terça-feira, 28 de março de 2017

Por que a atividade de médium se corrompeu no Brasil?

"MÉDIUNS" NO BRASIL EXPRESSAM CULTO À PERSONALIDADE E POUCOS PERCEBEM.

As pessoas estão tão tomadas da tentação confortável e da sensação cômoda das paixões religiosas que não conseguem perceber as coisas. A falácia de que "não precisa de discernimento, porque tudo é amor" faz com que muitos caiam em perigosas armadilhas trazidas pelo deslumbramento religioso.

Uma delas é a idolatria, que atinge níveis piegas e bastante mórbidos, aos chamados "médiuns". A atividade, da forma como foi feita no Brasil, tornou-se desmoralizada e corrompida, eliminando de vez o caráter intermediário que deveria ser para o ofício de médium, hoje transformado em figura pitoresca, para não dizer aberrante.

O "médium" deixa de ser médium e vira anti-médium. Vira o centro das atenções. Vira o espetáculo principal, a grife, e essa constatação não se dá por alguma questão de intolerância ou rancor, mas por observações bastante objetivas. Até porque se observa mais rancor, apego e obsessão entre os seguidores desses supostos médiuns.

É bom deixar claro que esse culto aos "médiuns", que ainda por cima viram dublês de ativistas e intelectuais, embora vinculados a pregações e proselitismos bastante igrejistas e medievais, contrariam gravemente as recomendações que Allan Kardec deixou em sua obra e no Conselho Universal dos Ensinos dos Espíritos.

Isso porque Kardec consideraria esse culto uma forma de mistificação e desvio de foco. Neste caso, entendemos que até a filantropia é um desvio de foco, uma forma de abafar irregularidades, e é algo que se compara, sobretudo, à concessão de cestas básicas por um candidato a um cargo político, que serve de desvio para a incompetência que tal aspirante representa.

Em tempos de Kardec, o médium era uma figura tão discreta, de atuação eventual e muito rara de se encontrar - em tese, qualquer um pode ser médium, mas a atividade exige responsabilidades e cautelas que poucos realmente podem praticar - que ele era conhecido apenas pelo sobrenome. O médium que recebeu o espírito Erasto, por exemplo, era conhecido apenas como "senhor d'Ambel" (monsieur d'Ambel).

No Brasil, "médium" acabou tendo nome, nome do meio, sobrenome. E foi tomado pelo culto à personalidade, um tipo de vaidade tão perigoso que nenhum pretexto de humildade que a mitificação religiosa apresenta pode desmentir essa prática presunçosa. Se vê que até mesmo a "caridade" é exaltada pelos seguidores desses "médiuns" não pelos resultados obtidos, que em verdade são medíocres, mas pela imagem "glorificada" desses supostos paranormais.

O que fez a atividade se corromper, a partir do caso de Francisco Cândido Xavier, ele mesmo uma figura pitoresca que foi transformada em ídolo religioso nas mãos do ambicioso Antônio Wantuil de Freitas (ainda se espera que os chiquistas "santifiquem" esse homem, pelo menos para ter coerência com seu fanatismo), além do culto à personalidade, é a mediunidade fingida.

OS MORTOS NÃO PODEM FALAR, OS "MÉDIUNS" FALAM POR ELES.

Sim, porque as mensagens "mediúnicas" trazidas a partir de Chico Xavier e ampliadas por seus seguidores - lembrando em conta da suspeita grande quantidade de "médiuns" existente no Brasil, muito maior do que a lógica natural da atividade sugere - sempre apresentam algum aspecto comprometedor que contradiz a natureza pessoal do falecido, por mais que mostrem semelhanças também.

O caso mais aberrante foi, sem dúvida alguma, o de Humberto de Campos, embora existam outros tão aberrantes como Olavo Bilac e Auta de Souza, cujos estilos "desaparecem" nas obras de Chico Xavier que usam seus nomes.

Humberto teria feito um comentário irônico que provavelmente desagradou Chico - o de reprovar a concorrência da "literatura dos mortos" com a dos vivos, o que significou a reprovação do autor maranhense a Parnaso de Além-Túmulo - e o "médium", ainda em sua juventude, teria resolvido se vingar, assim que o próprio escritor faleceu, prematuramente, em 1948. Há que se convir que Chico Xavier tinha um fetiche por mortos prematuros.

Chico então transformou Humberto num dos "mortos do além" que o autor maranhense reprovava em vida. Nota-se que os primeiros pastiches literários atribuídos ao "espírito Humberto de Campos" parodiavam os textos de Memórias, primeiro volume biográfico lançado pelo escritor e membro da Academia Brasileira de Letras no final de sua vida.

