terça-feira, 3 de novembro de 2015

Chico Xavier e o plágio de poema de Edgar Allan Poe


O mal começou pela raiz. O livro Parnaso de Além-Túmulo, lançado em 1932, primeiro livro de Francisco Cândido Xavier, é um amontoado de pastiches literários. Obra que se autoproclamava um trabalho acabado da espiritualidade mais evoluída, teve o estranho processo de ser remendada e reparada cinco vezes em 23 anos, com poemas e textos incluídos e outros excluídos.

Houve uma polêmica, poucos anos depois do livro poético, quando Chico Xavier já era também conhecido pela apropriação do nome de Humberto de Campos, o que inferimos ter sido uma revanche, já que Chico não teria gostado das críticas do autor maranhense a Parnaso de Além-Túmulo e, em represália, "criou" um "espírito Humberto de Campos" escrevendo como padre.

A polêmica se deu quanto às denúncias de plágios literários trazida por Chico Xavier. Podia ele ter imitado diversos estilos literários? Teria ele habilidade para trabalhar sozinho tais pastiches? Poucos se deram conta que Chico Xavier também agia com a ajuda de muitos colaboradores, que sempre forneciam dados para supostas psicografias do anti-médium mineiro.

Curiosamente, era uma época em que o poeta português Fernando Pessoa estava no auge de sua reputação literária. Ele morreu em 1935, com apenas 47 anos, marcado pela sua multiplicidade de personagens e estilos, dando inclusive personalidade própria para seus inúmeros heterônimos, que tinham direito a "mapas astrais" e "antologias" próprias.

Mas Chico Xavier não era Fernando Pessoa, seja no talento de escrever, que em Chico era apenas razoavelmente culto, mas pouco fluente, e para abraçar diversos estilos, Chico contava com a ajuda que ia da cúpula da Federação "Espírita" Brasileira a consultores literários. Diante das acusações de pastiches literários, no entanto, muitos autores e intelectuais, em evidência na época, se abstiveram, preferindo não afirmar ou negar tal problema.

No entanto, o "movimento espírita", oportunista, tentou creditar como "confirmação" a postura de abstenção dos autores quanto à suposta mediunidade de Chico Xavier. Mas autores como Monteiro Lobato ou mesmo Apparício Torelly, o Barão de Itararé, nunca confirmaram que Chico Xavier realmente tenha psicografado tais obras, apenas não tinham uma postura definida sobre o caso.

Tomando como base uma postagem publicada no blogue Obras Psicografadas, em que se analisa um plágio referente a um famoso poema de Edgar Allan Poe, "O Corvo", damos nossa análise a esse caso, em que Chico Xavier usava o nome do poeta português Antero de Quental para fazer o pastiche poético.

Antero de Quental foi um poeta do romantismo português que viveu apenas 49 anos, entre 1842 e 1891. Note-se o fetiche dos mortos prematuros que sempre marcou a vida de Chico Xavier, daí que a maioria das personalidades apropriadas por ele, como famosos, semi-anônimos (como Irma "Meimei" de Castro Rocha) e anônimos, morreu antes de completar 50 ou 60 anos de idade.

Quental era abertamente influenciado pelo escritor Edgar Allan Poe, um dos mais sombrios escritores do Romantismo estadunidense. e citava isso claramente em poemas como "Nunca Mais". No Brasil, Chico Xavier mostrava apreciar tanto a leitura de Antero de Quental como as traduções brasileiras dos poemas de Poe.

Segundo relatos de quem viu Chico Xavier lendo livros e fazendo anotações, garante que ele lia repetidas vezes um livro, procurava memorizar as palavras e depois apenas arrumava o plágio para parecer um texto levemente diferente. Se, usando o exemplo imaginário, a ideia é plagiar "Fui para a fazenda do meu tio, juntamente com minha mãe e minha irmã", Chico iria escrever "Eu, minha mãe e minha querida irmã nos dirigimos à fazenda onde meu tio morava".

O plágio que Obras Psicografadas mostrou e que reproduzimos foi com base de um poema de Poe traduzido em 1928 pelo jornalista e escritor Manoel José Gondin da Fonseca (1899-1977), biógrafo de Alberto Santos Dumont e do parlamentar José Bonifácio de Andrada e Silva.

O poema original foi "The Raven", lançado em 1845, e foi marcado pela frase "Nevermore!" ("Nunca mais"!), dita pelo corvo. Teve traduções feitas por Machado de Assis e Fernando Pessoa. A tradução em questão é a de Gondin, que teria sido usada por Chico Xavier como fonte para o poema "espiritual" atribuído a Antero, intitulado "O Remorso".

