quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

As Mães de Maio, as Mães de Acari e o verdadeiro ativismo


Enquanto muitos brasileiros confortados veem suposto ativismo nas atividades de Francisco Cândido Xavier, principalmente no que se refere às mães dos entes queridos falecidos, que gerou até filme - As Mães de Chico Xavier de Glauber Filho e Helder Gomes - , outros casos de mães que perderam filhos mostra um quadro bem mais realista de ativismo e luta por direitos humanos.

No caso de Chico Xavier, as mães encaram as tragédias de seus filhos de forma quase sempre comum, geralmente pelo uso de drogas, suicídio ou mortes violentas (acidentais ou criminosas), e são expostas à exploração sensacionalista das "cartas mediúnicas" das quais há dúvidas se foram realmente escritas ou ditadas (os "espíritas" se enrolam quando não conseguem dizer se as psicografias foram escritas ou ditadas por um falecido).

Nada que lembre um ativismo social de verdade, até porque as "psicografias" não trouxeram benefícios reais às famílias, expuseram suas tragédias de forma levianamente prolongada e causou até desavenças familiares sem necessidade.

Quando comparadas com outras tragédias, de cunho político, observa-se uma grande diferença, que são os casos das mães da Praça de Maio (Plaza de Mayo), na Argentina, e as mães das vítimas da Chacina de Acari, na Zona Norte do Rio de Janeiro.

As Mães de Maio são as mães de desaparecidos de toda forma durante o período da ditadura militar na Argentina, entre 1976 e 1983. Tanto podiam ser os desaparecidos políticos, assassinados e com seus cadáveres escondidos pelas forças da repressão, como as crianças filhas de presos políticos que eram tiradas de suas famílias de origem para serem adotadas por famílias de militares e outros associados ao regime.

O nome se refere a uma das principais praças de Buenos Aires, ponto de partida para manifestações contra o extravio de filhos de prisioneiros políticos e também do desaparecimento de muitos destes durante o chamado "Processo de Reogranização Nacional", como se chamava a ditadura argentina. Os protestos chamaram muita atenção do mundo e renderam livros e documentários.

As Mães de Acari, por sua vez, correspondem às mães de um grupo de jovens, moradores da favela de Acari - situada no entorno entre os cruzamentos da Av. Brasil e da Via Dutra, no bairro homônimo vizinho à Pavuna - , no subúrbio carioca, que haviam sido sequestrados por policiais em 1990 e até hoje desaparecidos.

Foi em 26 de julho de 1990. Onze amigos, dos quais sete menores de idade, estavam passando alguns dias em um sítio no bairro de Suruí, em Magé, na Baixada Fluminense, quando um grupo de homens que se anunciavam como policiais os sequestraram, pedindo dinheiro e joias. Os onze detidos nunca tiveram seus corpos encontrados.

As mães das vítimas passaram a se manifestar pedindo punição aos policiais. Elas também davam depoimentos nas delegacias para dar informações sobre o crime. Algumas dessas mães foram depois assassinadas em circunstâncias misteriosas, dando forte indício de "queima de arquivo", diante desse episódio que ilustra o problema da violência policial crônico nas grandes cidades.

Curiosamente, às Mães de Acari se juntaram a outras Mães de Maio, nome dado porque, em maio de 2006, a violência policial exterminou, em apenas uma semana, mais de 500 jovens pobres da cidade de São Paulo, tidos como "bandidos" apesar de não apresentarem antecedentes criminais.

As Mães de Maio brasileiras visitaram, certa vez, o Rio de Janeiro para se manifestarem ao lado das mães cariocas e, a essas alturas, já não eram mais as mães de maio, mas de todos os meses. Em 2015, cinco jovens trabalhadores e estudantes que comemoravam conquistas nessas áreas foram assassinados por policiais que os teriam aparentemente confundido com "bandidos".

É ilustrativo que, em um dos protestos das Mães de Acari, cartazes protestam contra o "esquecimento", ou seja, contra a impunidade do caso, que prescreveu em 2010 (deixou de ser crime condenável por ter completado duas décadas de ocorrência). No "espiritismo" brasileiro, costuma-se recomendar o "esquecimento", afinal as vítimas é que são "culpadas".

Daí o lado "anjo do inferno" de Chico Xavier, que sempre se voltou para o conformismo, a resignação e ao sofrimento "em silêncio". Era a ideologia do "quanto pior, melhor" aplicada à fé religiosa: aceitar as desgraças com fé e fazendo orações, de preferência calado, "esquecer" e "amar", acreditando numa bonança que geralmente só chegaria após túmulos serem tampados ou as cinzas serem jogadas em algum lugar.

Isso mostra o quanto, no lado das tragédias familiares em episódios políticos - a violência policial é um crime político, porque são homens a serviço do Estado - , o ativismo se encontra fora do âmbito religioso. Além disso, a "caridade" de Chico Xavier fez muito mal às famílias, porque expôs sem necessidade as tragédias pessoais que poderiam terem sido resolvidas na privacidade.

Já as tragédias das Mães de Maio, argentinas e brasileiras, e das Mães de Acari, têm sua razão de serem expostas de forma prolongada, por ser uma violência política e porque elas protestam para chamar a atenção da opinião pública quanto ao Estado repressivo, um problema que poucos percebem e que durante muito tempo significou impunidade para seus responsáveis.

É, portanto, um problema de direitos humanos, que cabe ser mostrado à sociedade. Não tragédias comuns e individuais, como no caso das mães atendidas por Chico Xavier e similares, que poderiam se situar no sossego da privacidade, para que os que estão vivos pudessem seguir com suas vidas particulares com um mínimo de sossego possível.

Mostrar as tragédias da violência política, portanto, era um serviço de utilidade pública para a sociedade, para denunciar crimes e clamar por justiça. Já mostrar as tragédias "espíritas" só serve para promover o "espiritismo" e seus supostos médiuns, como publicidade ostensiva que agrada muito o já perverso sensacionalismo midiático, sempre se apoiando no pitoresco e sobrenatural.

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