terça-feira, 23 de janeiro de 2018

"Funk" e "espiritismo" cooptaram esquerdas para evitar que sejam investigados


As forças progressistas brasileiras, consideradas de "esquerda", precisam rever seus valores. Suas agendas, no âmbito político, econômico e jurídico, são exemplares, com temas que profundamente analisam os problemas sociais existentes dentro de cada ramo, investindo, de maneira audaciosa e brilhante, em abordagens que a chamada mídia dominante é incapaz de assumir.

Todavia, fora desses âmbitos, as esquerdas falham. Em muitos casos, como no âmbito da cultura e da religião, seguem os mesmos pontos de vista da mídia dominante. No esporte, vivem relação de amor e ódio com astros do futebol brasileiro que, em maioria, apoiam políticos conservadores. Mas é no âmbito da cultura e religião que ocorrem os problemas mais graves.

"Funk" e "espiritismo" podem parecer duas esferas sociais opostas, porque o primeiro enfatiza a liberdade sexual e o culto ao corpo e o segundo, em tese, enfatiza a fé religiosa e os valores morais do espírito. Mas os dois fenômenos se unem quando o assunto é "humildade", usando sempre dos mesmos apelos emotivos, guardadas as diferenças de contexto.

Ambos são conservadores. O "funk" defende uma limitada emancipação social das classes populares, dentro das regras do "livre mercado" e evoca valores ligados ao machismo e à imagem glamourizada da pobreza e da ignorância populares, transformando o povo pobre numa espécie de caricatura de si mesmo.

O "espiritismo", sabemos, por mais que evoque tendenciosamente o nome e o legado de Allan Kardec, se reduziu hoje a um "outro catolicismo", mais voltado às crenças e valores medievais do Catolicismo jesuíta que dominou o Brasil durante o período colonial. Com isso, o "espiritismo" brasileiro defende uma agenda conservadora que vai do repúdio generalizado ao aborto à defesa da Teologia do Sofrimento, que faz apologia da desgraça humana.

No entanto, tanto funkeiros quanto "espíritas" cooptaram esquerdistas usando como gancho publicitário a imagem de "pobres sorridentes". Como se isso fosse, por si só, uma demonstração de apoio às classes populares. Tanto uns quanto outros adotam um discurso vitimista, um apelo falsamente assistencial e um discurso ufanista que dá a falsa impressão de positividade e progressismo.

E por que as esquerdas aderiram facilmente a esses dois cantos de sereias, que podem fazer as forças progressistas sucumbirem a uma degradação cultural por parte do "funk" e a um obscurantismo religioso por parte dos "espíritas". E por que o fato dos dois fenômenos receberem alta blindagem das Organizações Globo, símbolo da mídia dominante e conservadora, não sensibiliza os esquerdistas a evitar essa adesão?

TIM LOPES E "NOVA ERA"

O que vemos é que o "funk" e o "espiritismo" passaram a cooptar os esquerdistas visando um objetivo: evitar que eles investigassem as irregularidades por trás de cada fenômeno, que envolvem processos de arrivismo e jogos de interesses bastante estratégicos.

No "funk", o precedente teria sido o misterioso caso do jornalista Tim Lopes, sequestrado e morto em 2002 por um grupo de traficantes. Foi uma época em que a intelectualidade progressista contestava o "funk", Lopes, que, apesar de atuar na Rede Globo, fazia um jornalismo de qualidade independente, investigava casos de exploração sexual de menores em "bailes funk".

Em seguida, o "funk" passou a criar uma narrativa "positiva", se utilizando do jargão "periferia" difundido pelos livros do então presidente, em fim de mandato, Fernando Henrique Cardoso. Segundo especialistas, o "funk" personifica as relações de dependência entre Brasil e países ricos defendidas por FHC pela Teoria da Dependência.

O discurso ganhou um verniz pretensamente progressista e os funkeiros criaram um plano engenhoso. Primeiro aproveitariam a aliança que faziam e continuam fazendo com as Organizações Globo para se projetarem em tudo quanto era atração e veículo ligado à corporação da família Marinho, para depois "vender o produto" para as esquerdas, através da atuação "independente" de intelectuais vindos de veículos da imprensa conservadora ou de meios acadêmicos associados.

A cooptação das esquerdas - cujo ponto máximo foi o apoio, tão tendencioso quanto hipócrita, do DJ Rômulo Costa à presidenta Dilma Rousseff, num showmício em Copacabana, Rio de Janeiro, contra o impeachment, em 17 de abril de 2016 - era um artifício para calar a boca das forças esquerdistas e evitar que fossem investigados aspectos sombrios nos bastidores do "funk".

Mesmo as alianças que os empresários, intérpretes e DJs de "funk" exercem com os executivos da mídia dominante passam pela vista grossa dos esquerdistas, que nunca fizeram uma reportagem investigativa sobre o lado sombrio do "funk", se limitando, quando muito, a fazer coberturas apologistas e meramente descritivas dos eventos de entretenimento como os "bailes funk", dentro da imagem glamourizada da pobreza e de estereótipos associados à população pobre.

No "espiritismo", a coisa é bem mais complexa. Há o pretexto da "liberdade religiosa", confundida com a permissividade para que os "espíritas" façam o que querem e se promovam até com as memórias dos mortos, com supostas psicografias e pregações anti-doutrinárias que deixariam Allan Kardec bastante aflito e indignado.