O suposto poema espiritual tenta narrar as sensações do "espírito Antero de Quental" ao ingressar nas "zonas inferiores" do mundo espiritual. O poema estava presente na edição de 1932 e essas "zonas inferiores", descritas como áreas macabras, próprias de narrativas de terror, só seriam "sistematizadas" em 1943, quando o livro Nosso Lar as descreveu sob a forma de "umbral".

No poema, não há um aparente apelo religioso, mas um suposto relato de dor e arrependimento. Note-se que Chico Xavier preferiu escrever um soneto, mas o plágio em relação a "O Corvo" envolve até mesmo o "Nunca Mais!" do poema de Edgar Allan Poe. Há também a citação de "meus ais" e um tom sombrio que imita o original, apesar de Chico não arriscar a copiar a extensão poética de muitas estrofes da obra original.

Publicamos os dois poemas para comparação, mas, diferente de Obras Psicografadas, não os colocamos numa tabela, mas numa sequência sucessiva. O soneto de Chico Xavier aparece primeiro, e depois vem o poema de Poe traduzido por Gondin da Fonseca.

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O REMORSO

Atribuído ao espírito de Antero de Quental - Parnaso de Além-Túmulo - Francisco Cândido Xavier - 1932

Quando fugi da dor, fugindo ao mundo,
Divisei aos meus pés, de mim diante,
A medonha figura de gigante
Do Remorso, de olhar grave e profundo.

Era de ouvir-lhe o grito gemebundo,
Sua voz cavernosa e soluçante!…
Aproximei-me dele, suplicante,
Dizendo-lhe, cansado e moribundo: –

“Que fazes ao meu lado, corvo horrendo,
Se enlouqueci no meu degredo estranho,
Acordando-me em lágrimas, gemendo?”

Ele riu-se e clamou para meus ais:
“Companheiro na dor, eu te acompanho,
Nunca mais te abandono! Nunca mais!”

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O CORVO

Edgar Allan Poe - Original de 1845 - Tradução de Gondin da Fonseca publicada em 1928

Certa vez, quando, à meia- noite eu lia, débil, extenuado,
um livro antigo e singular, sobre doutrinas do passado,
meio dormindo – cabeceando – ouvi uns sons trêmulos, tais
como se leve, bem de leve, alguém batesse à minha porta.
É um visitante”, murmurei, “que bate leve à minha porta.
Apenas isso, e nada mais.” 

Bem me recordo! Era em dezembro. Um frio atroz, ventos cortantes…
Morria a chama no fogão, pondo no chão sombras errantes.
Eu nos meus livros procurava – ansiando as horas matinais –
um meio (em vão) de amortecer fundas saudades de Lenora,
- bela adorada, a quem, no céu, os querubins chamam Lenora,
e aqui, ninguém chamará mais. 

E das cortinas cor de sangue, um arfar soturno, e brando, e vago
causou-me horror nunca sentido, – horror fantastico e pressago.
Então, fiquei (para acalmar o coração de sustos tais)
a repetir: “É alguém que bate, alguém que bate à minha porta;
Algum noturno visitante, aqui batendo à minha porta;
é isso! é isso e nada mais!”   

Fortalecido já por fim, brado, já perdendo a hesitação:
“Senhor! Senhora! quem sejais! Se demorei peço perdão!
Eu dormitava, fatigado, e tão baixinho me chamais,
bateis tão manso, mansamente, assim de noite à minha porta;
que não é fácil escutar. Porém só vejo, abrindo a porta,
a escuridão, e nada mais. 

Perquiro a treva longamente, estarrecido, amedrontado,
sonhando sonhos que, talvez, nenhum mortal haja sonhado.
Silêncio fúnebre! Ninguém. De visitante nem sinais.
Uma palavra apenas corta a noite plácida: – “Lenora!”.
Digo-a em segredo, e num murmúrio, o eco repete-me – “Lenora!”
Isto, somente – e nada mais. 

Para o meu quarto eu volto enfim, sentindo n’alma estranho ardor,
e novamente ouço bater, bater com mais vigor.
“Vem da janela”, presumi, “estes rumores anormais.
Mas eu depressa vou saber donde procede tal mistério.
Fica tranqüilo, coração! Perscruta, calmo, este mistério.
É o vento, o vento e nada mais!” 

