quinta-feira, 11 de fevereiro de 2016

Foi mais fácil derrubar a Era Vargas do que a Era Geisel

PARA MUITOS, O BRASIL QUE FOI GOVERNADO PELO GENERAL ERNESTO GEISEL ERA UM "PARAÍSO" DE "MODERAÇÃO E PRAGMATISMO".

Hoje, com o Brasil em crise, muitos totens originários ou derivados dos tempos do "milagre brasileiro" da Era Médici ou da "abertura gradual" da Era Geisel começam a perecer e a sociedade está com medo de cair um modelo de país para o qual se acostumaram a vivenciar.

No plano econômico, o "senso comum" costuma atribuir ao modelo do "milagre brasileiro" uma "fórmula ideal" de sucesso e desenvolvimento. No âmbito político e sócio-cultural, o "modelo ideal" consiste num cenário em que se mistura a breguice ufanista da Era Médici com a gororoba cultural da Era Geisel.

Enfatizando medidas de cunho econômico, industrial, acadêmico e urbanista "pragmáticos" - nos quais intelectuais da época, como Fernando Henrique Cardoso e Jaime Lerner, ainda são vistos como totens "inabaláveis" - e a "espetacularização" da cultura e do entretenimento através da supremacia do grotesco, o Brasil de hoje se desgasta e as pessoas, com medo, fogem para o WhatsApp.

Foi muito mais fácil derrubar a Era Vargas e seus símbolos e ícones diretos e indiretos. O "espírito do tempo" que prevaleceu entre 1930 e 1964 e, ainda de forma definitiva, 1968, foi fácil de ser derrubado, quando a MPB autêntica atingia o grande público e a televisão apresentava atrações mais inteligentes.

Os ícones dessa época faleceram rapidamente, o legado deles se dissolveu, e o "espírito do tempo" do Brasil moderno que parecia se consolidar entre 1958 e 1963 acabou. Nem mesmo as tentativas de recuperar essa época, na década de 1980, com o fim da ditadura militar, deram certo. Com a Era Collor, nos anos 1990, a Era Geisel, que já era (olha o trocadilho) uma Era Médici repaginada, foi novamente repaginada através do dito "caçador de marajás".

A situação até tornou-se piorada. As "boazudas", que se limitavam a ser chacretes ou "musas" de revistas pornográficas de segundo escalão, invadiram páginas de celebridades na Internet e empastelam até o movimento feminista.

"Sertanejos" que nunca passam de caubóis urbanos e que deturpavam a música caipira com arremedos de country e ritmos mexicanos, como se Goiás e os interiores do Paraná, São Paulo e Minas Gerais fossem uma síntese entre o Texas e o norte do México, cresceram tanto que roubaram até os redutos do Clube da Esquina e entraram nas universidades pela porta dos fundos.

O "sambão-joia" que deturpava o sambalanço com pieguice e exaltava o Brasil do "milagre brasileiro" ganhou uma nova geração "collorida" através do "pagode romântico", que cresceu tanto que hoje uma parcela deles faz pastiche de samba, copiando o som de Zeca Pagodinho e Jorge Aragão, e alguns de seus medalhões, com sua canastrice, tentam se passar por "grandes nomes da MPB" às custas de muito luxo, muita pompa, muita pose e pouca música.

A imprensa policialesca, que era escondida em jornais "populares" de segundo escalão ou programas raros de televisão, invadiu a TV no horário diurno, expostas gratuitamente ao público infanto-juvenil, com a truculência moralista de seus apresentadores.

Junte-se a isso a complacência com antigos corruptos que tentam voltar à evidência, como Fernando Collor e, na Bahia, Mário Kertèsz, ou a "síndrome de Estocolmo" que faz muitas pessoas terem medo de verem morrer assassinos ricos brasileiros, mesmo quando eles apresentam históricos de problemas ou descuidos com a saúde.

