quinta-feira, 1 de setembro de 2016

Pessoas se iludem diante da ilusão de poder suportar o sofrimento


Você já sai de casa enfrentando uma cilada. Esperando por um ônibus que sempre demora e que, quando chega, está superlotado, de forma que você, quando entra nele, tem que ficar num degrau da porta de embarque e se segurar em alguma coisa, de maneira desconfortável.

Para piorar, é um daqueles ônibus "padronizados" que ninguém sabe realmente que empresa opera. A pintura é sempre a mesma e o que mais aparece é o logotipo da prefeitura ou do governo do Estado. Daí que você não pode reclamar do ônibus que já chega sucateado.

Afinal, além de memorizar os códigos alfanuméricos de chapa e número da frota, quem lhe atende é um telefonista quase autômato e as reclamações darão em nada, porque a empresa A vai acusar a empresa B, que vai acusar a prefeitura, o governo estadual, num pingue-pongue de acusações que darão em nada.

As pessoas aceitam tudo de bandeja. Embarcam em ônibus que podem causar acidentes, não bastassem os atrasos que representam no deslocamento para o trabalho. Tudo é aceito porque as péssimas empresas escondidas sob a pintura do "consórcio" ou coisa parecida assim o são mediante "critérios técnicos" e as autoridades prometem um conforto que nunca vem. Ainda mais se mudar a empresa operadora ou trocar seu nome, pegando a população de surpresa, com ônibus "refrigerados" que só são confortáveis nos primeiros dois meses.

Só nessa ida e vinda, do trabalho para a casa, mostra o quanto a resignação da sociedade brasileira atinge níveis bovinos. Vivemos uma vida de gado, principalmente pela expectativa do "maravilhoso" governo Michel Temer e "tudo de bom" que isso significa: Escola Sem Partido, terceirização do mercado de trabalho, privatizações que farão o nosso dinheiro voar para os cofres estrangeiros etc.

Por que as pessoas estão tão conformadas? Por que essa aceitação, essa falta de preocupação, essa vontade de beber a cicuta e comer a fruta da mancenilheira por causa do sabor doce e delicioso? A ilusão de que é possível aguentar retrocessos mediante vantagens futuras que não se sabe como virão ou se realmente virão.

O governo de Michel Temer cria uma tranquilidade suicida nas pessoas. Elas ficam felizes até diante do risco de perdermos nossas riquezas, a serem entregues, a preço de banana, para empresas estrangeiras. Até projetos educativos repressivos (Escola Sem Partido) e propostas retrógradas de reforma trabalhista (Terceirização) fazem muitas pessoas dormirem tranquilas sem saber a catástrofe que se aproxima.

No Rio de Janeiro, famílias vão para restaurantes e lanchonetes na maior alegria. Chega um caminhão de lixo fedorento - o "moderno" Rio de Janeiro ainda não assimilou a tecnologia adotada em Salvador, que é de evitar que caminhões de lixo espalhem fedor tóxico pelo ar - e estaciona diante de um restaurante e as famílias entram, sem perceber do risco que o odor tóxico pode causar no contato com a comida, podendo causar intoxicação alimentar.

Há também toda a felicidade das pessoas que vão para a praia jogar bola e contar piada, sob um ar pesado de poluição. O Rio de Janeiro ultrapassou São Paulo no ranking de poluição e a mortalidade das pessoas é muito grande, mas pouco noticiada pela imprensa. Se bem que, volta e meia, vemos atores, jornalistas e músicos contraindo câncer repentino ainda aos 60 anos de idade, morrendo em seguida por conta do passado tabagista e da poluição atmosférica no Grande Rio.

Ninguém liga. As pessoas ficam "felizes demais", não percebem a tragédia que está em volta, e acham que basta ter uma religião para aguentar todo tipo de retrocesso, o que faz com que cidades antes consideradas modelos de desenvolvimento e progresso social, como Rio de Janeiro, São Paulo e Curitiba, estão entre as cidades mais decadentes do Brasil, sofrendo um surto de provincianismo de fazer muitos matutos do Acre, Rondônia e Amapá corarem de vergonha.

