domingo, 21 de dezembro de 2014

O caso Humberto de Campos: quando Chico Xavier virou réu pela primeira vez


O escritor Humberto de Campos é um dos primeiros casos em que os líderes do "movimento espírita" brasileiro passaram a ser "donos dos mortos", tornando-se vítima, postumamente, da mais extrema obsessão do anti-médium Francisco Cândido Xavier.

Equivocadamente associado ao "movimento espírita", Humberto de Campos era ateu. Tendo nascido em 25 de outubro de 1886, na antiga cidade de Muritiba, no Maranhão, cidade que depois ganhou o nome do escritor, Humberto foi um expoente da poesia e prosa neo-parnasiana brasileira.

Ele foi um dos escritores mais prestigiados de seu tempo, e começou sua carreira em São Luís, no Maranhão, e depois viveu alguns anos no Pará. Depois passou a viver no Rio de Janeiro, se entrosando com os intelectuais da época, como Coelho Neto, Rui Barbosa e Olavo Bilac.

Quando morreu o outro amigo de Humberto, o escritor Emílio de Menezes, considerado então um satírico à altura de Gregório de Mattos, o maranhense decidiu concorrer para a Academia Brasileira de Letras.

A morte de Emílio ocorreu em 1918 e no ano seguinte Humberto é empossado em sua cadeira, n. 20, cujo patrono foi o autor do romance A Moreninha, Joaquim Manuel de Macedo, por indicação do fundador da cadeira, o diplomata Salvador de Mendonça, e hoje é ocupada pelo ex-jornalista de Manchete, Murilo Melo Filho.

Humberto depois se elegeu deputado federal pelo então Distrito Federal, em dois mandatos, só sendo cassado com a Revolução de 1930. Autor de diversos livros como Carvalhos e Roseiras (1923), O Brasil Anedótico (1927) e O Monstro e Outros Contos (1932), ele passou os últimos anos escrevendo suas memórias, lançando o primeiro volume em 1933, Memórias 1886-1900.

Humberto não viveu para completar o segundo volume, morrendo, já doente, ao sofrer uma síncope durante uma cirurgia, com apenas 48 anos de idade, em 05 de dezembro de 1934, e o que foi produzido até então foi publicado sob o título Memórias Inacabadas, de 1935.

A OBSESSÃO DE CHICO XAVIER

O anti-médium mineiro Francisco Cândido Xavier passou a sentir forte obsessão por Humberto de Campos depois que este escreveu uma resenha de duas partes sobre o livro Parnaso de Além-Túmulo, em 1932.

Com seu caraterístico humor, Humberto havia "elogiado" o trabalho de Xavier e sua primeira impressão aparentemente indicava reconhecer semelhanças entre as obras atribuídas aos autores mortos, incomodando apenas a concorrência dos poetas da Terra com os do mundo espiritual. Um trecho ilustra essa curiosa postura:

"O primeiro pensamento que assalta o leitor, antes de examinar o merecimento literário da obra, é a ideia de que, nem no outro mundo, estará livre dos poetas. A poesia é uma predestinação de tal modo fatal, irremediável, que a vítima não se livra dessa maldição nem, mesmo, depois da morte. Quem fez sonetos ou redondilhas neste planeta, está condenado a fazê-las em todos os pontos do espaço e da eternidade a que o leve o dedo divino. E sem mudar de estilo. E sem variar de temas. E sem modificação de ritmos, de rimas ou de inspiração".

Não se sabe se é ironia ou não, mas Humberto aparentemente "admite" semelhanças entre os poemas dos autores espirituais atribuídos e o que eles produziram em vida. Talvez fosse por causa de uma leitura ligeira ou pelo fato do livro ser tão recente que as polêmicas só vieram à luz vários anos depois, sobretudo por conta de reações enérgicas como a de Osório Borba.

O que se sabe é que Humberto, com seu senso de humor, acabou reprovando a obra de Chico Xavier por não aceitar que poetas vindos do além possam competir com os poetas vivos, tomando-lhes o mercado.

Um ano após o falecimento de Humberto de Campos, Chico Xavier havia dito que sonhou algumas vezes com o escritor. Sempre os sonhos de Chico Xavier, tomados do privilégio de pretenso realismo. Chico havia descrito um dos sonhos com as seguintes palavras:

"Sonhei que uma pessoa me apresentou Humberto de Campos num lugar do céu muito azul e brilhante e, no chão, havia uma espécie de vegetação que não deixava ver a terra. Não vi casa alguma. O que me impressionou mais é que as pessoas que eu via estavam sob uma árvore muito grande e tão branca que, quando o sol batia nas suas frondes de folhas muito delgadas, parecia uma grande árvore de cristal. Ele veio então ao meu lado e me estendeu a mão com bondade, dizendo: 'Você é o menino do Parnaso'? Disse-me mais coisas das quais não posso me recordar".

Pouco depois, vieram obras como os livros Crônicas de Além-Túmulo e Brasil, Coração do Mundo, Pátria do Evangelho, que chamam atenção pelo fato de, no lugar da prosa descontraída e por vezes brincalhona do escritor, há uma prosa religiosista e melancólica do suposto espírito.

O PROCESSO JUDICIAL

Em 1944, a viúva de Humberto de Campos, Dona Catarina Vergolino de Campos, ou "Dona Paquita", como era conhecida, e dois dos três filhos - uma filha não quis participar do processo judicial e apoiou "de fora" - decidiram processar Chico Xavier e a FEB pedindo que se prove a veracidade ou não da autoria espiritual do escritor.