O Brasil tem o cacoete de se apegar ao velho, ao obsoleto, ou a construir novos edifícios com andaimes velhos e podres. De vez em quando, pessoas que parecem modernistas, vanguardistas, rebeldes ou arrojadas mostram algum obscurantismo moralista, alguma neurose conservadora ou alguma libertinagem mórbida que, autodestrutiva e fútil, nada tem de moderna.

É o Brasil que, no que se diz à espiritualidade, elege como guia uma figura ultraconservadora e medieval como Francisco Cândido Xavier. Isso mesmo. Apegado a velhos estereótipos do "velhinho frágil e humilde", os brasileiros veem Chico Xavier como um guia, quando se sabe que ele, como católico retrógrado e ortodoxo, não poderia representar jamais qualquer tipo de futurismo.

Nota-se que as pessoas se tornaram conservadoras, nos últimos anos. O fato de perdermos pessoas avançadas de forma mais rápida que as retrógradas - mesmo conhecidos homicidas idosos que parte da sociedade treme ao imaginar ver suas fotos em algum obituário de imprensa - influi pelo fato de que as pessoas avançadas são coisa do passado e, embora cultuadas, exercem uma força inócua de serem totens inertes e alvos de adoração, pois já não podem mais contribuir com algo novo.

Hoje, porém, é esse conservadorismo, que está em crise, que mistura moralismo extremo e libertinagem sem controle, esse "espírito do tempo" promíscuo que mistura Revoltados On Line com "mulheres-frutas", Divaldo Franco com Jair Bolsonaro, Luciano Huck com José Luiz Datena, Banheira do Gugu com Instituto Millenium.

É esse conservadorismo em estado de decomposição, cujo fedor é disfarçado desesperadamente com o embalsamento moralista e midiático, que ainda acredita, em vão, num "kardecismo com Chico Xavier", numa "reforma agrária com Darly Alves" e num "feminismo com Pimenta Neves".

A "boa sociedade" que vivia a paz forçada dos seus preconceitos moralistas, do sensacionalismo popularesco e das medidas pragmáticas que trazem mais lucros financeiros do que qualidade de vida, está alarmada com a queda de um "espírito do tempo" que, aparentemente, atravessou incólume períodos de relativas transformações sociais, como o período do general João Figueiredo, o governo Itamar Franco ou a Era Lula.

Nestes governos, o Brasil ameaçava romper com o "espírito do tempo" da Era Geisel, ainda que de maneira parcial, com a ascensão de culturas jovens alternativas (governo Figueiredo), a recuperação da cultura musical brasileira de qualidade (governo Itamar) e a ascensão sócio-econômica das classes populares (Era Lula).

Eram processos parciais e incipientes, mas que traziam o "fantasma da Era Jango" que a sociedade "bem de vida", que praticamente monopoliza o "senso comum" brasileiro, se arrepiar de medo, e que podem pôr em xeque tanto o cenário de enriquecimentos ilícitos das elites quanto o da mediocrização sócio-cultural das classes populares.

Se a sociedade deixa cair no ostracismo nomes menos manjados da Bossa Nova, no entanto, salva com facilidade subcelebridades recentes que ficam "sem aparecer" mais de duas semanas. Canastrões culturais e cafajestes políticos parecem mais resistentes a gafes do que progressistas que são "linchados" sem piedade pela "opinião pública" dominante.

Há um grande alarmismo em ver um modelo "equilibrado" de país, conforme valores legados dos governos dos generais Médici e Geisel e "democraticamente repaginados" pelos governos de Fernando Collor e Fernando Henrique Cardoso, ruir de vez.

Daí as histerias reacionárias, que acontecem de maneira surreal, com jovens "irados" defendendo a volta da ditadura militar e mulheres defendendo valores machistas. Às vezes, as pessoas se tornam patéticas quando evocam desesperadamente seu conservadorismo.

E nós ainda temos que aceitar tudo isso em silêncio, numa prece sem som, sem voz, sem palavras, como se ainda estivéssemos na Era Médici.

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