quarta-feira, 17 de dezembro de 2014

Primeiro livro de Chico Xavier provou ser uma fraude


O primeiro livro de Francisco Cândido Xavier, Parnaso de Além-Túmulo, cuja primeira edição foi lançada em 1932, é um dos estranhíssimos casos de obras publicadas sob o rótulo de "literatura espírita".

Seu histórico não é dos mais felizes, se levarmos em conta que a publicação deveria ser um trabalho acabado de espíritos de poetas e escritores falecidos que supostamente mandariam novas mensagens para promover a fraternidade entre os povos.

Oficialmente tido como a primeira psicografia de Chico Xavier e sendo uma das primeiras publicações ambiciosas da FEB, o livro, juntamente com Brasil, Coração do Mundo, Pátria do Evangelho, este lançado em 1938, gerou um dos maiores escândalos relacionados ao "movimento espírita" brasileiro.

O problema começa quando muitos poemas "espirituais" apresentam sérios problemas em relação aos estilos respectivos que os poetas deixaram em vida, como aspectos peculiares como a métrica poética e a própria supremacia de temas religiosos, dando a crer que o mundo espiritual limita-se a ser uma igreja dotada de colônia espiritual etc.

A título de comparação, podemos citar o caso do poeta parnasiano Olavo Bilac (1865-1918), em dois poemas, um publicado em vida, outro supostamente atribuído à sua autoria espiritual, levando em conta o duro comentário feito pelo historiador, poeta e contista João Dornas Filho. Disse ele, a respeito do suposto poema de Bilac em Parnaso de Além-Túmulo, com visível indignação:

"Esse homem que em vida nunca assinou um verso imperfeito, depois de morto teria ditado ao Sr. Xavier sonetos interinos abaixo de medíocres, cheios de versos mal medidos, mal rimados e, sobretudo, numa língua que Bilac absolutamente não escrevia!"

O comentário é corroborado por Osório Borba, jornalista e escritor: "A conclusão de minha perícia é totalmente negativa. Aqueles escritos 'mediúnicos', por quem quer que conheça alguma coisa de poesia ou literatura, não podem ser tidos como de autoria dos grandes poetas e escritores a quem são atribuídos. Autores de linguagem impecável em vida aparecem 'assinando' coisas imperfeitíssimas como linguagem e técnica poética. Os poetas 'desencarnados' se repetem e se parodiam, a todo o momento, nos trabalhos que lhes atribuem 'mediunicamente'".

Para verificarmos esses pareceres, nada como comparar, portanto, os dois poemas, um intitulado "Velhas Árvores", que Olavo publicou no livro Poesias, de 1888. Outro é um poema intitulado "Brasil", que Chico Xavier, no seu referido livro, atribuiu a autoria ao poeta parnasiano. Vejamos:

Velhas Árvores

Olavo Bilac - livro Poesias, 1888

Olha estas velhas árvores, mais belas
Do que as árvores moças, mais amigas,
Tanto mais belas quanto mais antigas,
Vencedoras da idade e das procelas...

O homem, a fera e o inseto, à sombra delas
Vivem, livres da fome e de fadigas:
E em seus galhos abrigam-se as cantigas
E os amores das aves tagarelas.

Não choremos, amigo, a mocidade!
Envelheçamos rindo. Envelheçamos
Como as árvores fortes envelhecem,

Na glória de alegria e da bondade,
Agasalhando os pássaros nos ramos,
Dando sombra e consolo aos que padecem!

BRASIL

Atribuído ao espírito Olavo Bilac (Parnaso de Além-Túmulo, 1932)

Desde o Nilo famoso, aberto ao sol da graça,
Da virtude ateniense à grandeza espartana,
O anjo triste da paz chora e se desengana,
Em vão plantando o amor que o ódio despedaça,

Tribos, tronos, nações... tudo se esfuma e passa.
Mas o torvo dragão da guerra soberana
Ruge, fere, destrói e se alteia e se ufana,
Disputando o poder e denegrindo a raça.

Eis, porém, que o Senhor, na América nascente,
Acende nova luz em novo continente
Para a restauração do homem exausto e velho.

E aparece o Brasil que, valoroso, avança,
Encerrando consigo, em láureas de esperança,
O Coração do Mundo e a Pátria do Evangelho.

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Nota-se que o segundo poema peca gravemente em musicalidade. Nada tem da métrica caraterística de Olavo Bilac e nem de sua sofisticação poética. É um poema sofrível e bastante cansativo, diferente do que se observa no poema original de Olavo, que já aos 23 anos, em 1888, havia feito um soneto que se "desliza" em notável musicalidade dos versos.

