Sugere uma reflexão muito cautelosa a reação temerosa que Francisco Cândido Xavier teve e que transmitiu em carta ao então presidente da Federação "Espírita" Brasileira, Antônio Wantuil de Freitas. Wantuil estava produzindo um trabalho sobre o Roustanguismo, e uma carta publicada na revista Mundo Espírita havia causado alvoroço nos meios febianos.
Consta-se que a carta - da qual não encontramos, até o fechamento do texto, uma reprodução digital, apesar do periódico existir até hoje e possuir até mesmo página na Internet - deve datar de março de 1947, uma vez que a declaração de Xavier foi feita em carta datada de 25 de março de 1947, e publicada no livro Testemunhos de Chico Xavier, de Suely Caldas Schubert.
Antes de reproduzirmos o trecho da carta, vamos reproduzir o parágrafo do livro de 1938, Brasil, Coração do Mundo, Pátria do Evangelho, atribuído ao espírito Humberto de Campos e que, provavelmente, seria na verdade escrito a quatro mãos por Chico Xavier e Wantuil de Freitas, e que é a única mas decisiva passagem que cita o autor de Os Quatro Evangelhos:
"Mal não haviam terminado as atividades bélicas da triste missão de Bonaparte e já o espaço se movimentava, no sentido de renovar os surtos de progresso das coletividades. Assembleias espirituais, reunindo os gênios inspiradores de todas as pátrias do orbe, eram levadas a efeito, nas luzes do infinito, para a designação de missionários das novas revelações. Em uma de tais assembleias, presidida pelo coração misericordioso e augusto do Cordeiro, fora destacado um dos grandes discípulos do Senhor, para vir à Terra com a tarefa de organizar e compilar ensinamentos que seriam revelados, oferecendo um método de observação a todos os estudiosos do tempo. Foi assim que Allan Kardec, a 3 de outubro de 1804, via a luz da atmosfera terrestre, na cidade de Lião. Segundo os planos de trabalho do mundo invisível, o grande missionário, no seu maravilhoso esforço de síntese, contaria com a cooperação de uma plêiade de auxiliares da sua obra, designados particularmente para coadjuvá-lo, nas individualidades de João-Batista Roustaing, que organizaria o trabalho da fé; de Léon Denis, que efetuaria o desdobramento filosófico; de Gabriel Delanne, que apresentaria a estrada científica e de Camille Flammarion, que abriria a cortina dos mundos, desenhando as maravilhas das paisagens celestes, cooperando assim na codificação kardequiana no Velho Mundo e dilatando-a com os necessários complementos".
O trecho repete a tendência dos livros tradicionais da época, em que se "abrasileira" os nomes de várias personalidades estrangeiras, regra própria do eruditismo daqueles tempos, e Roustaing é citado com o prenome mudado para "João-Batista", o que parece uma alteração feita por questão afetiva, já que Leon Denis não teve seu prenome mudado para "Leão".
Roustaing é atribuído como o homem que "organizaria o trabalho da fé", tarefa que é associada fortemente a Chico Xavier, o responsável por "abrasileirar" o pensamento do autor de Os Quatro Evangelhos e extrair os pontos mais polêmicos.
O livro supostamente atribuído a Humberto de Campos, que na verdade junta o religiosismo de Chico Xavier e a racionalidade moralista de Wantuil, se revela uma propaganda do roustanguismo, com todas as ideias do advogado francês, defendida com entusiasmo, atitude que se verifica também em diversos livros sob a grife Chico Xavier, incluindo O Consolador, de Emmanuel.
Não temos o texto da carta, cujos termos escritos poderiam muito bem esclarecer o melindre com que Chico tratou o assunto de Roustaing, apesar da explícita citação de seu nome no referido livro. Sabe-se, porém, que em 1947 o roustanguismo já era combatido por prestigiadas figuras espíritas como Deolindo Amorim (pai do jornalista Paulo Henrique Amorim), Carlos Imbassahy e José Herculano Pires (sobrinho do contador caipira Cornélio Pires).
