue gritando para o mundo que lhe guarda os despojos. Eu não o farei.

E o singular personagem, recolheu-se à escuridão do seu canto imundo, enquanto pesava no meu espírito a certeza dolorosa da existência dessas almas vazias e incompreendidas na parada eterna dos túmulos silenciosos para onde os vivos levam de vez em quando as flores perfumadas da sua saudade e da sua afeição.

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