Já o seu suposto poema espiritual, só o recital já denuncia uma grave falha, pois cada verso se arrasta numa narração cansativa, sem provocar a musicalidade caraterística do parnasianismo ao qual Olavo era seu símbolo maior. Os versos também não se harmonizam entre si, criando um ritmo aleatório que Olavo não faria sequer em rascunhos poéticos.

REAÇÃO NEUTRA DE ALGUNS ESCRITORES

As próprias irregularidades de Parnaso de Além-Túmulo acabam aparecendo até mesmo em relatos aparentemente favoráveis a Chico Xavier, como a de Suely Caldas Schubert e Alexandre Caroli Rocha (apesar do aparente ceticismo neutro dele), como veremos depois.

Afinal, as sucessivas alterações, várias graves ou tendenciosas, são apontadas pelos dois autores. Por outro lado, a polêmica do livro não contou, do contrário do que diz a FEB, com depoimentos favoráveis, já que os depoimentos que contestavam as acusações de fraude e pastiche literário contra Chico Xavier não necessariamente, e podemos até dizer que nunca, comprovaram seguramente sua mediunidade.

Alguns desses comentários dão indício dessa neutralidade, que do contrário que a tese febiana alardeia, nem de longe confirmam ou respaldam a hipótese de mediunidade autêntica, uma vez que são avaliações superficiais e comentários neutros, na verdade céticos tanto do lado negativo (quando se considera o livro uma fraude) quanto do positivo (quando admite a mediunidade do livro).

Raimundo Magalhães Júnior havia dito, por exemplo:  "Se Chico Xavier é um embusteiro, é um embusteiro de talento. Para um homem que fez apenas o curso primários, sua riqueza vocabular é surpreendente[...] Quem negar Chico Xavier como médium, estará fazendo o seu elogio como pastichador".

Agripino Grieco, por sua vez: "Se é mistificação, parece-me muito bem conduzida. Tendo lido as paródias de Albert Sorel, Paul Reboux e Charles Muller, julgo ser difícil (isso digo com a maior lealdade) levar tão longe a técnica do pastiche. Não sei como elucidar o caso. Fenômeno nervoso? Intervenção extra-humana? Faltam-me estudos especializados para concluir".

Monteiro Lobato, o famoso autor de Sítio do Picapau Amarelo: "Se Chico Xavier produziu tudo aquilo por conta própria, então ele merece ocupar quantas cadeiras quiser na Academia Brasileira de Letras".

Em nenhuma dessas declarações há uma confirmação de que Chico Xavier realmente psicografou tais livros, sendo muito mais uma demonstração de dúvida sobre qualquer hipótese que fosse contra ou a favor do livro, mostrando apenas incapacidade dos referidos escritores de dar um parecer definitivo ao assunto.

A Federação "Espírita" Brasileira, adotando um erro propositalmente oportunista e tendencioso, é que creditou tais declarações como "provas" da mediunidade de Francisco Cândido Xavier, tese que se comprova absurda e improcedente.

AS MUDANÇAS SUCESSIVAS

Alexandre Caroli Rocha, em seu trabalho A poesia transcendente de Párnaso de Além-Túmulo, detalha as muitas mudanças que o livro teve em sucessivas edições, incluindo acréscimos de novos poetas, a exclusão de alguns, alterações de versos e tantos reparos estranhos, porque muitos e alguns deles escandalosos, como os de Guerra Junqueiro e Augusto dos Anjos.

Mas o intervalo entre a primeira edição e a sexta considerada "definitiva", além da quantidade de alterações, seus problemas e contextos, surpreende: cinco edições em 23 anos. Muita coisa para uma obra que se pretendia ser o recado acabado da poesia espiritual.

Só para a sexta edição, são solicitadas a exclusão de 15 a 20 poemas da edição anterior, enquanto Chico Xavier prometia a Wantuil que enviaria de 10 a 15 poemas novos para a publicação considerada "definitiva".

Isso cria uma contradição enorme. Afinal, uma obra dessas é anunciada como obra da espiritualidade superior. Pretendia-se, portanto, ser um trabalho acabado, como seria de praxe em publicações neste sentido. Os vários reparos tornam a obra insegura, inconsistente, por si só, não bastassem as irregularidades de estilo e mesmo a monotemática religiosa, muito comum no "movimento espírita".

Além das críticas de Dornas e Borba, observa-se uma acusação dada pelo escritor e ativista católico Alceu de Amoroso Lima, também conhecido pelo seu pseudônimo Tristão de Athayde, de que Parnaso de Além-Túmulo teria sido feito por uma equipe de escritores e editores. A FEB achou a tese "absurda" e "inconcebível".