Por isso, a carta chorosa de Francisco Cândido Xavier a Antônio Wantuil de Freitas apela para renegar, de maneira omissa, o roustanguismo, dentro de uma série de missivas em que Wantuil esclareceria a influência de Roustaing no "espiritismo" brasileiro.
Seria preciso uma análise cuidadosa tanto da carta do Mundo Espírita, quanto do total de cartas de Chico a Wantuil tratando de Roustaing, além do livro que Wantuil escreveu sobre o assunto, para que seja feito um parecer ainda mais detalhado sobre a situação. Por ora, ficamos com esta carta de 1947 e as análises que pudemos fazer. Segue o trecho:
"(...) Li a carta que o Mundo Espírita publicou. Encomendemo-nos à Misericórdia Divina. Também, como tu, pedi ao Ismael nada responder. Seria muito triste 'lançar gasolina nesse fogo'. Há casos em que todo comentário é difícil. Por minha vez, estranho o que ocorre, de tal modo que só vejo uma saída: Levar o coração em silêncio para a casa da prece.
Não te incomodes com a declaração havida de que o trecho alusivo a Roustaing, em Brasil (Coração do Mundo, Pátria do Evangelho), foi colocado pela Federação. Quando descobrirem que a casa de Ismael seria incapaz disso, dirão que fui eu. De qualquer modo, eles falarão. O adversário tem sempre um bom trabalho - o de estimular e melhorar tudo, quando estamos voltados para o bem".
É uma atitude estranha. Chico, com aquele jeito temeroso de serem reveladas as próprias contradições que o promovem no seio do "movimento espírita", sente o receio de "lançar gasolina nesse fogo", numa típica metáfora xavieriana. Ele preferiu não se pronunciar sobre a acusação de roustanguismo, se omitindo no "silêncio da prece".
Também soa muito estranho Xavier dizer que a FEB seria "incapaz" de "colocar Roustaing" em Brasil, Coração do Mundo, Pátria do Evangelho. Ou então Chico teria questionado alguma forma de argumentação do qual só mesmo a carta publicada em Mundo Espírita, até agora inacessível, seria capaz de esclarecer.
Isso porque a FEB era entusiasta defensora de Jean-Baptiste Roustaing. As ideias do advogado francês que deturpou a Doutrina Espírita eram apreciadas com simpatia até por Chico Xavier. Apenas aspectos como o Jesus fluídico e a reencarnação em animais, plantas ou outros seres inferiores foram, com o tempo, descartados. Por exemplo, os "criptógamos carnudos" (reencarnação em seres irracionais) foi substituído pelo mito xavieriano dos "bichinhos no mundo espiritual".
Todavia, com a campanha feita por Deolindo, Herculano, Imbassahy e outros, denunciando a tendência roustanguista na FEB, ela tornou-se, com o tempo, mais sutil, de forma que Chico Xavier, Divaldo Franco e outros dirigentes "espíritas" combinaram supostas mensagens "espirituais" atribuídas a Adolfo Bezerra de Menezes reclamando "fidelidade a Allan Kardec".
Quando a crise do roustanguismo tornou-se insustentável, Chico, Divaldo e seus pares resolveram pular fora do barco e passaram a defender o "roustanguismo sem Roustaing", um roustanguismo light servido como se fosse um "kardecismo com Chico Xavier", do qual quase nada havia da essência original de Allan Kardec.
E assim o "movimento espírita" chegou ao que seus dirigentes definem como "ponto de equilíbrio". Evocam, em tese, as bases científicas de Allan Kardec e alegam fidelidade às mesmas. Mas não abrem mão do religiosismo roustanguista, que apenas foi amenizado para não causar maiores problemas. É o "jeitinho brasileiro" a serviço do "espiritismo" local.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.