Mas Chico já havia "transformado" Humberto de Campos em alguém diferente do que foi em vida. Foi uma grande molecagem de um rapaz de 25 anos, arrivista, ambicioso e que contou com o apoio de Wantuil e de uma equipe de redatores e editores da FEB. O "espírito Humberto" se revelava diferente até na forma de escrita.

O Humberto de Campos que esteve entre nós tinha escrita ágil, descontraída, fluente, com linguagem culta e correta, porém acessível. o "espírito Humberto" tinha escrita mais pesada, melancólica, cansativa e com linguagem forçadamente erudita, mas prolixa e com eventuais vícios de linguagem (como cacófatos, conforme identificou Milton Barbosa, advogado dos herdeiros do escritor).

Diante de tantas denúncias de irregularidades na obra de Chico Xavier, que puxou uma "escola" ruim de mediunidade para outros "médiuns", que viraram "donos de mortos", famosos ou não, a identificação de fraude, vista de forma hesitante até por acadêmicos, é fácil de ser constatada por causa do que recomendou o espírito de São Luís, em mensagem divulgada, através de outro médium, a Allan Kardec, e incluída em O Livro dos Médiuns, cap. 24, item 266:

"Por mais legítima confiança que vos inspirem os Espíritos dirigentes d vossos trabalhos, há uma recomendação que nunca seria demais repetir e que deveis ter sempre em mente aos vos entregar aos estudos: a de pensar e analisar, submetendo ao mais rigoroso controle da razão todas as comunicações que receberdes; a de não negligenciar, desde que algo vos pareça suspeito, duvidoso ou obscuro, de pedir as explicações necessárias para formar a vossa opinião".

Há muitos alertas no referido livro que desmontam a imagem glamourizada que "médiuns" como Chico Xavier, Divaldo Franco e João Teixeira de Faria, o João de Deus - este "médium curandeiro", que atua de forma irregular quanto à Ciência Espírita, porque a cura mediúnica é possível, mas não da forma como se faz no Brasil, à margem da ciência médica e sem qualquer diálogo com a mesma - , tidos como pretensos filantropos.

Uma delas foi transmitida pelo espírito Erasto: "Certamente eles podem dizer e dizem às vezes boas coisas, mas é precisamente nesse caso que é preciso submetê-las a um exame severo e escrupuloso. Porque, no meio das boas coisas, certos Espíritos hipócritas insinuam com habilidade e calculada perfídia fatos imaginados, asserções mentirosas, como fim de enganar os ouvintes de boa fé". Daí as "colônias espirituais", "crianças-índigo" ou o próprio "espiritismo" catolicizado em si mesmo.

A verdade que se tem é que os mortos não podem falar, pois os "médiuns" falam por eles, imitando habilidosamente o seu estilo. É como se fizessem um produto pirata, procurando caprichar nas semelhanças ao original, mas que sempre apontam um aspecto comprometedor, em muitos casos ridículo de tão explícito, em outros maliciosamente sutil mas nunca totalmente oculto.

Isso é terrível. E o mais terrível é quando os próprios familiares dos falecidos acabam acreditando nos supostos médiuns, que se impõem pela suposta filantropia, pela falsa erudição, pela presunção de "porta-vozes de Deus", uma série de carteiradas que deixam os contestadores em boa parte desarmados, por uma sensação de subserviência que entendem erroneamente como a "inabalável força do amor".

Aqui invertemos às coisas. Enquanto, no lado de Kardec, existem avisos como "analise as coisas pelo rigoroso controle da razão" e "embora às vezes falem em coisas boas, mensagens podem apresentar ideias falsas e mistificadoras", no Brasil, porém, há as alegações contrárias: "para quê lógica, se tudo é amor?", "embora eles cometam erros na compreensão da obra de Kardec, pelo menos se destacam na bondade (sic)".

Deixa-se de lado o questionamento rigoroso em nome da complacência religiosa, da licenciosidade da fé, que permite ao já deturpado "espiritismo" brasileiro uma série de contradições e equívocos livremente transmitidos e espalhados. São ideias que vão contra a lógica e a coerência, e não raro usam nomes de mortos para fazer propaganda política, criando artifícios para atrair o apoio dos familiares que, em verdade, são lesados por essa "brincadeira".

Isso é que derruba a atividade de "médium", que aliás é apoiada pelos veículos mais retrógrados da imprensa especializada e por setores elitistas da sociedade, pouco inclinados aos interesses sociais. Só isso poderia inspirar alguma desconfiança à imagem glorificada e glamourizada dos anti-médiuns, dotados de culto à personalidade e da carteirada religiosa para tentar abafar qualquer questionamento.

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