Eis, de repente, abro a janela, e esvoaça então, vindo de fora,
um Corvo grande, ave ancestral, dos tempos bíblicos, – d’outrora!
Sem cortesias, sem parar, batendo as asas noturnais,
ele, com ar de grão-senhor, foi, sobre a porta do meu quarto,
pousar num busto de Minerva, – e sobre a porta do meu quarto
quedou, sombrio, e nada mais. 

Eu estava triste, mas sorri, vendo o meu hóspede noturno
tão gravemente repousado, hirto, solene e taciturno.
“Sem crista, embora” – ponderei -, “embora ancião dos teus iguais,
não és medroso, ó Corvo hediondo, ó filho errante de Plutão!
Que nobre nome é acaso o teu, no escuro império de Plutão?”
E o Corvo disse: “Nunca mais!” 

Fiquei surpreso – pois que nunca imaginei fosse possível
ouvir de um Corvo tal resposta, embora incerta, incompreensível,
e creio bem, em tempo algum, em noite alguma, entes mortais
viram um pássaro adejar, voando por cima de uma porta,
e declarar (do alto de um busto, erguido acima de uma porta)
que se chamava “Nunca mais”.

Porém o Corvo, solitário, essas palavras só murmura,
como que nelas refletindo uma alma cheia de amargura.
Depois concentra-se e nem move – inerte sobre os meus umbrais –
uma só pena. Exclamo então: “Muitos amigos me fugiram…
Tu fugirás pela manhã, como os meus sonhos me fugiram…”
Responde o Corvo: “Oh! Nunca mais!” 

Pasmo, ao varar o atroz silêncio uma resposta assim tão justa,
e digo: “Certo, ele só sabe essa expressão com que me assusta.
Ouviu-a, acaso, de algum dono, a quem desgraças infernais
hajam seguido, e perseguido, até cair nesse estribilho,
até chorar as ilusões com esse lúgubre estribilho
de – “nunca mais! oh! nunca mais!”. 

De novo, foram-se mudando as minhas mágoas num sorriso…
Então, rodei uma poltrona, olhei o Corvo, de improviso,
e nos estofos mergulhei, formando hipóteses mentais
sobre as secretas intenções que essa medonha ave agoureira
- rude, sinistra, repulsiva e macilenta ave agoureira, –
tinha, grasnando “Nunca mais”. 

Mil coisas vagas pressupus… Não lhe falava, mas sentia
que me abrasava o coração o duro olhar da ave sombria.
… E assim fiquei, num devaneio, em deduções conjeturais,
minha cabeça reclinando – à luz da lâmpada fulgente
nessa almofada de veludo, em que ela, agora, – à luz fulgente -,
não mais descansa – ah! nunca mais. 

Subitamente o ar se adensou, qual se em meu quarto solitário,
anjos pousassem, balançando um invisível incensário.
“Ente infeliz” – eu exclamei. – “Deus apiedou-se dos teus ais!
Calma-te! calma-te e domina essas saudades de Lenora!
Bebe o nepente benfazejo! Olvida a imagem de Lenora!
E o Corvo disse: “Nunca mais.” 

“Profeta!” – brado. “Anjo do mal, Ave ou demonio irreverente
que a tempestade, ou Satanás, aqui lançou tragicamente,
e que te vês, soberbo, nestes desertos areais,
nesta mansão de eterno horror! Fala! responde ao certo! Fala!
Existe bálsamo em Galaad? Existe? Fala, ó Corvo! Fala!”
E o Corvo disse: “Nunca mais.” 

“Profeta!” – brado. “Anjo do mal, Ave ou demônio irreverente,
dize, por Deus, que está nos céus, dize! eu to peço humildemente,
dize a esta pobre alma sem luz, se lá nos páramos astrais,
poderá ver, um dia, ainda, a bela e cândida Lenora,
amada minha, a quem, no céu, os querubins chamam Lenora!”
E o Corvo disse: “Nunca mais.” 

“Seja essa frase o nosso adeus” – grito, de pé, com aflição.
“Vai-te! Regressa à tempestade, à noite escura de Plutão!
Não deixes pluma que recorde essas palavras funerais!
Mentiste! Sai! Deixa-me só! Sai desse busto junto à porta!
Não rasgues mais meu coração! Piedade! Sai de sobre a porta!”
E o Corvo disse: “Nunca mais.” 

E não saiu! e não saiu! ainda agora se conserva
pousado, trágico e fatal, no busto branco de Minerva.
Negro demônio sonhador, seus olhos são como punhais!
Por cima, a luz, jorrando, espalha a sombra dele, que flutua…
E a alma infeliz, que me tombou dentro da sombra que flutua,
não há de erguer-se, “Nunca mais”.

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