No entanto, a própria Suely Caldas Schubert, em um livro intitulado Testemunhos de Chico Xavier, com toda a postura favorável ao anti-médium mineiro, deixa vazar uma mensagem do próprio Chico ao então presidente da FEB, Antônio Wantuil de Freitas, de 03.05.1947, que acidentalmente comprova a tese de Alceu, por mais que Chico fale em amigos e autores "espirituais". Diz o texto:

"Grato pelos teus apontamentos alusivos ao “Parnaso” para a próxima edição. Faltam-me competência e possibilidade para cooperar numa revisão meticulosa, motivo pelo qual o teu propósito de fazer esse trabalho com a colaboração do nosso estimado Dr. Porto Carreiro é uma iniciativa feliz. Na ocasião em que o serviço estiver pronto, se puderes me proporcionar a “vista ligeira” de um volume corrigido, ficarei muito contente, pois isso dará oportunidade de ouvir os Amigos Espirituais, em algum ponto de maior ou menor dúvida. Há uma poesia, sobre a qual sempre pedi socorro, mas continua imperfeita desde a primeira edição. É aquela “Aves e Anjos” (...). Ela termina assim: “Sorrindo... Cantando...” e não “Sorrindo... Sorrindo...”, como vem sendo impresso".

O "dr. Porto Carreiro" em questão era Luiz da Costa Porto Carreiro Neto, escritor e especialista em Esperanto que havia integrado o Departamento Editorial da FEB. Já o poema "Aves e Anjos" que incomodava Chico estava atribuído ao espírito do médico e poeta português Júlio Dinis (1839-1871).

Outras cartas de Chico a Wantuil, colhidas por Suely Caldas Schubert, também reforçam a "absurda" tese de Alceu Amoroso Lima e defendida por outros setores do Catolicismo ortodoxo, Elas deixam claro as negociações entre Chico e os editores da FEB, por intermédio de Wantuil, para os reparos para a sexta e "definitiva" edição, como foi também o caso da carta acima citada:

"Vou trabalhar na revisão final do ‘Parnaso’, sob a orientação de Emmanuel e de outros amigos. Espero enviar-te o volume, que se encontra comigo, há tempos, em breves dias. Ficas com a liberdade de aprovar ou não as sugestões que foram apresentadas daqui. Considero igualmente contigo que o ‘Parnaso’ está muito volumoso, mas se eu pudesse votar por alguma alteração, votaria pela supressão de algumas poesias, sem substituição. Assim, o livro ficaria num tamanho mais agradável. Concordas? A escolha das produções a serem afastadas dependeria de tua revisão. Organizarias uma relação delas e apresentá-la-ei aos nossos amigos espirituais para a solução definitiva".  (28.05.1953)

"Meu caro Wantuil, na primeira oportunidade, enviarei o ‘Parnaso’. Emmanuel, porém, me disse que, considerando melhor as lutas do nosso campo de ação, seria interessante a reedição sem nada alterar, de modo a não oferecermos combustível à fogueira dos nossos adversários gratuitos. Que achas? Mais um abraço do - Chico". (10.09.1953)

"Minha referência ao ‘Parnaso’ em carta última foi feita porque eu havia pedido a Emmanuel estudássemos um recurso de retirar algumas das produções do livro referido, que julgo menos compatíveis com a respeitabilidade de nossa Consoladora Doutrina. Pensei me houvesse comunicado contigo, acerca do assunto, em correspondências anteriores. Nosso orientador espiritual, porém, conforme notifiquei na missiva última, julga devamos deixar o ‘Parnaso’ tal como está, de modo a não atrairmos qualquer nova faixa de incompreensão. Aguardemos mais tempo". (24.09.1953)

"Sobre o ‘Parnaso’, Emmanuel me disse que poderás retirar do texto de 15 a 20 trabalhos que julgues menos adequados ao livro e daqui te enviarei 10 a 15 que possam figurar na nova edição com mais propriedade. Certo? Aguardo as tuas notícias". (18.06.1954)

É surpreendente como a FEB e Chico Xavier reagiam com omissão e esperteza, de forma a evitar o que chamam de "fogueira dos nossos adversários gratuitos" e "nova faixa de incompreensão", como acusam os questionadores que investigam as contradições e equívocos causados pelo "movimento espírita" e que, aqui, se referem a Parnaso de Além-Túmulo.

Chico tinha receio das polêmicas causadas por Parnaso de Além-Túmulo, que era duramente contestado, mediante justificativas lógicas e pesquisa cautelosa, pelos mais renomados especialistas literários, a ponto do anti-médium mineiro ter dito: "Tive medo do barulho, porque o ruído atrapalha".

As próprias negociações entre Xavier e Wantuil deixam claro que o livro não foi psicografado, uma vez que são acordos sucessivos de combinação de mudanças de versos, inclusão e exclusão de poemas, e tudo o mais. E, se a FEB quis apagar as "fogueiras dos adversários", em vez de extintor, acabaram usando querosene, colocado nas mãos da ilustre colaboradora Suely.

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