Aguentar retrocessos e transtornos não é sinal de força. Não se é forte aguentando o sofrimento, da mesma forma que ninguém é bondoso porque faz apologia do sofrimento para forjar a caridade. A ideia de que é possível aguentar qualquer barbaridade não é uma forma de força psicológica, porque só apenas eventualmente é que os transtornos fazem as pessoas superarem seus limites.

Mas isso não é regra. É exceção. Não é o sofrimento que fortalece a pessoa, mas a forma que a pessoa procura pensar e fazer para superar o sofrimento. Ver o sofrimento como um fim em si mesmo na evolução humana é uma aberração das mais terríveis e das mais deploráveis, ainda mais quando protegida pelo deslumbramento da fé religiosa, doce cegueira que adoça corações e cega as almas.

A partir desse ideal de "vencer a si mesmo", que faz os palestrantes "espíritas" se espumarem de muita vaidade com essa falsa sabedoria, a pessoa acaba se tornando fantoche de um sado-masoquismo existencial, quando a pessoa aceita ser capacho do destino a troco de supostos benefícios futuros e vive a ilusão de estar preparada para mais um retrocesso ou desgraça na vida.

A ideia maligna de "vencer a si mesmo" tem o sentido macabro do combate à autoestima. Os ideólogos da religião, inclusive os "espíritas", se confundem seriamente quando tentam desmentir que o mito de "vencer a si mesmo" é uma negação da autoestima. Criam todo um malabarismo discursivo para tentar afirmar o contrário, sem medir escrúpulos em cair em contradições.

Primeiro, porque o "espiritismo" não considera individualidades. Acha que ter necessidades e talentos próprios é frescura materialista e, por isso, acham natural que a pessoa acumule desgraças, mesmo em doses kafkianas. Sem se sensibilizar com o sofrimento alheio, apela para o sofredor mudar o pensamento, redescobrir habilidades e desenvolver alegria do nada, para não dizer da própria dor.

É como se dissesse para um tetraplégico: levanta-se e anda! Dá para dizer coisas cruéis com palavras lindas, como dá para usar pretextos técnicos para arbitrariedades bastante abusivas. Se você prejudica alguém, você pode dizer que sua proposta causa transtornos graves dizendo que "é esperado que enfrentemos certos sacrifícios".

Para dissermos para cadeirantes se levantarem, como fez Galvão Bueno em uma de suas gafes na cobertura das Olimpíadas Rio 2016, podemos dizer coisas belíssimas: "Você acha que não pode andar, que sofrerá de dor. Mude seus pensamentos, se levante, ande e corra. Veja as coisas lindas e pare de gemer, e se você cair é porque não teve esperança suficiente para voltar a andar".

De um lado, pessoas com muito status que acham que você tem que sofrer para obter benefícios maiores. De outro lado, pessoas que sofrem porque acham que são muito fortes para aguentarem as piores desgraças e depois irem para a praia ou para o bosque sorrindo de forma exagerada.

Saber os limites não é errado. As pessoas perdem a consciência dos limites que têm, mas enxergam limites onde não existe. Na meia-idade, pessoas deixam de viver e de se divertir, mas não abrem mão de encher a cara de álcool. Pessoas acham que não têm idade para rirem de uma piada, mas quando é para se irritar numa briga de trânsito, não abrem mão da fúria descomunal.

É necessário saber medir os prejuízos, os transtornos, as desvantagens, as injustiças. A falta dessa medida faz com que até os religiosos, certos de que conquistarão o céu estrelado que os levará ao "seio do Criador", passem a adotar ideias egoístas, achando que o sofrimento, em si, é uma loteria que levará aos prêmios futuros.

Num Rio de Janeiro poluído, com muitos fumantes, há gente que já não sente mais dor, e não percebe o odor fétido das fezes nas calçadas ou do odor tóxico dos caminhões de lixo, que consome, feliz da vida, um lanche gorduroso e condimentado do McDonald's que escraviza seus funcionários, de pessoas que vão felizes pegar os ônibus "padronizados" cuja pintura única acoberta a corrupção empresarial e faz sucatear frotas de ônibus, causando acidentes.

Isso é muito grave. E mais grave ainda é que é um Brasil feliz diante da calamidade política que está por vir, com os projetos retrógrados do governo de Michel Temer e com a ação macabra de Eduardo Cunha comandando pelos bastidores. Duro dizer para as pessoas que o sono tranquilo da noite de hoje será o pesadelo do amanhecer...

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