Isso causou um grande escândalo e colocou Chico Xavier como réu pela primeira vez. Houve grande cobertura jornalística, naqueles tempos em que a televisão não existia (no Brasil, a TV só apareceu como um aparelho em teste numa exposição realizada no Rio de Janeiro, em 1939, onze anos antes de sua implantação oficial).

A intenção era que, se caso a autoria de Humberto de Campos fosse comprovada, os herdeiros de Humberto e titulares do processo, representado pelo advogado Milton Barbosa, receberiam o dinheiro dos direitos autorais. Caso contrário, FEB e Chico Xavier seriam proibidos de usar o nome do falecido escritor, sob pena de multa.

Milton duvidava muito de que a autoria atribuída a Humberto era verídica. O advogado, em entrevista à Revista da Semana, de 08 de julho de 1944, havia comentado a respeito do oportunismo da FEB pelo uso de um escritor bastante popular que foi Humberto em seu tempo.

"Essas obras, como sabe, vêm sendo vendidas livremente, sem controle de quem quer que seja e inteiramente à revelia da família de Humberto de Campos, condôminos dos direitos autorais da sua obra literária, que desfruta de um grande êxito de livraria, dado ao fato de ser atribuída a quem, como Humberto de Campos, sempre gozou, como escritor ,de grande popularidade entre o publico de todos os níveis intelectuais", disse Barbosa.

Numa entrevista a Paulo de Salles Guerra, da Revista da Semana, o advogado Milton Barbosa deu maiores detalhes sobre as suas dúvidas quanto à autenticidade da autoria de Humberto de Campos nos livros produzidos até 1944 por Chico Xavier e atribuídos ao espírito do escritor. Sugerindo que o problema deva ser resolvido por cientistas e não por literatos, Milton esclarece:

"Quis com isso deixar claro que qualquer semelhança de estilo entre a obra mediúnica e a obra produzida em vida por Humberto de Campos não poderia ter maior significação para a solução do problema, dada a possibilidade de assimilação de estilos. A la maniére de. . . como é público e notório, e tem sido mostrado por diversos escritores, principalmente franceses".

Em seguida, ele fez mais comentários:

"Se algumas semelhanças podem ser descobertas em trechos psicografados por Chico Xavier com o estilo de Humberto do Campos semelhança explicável com a leitura alenta das obras do grande memorialisla maranhense, elas não me impressionam absolutamente".

Ainda sobre as aparentes semelhanças de estilo supostamente notadas entre o Humberto de Campos da Terra e o suposto espírito do escritor maranhense:

"Tal semelhança é rara, pois a obra psicografada é muito inferior, como se poderá demonstrar facilmente".

Depois ele pega um exemplar do livro Boa Nova, livro de 1941 em que Chico mais uma vez usa o nome de Humberto de Campos. Milton, então, lê um trecho do referido livro.

"És mestre em Israel e ignoras estas coisas? — inquiriu Jesus como surpreendido. É natural que cada um somente testifique daquilo que saiba; porém, precisamos considerar que tu ensinas. Apesar disso não aceitas os nossos testemunhos. Se falando eu de coisas terrenas sentes dificuldades em compreendê-las com os teus raciocínios sobre a lei, como poderás aceitar as minhas afirmativas quando eu disser das coisas celestiais? Seria loucura destinar os alimentos apropriados a um velho para o organismo frágil do uma criança".

Ele questiona então a autenticidade da autoria de Humberto de Campos.

"Observou este cacófato: “Que cada”? E este verbo. Já ouviu alguém dizer “testifique”? O verbo para o caso seria “testemunhar”, é claro. Acha o senhor possível que um escritor como Humberto de Campos escrevesse estas coisas?"

Não há o mesmo estilo nem o mesmo vigor entre o Humberto de Campos que deixou legado entre nós e o suposto espírito. O Humberto de Campos que viveu entre nós tinha um jeito mais descontraído de escrever, ao mesmo tempo coloquial e elegante, sem soar prolixo nem extremamente rebuscado, apesar de sua notável erudição.

Já o suposto Humberto de Campos espírito tem um estilo choroso, escreve como se tivesse sido, em vez de escritor e intelectual, um padre de uma paróquia principal de uma cidade, numa linguagem melancólica e por demais religiosista.

O DESFECHO DO PROCESSO

Talvez o erro do processo foi o de pedir a verificação de autenticidade ou farsa das obras atribuídas ao espírito de Humberto de Campos, em vez de pedir a ação direta contra a FEB e Chico Xavier por apropriação indébita do nome do falecido escritor.

Devido a esse complicado enunciado, o  juiz de Direito em exercício na 8º Vara Cível do antigo Distrito Federal, Dr. João Frederico Mourão Russell, julgou a ação improcedente, resultando num empate jurídico.

O juiz alegou não haver condições de exigir direitos autorais para obras de espíritos de pessoas falecidas, os direitos só valem para o que eles haviam produzido enquanto aqui viveram. A sentença foi dada em 23 de agosto de 1944.

O empate jurídico favoreceu Chico Xavier, beneficiado pela neutralidade do juiz. Um 0 X 0 que valeu pontos para o anti-médium mineiro, ainda que, depois de declarada a sentença, Dona Paquita e seus filhos tenham recorrido da sentença.

Mas aí Chico resolveu substituir o nome do escritor parodiando um de seus pseudônimos, Conselheiro XX, criando o codinome Irmão X, "para evitar novos dissabores".

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