Diante de apelos emocionais diversos, se desencoraja a investigação jornalística ou acadêmica porque "não se investiga trabalho do bem". Pouco importa se a "caridade espírita" é um terreno fértil para o superfaturamento, que "médiuns espíritas" fazem turismo tanto desviando o dinheiro da filantropia quanto recebendo dinheiro sujo de empresários. Nada é investigado e a menor suspeita é neutralizada por relatos "mansos" pedindo para "não ofender as pessoas de bem".

As esquerdas mordem a isca do "espiritismo" através de seu papo sobre "nova era" que contém um ponto adicional: a falácia que cria um discurso "progressista" para a ideia de Brasil como "coração do mundo" e "pátria do Evangelho". Era um meio de dizer que o mundo "entrará na Nova Era" se atribuir ao Brasil a conduta de "princípios humanitários (sic) da fraternidade cristã" ("fraternidade cristã" é eufemismo para supremacia religiosa).

A falácia de que isso trará um progresso para os brasileiros esconde o lado sombrio dessa condição, pois exemplos diversos mostraram os malefícios de nações que se impuseram como centros planetários e supremacias religiosas, como o Catolicismo na Idade Média.

Com isso, leva-se gato por lebre. Os esquerdistas não irão investigar um movimento religioso que "põe o Brasil para cima". Seguem o risco de defenderem figuras bastante conservadoras como Francisco Cândido Xavier e Divaldo Pereira Franco, sem que esboçasse um único questionamento sobre estas personalidades bastante retrógradas (e blindadas pela Rede Globo, como o "funk" e os políticos do PSDB).

Pior: mesmo quando Chico Xavier aparece num vídeo antigo defendendo a ditadura militar com muita convicção (a famosa entrevista no programa Pinga Fogo, da TV Tupi de São Paulo, em 1971), ou Divaldo Franco homenageando o reconhecidamente decadente prefeito de São Paulo, João Dória Jr., os esquerdistas reagem em silêncio ou, quando muito, com "perplexidade", como se estivessem sem capacidade de compreender esses aspectos sombrios.

O "espiritismo" sinalizou o apoio ao golpe de 2016 de maneira explícita e hoje segue apoiando o governo Michel Temer. Já definiu como "início de regeneração" as passeatas do "Fora Dilma" de 2016, a ponto de atribuir "despertar humanitário" a grupos retrógrados como Movimento Brasil Livre e Vem Pra Rua.

Apesar disso, não há o mesmo empenho das esquerdas em contestar os "espíritas" - que cometem um agravante que é de produzir supostas psicografias à revelia dos ensinamentos espíritas originais - da mesma forma que é feita contra os neopentecostais. Estes também pecam por terem uma agenda social retrógrada e ultraconservadora, mas pelo menos não cometem a desonestidade doutrinária que arranha a trajetória do "espiritismo" no Brasil.

COMO ROMPER COM ISSO?

As esquerdas têm um compromisso histórico com as classes populares e enfrentará um momento delicado amanhã, quando o ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva será julgado em Porto Alegre, por desembargadores do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4), devido a um motivo que já foi desqualificado: a acusação de propriedade de um triplex no Guarujá, que uma juíza de Brasília já penhorou para pagar as dívidas da OAS, revelando ser esta a verdadeira dona do imóvel.

As esquerdas não podem ficar complacentes com fenômenos duvidosos, só por causa de pequenos pretextos, sobretudo as imagens de pobres sorridentes. Deveria investigar o "movimento espírita" e o "funk" sem condescendência, porque ambos os fenômenos apresentam erros sérios que em muitos casos ameaçam o país, como a usurpação dos mortos em falsas psicografias, o reacionarismo de Chico Xavier e a coisificação da mulher através do "funk" e a depreciação da imagem da mulher solteira, através do exemplo estereotipado de Valesca Popozuda.

Há muitos pontos sombrios envolvendo "espíritas" ou funkeiros. Divaldo Franco oferecendo o Você e a Paz para homenagear João Dória Jr. e permitir o lançamento da deplorável "farinata" é um caso que não deve ser subestimado. Deveria-se, por exemplo, investigar quem paga as viagens de Divaldo no exterior, ou se não há um caso de exploração indevida dos pobres alojados na Mansão do Caminho.

No caso do "funk", há a falta de coragem em investigar a forma que o empresário da Furacão 2000, Rômulo Costa, "apoiou" Lula e Dilma ao fazer o evento de Copacabana. Dois pontos sombrios pesam: um deles é que o barulho do "funk" abafou a essência do protesto contra o impeachment. Rômulo estaria, na verdade, a serviço de anti-petistas para abafar o protesto e distrair a população, criando um clima favorável para a votação contra a presidenta, na noite de 17 de abril de 2016.

Outra é que Rômulo é ligado à Igreja Universal do Reino de Deus, que queria Dilma Rousseff fora do poder, e teria relações com o PMDB carioca, o que sugere que o "ódio" de Rômulo contra o então presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, é "mimimi" ou "caô" ("caô" é uma gíria suburbana carioca que quer dizer "mentira descarada").

São muitas pautas que exigem dos esquerdistas coragem para investigar. Se não investigarem, os esquerdistas perderão o caminho por causa da complacência e, com isso, poderão perder também suas conquistas, sem poder enfrentar de forma crítica fenômenos de entretenimento, cultura, religião e esportes que estão ligados ao poder hegemônico da mídia, do mercado e da sociedade elitista e conservadora. Nem sempre imagens de pobres sorrindo significa a verdadeira emancipação do povo.

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