EDUCAÇÃO NUM "CENTRO ESPÍRITA" - Ajuda, mas não traz transformações profundas na sociedade.
O Brasil é um país com muita coisa mal resolvida. Ideias novas aparecem aqui truncadas e deturpadas, já que o país costuma ficar apegado a ideias e valores obsoletos, mas que são defendidos por diversas desculpas, até de ordem "técnica", devido a interesses estratégicos de grupos sociais privilegiados.
Por isso, pessoas que parecem progressistas acabam tendo algum ponto ideológico mais reacionário ou, quando muito, bastante conservador. É isso que explica, por exemplo, a complacência de uma parcela de ateus brasileiros com os ídolos do "espiritismo", Francisco Cândido Xavier e Divaldo Pereira Franco, que na verdade sempre foram católicos fervorosos e igrejeiros entusiasmados, portanto, crentes em Deus e a ele submissos.
Historicamente, pessoas que defendiam o Iluminismo e a Declaração dos Direitos Humanos no Brasil, em boa parte, eram pessoas que ainda defenderam radicalmente a escravidão, por razões que variam das "necessidades econômicas" aos preconceitos sociais contra negros e índios. Na cultura brasileira, é recente o fato de intelectuais desejarem a degradação cultural do brega sob uma alegação supostamente progressista.
Até o feminismo brasileiro é filtrado por "tradições" machistas. De um lado, a mulher que segue os estereótipos machistas da "mulher-objeto" é dispensada de viver sob a sombra de um marido ou namorado. De outro, a mulher que busca aprimorar conhecimentos e ideias, tem o que dizer, aprecia bons referenciais culturais e não se subordina a uma imagem sexualizada de si mesma, é "aconselhada" pelo status quo a ter um marido quase sempre dotado de algum status de poder.
O Brasil é considerado um dos países mais conservadores do mundo. E mesmo pessoas que parecem modernas não têm noção do conservadorismo que está dentro delas, do moralismo histérico que aparece até em surtos de pessoas consideradas "alucinadas". Mesmo artistas modernistas mostram surtos de um viés conservador.
Isso influi na ideia de "bondade" que as pessoas têm. As pessoas não têm ideia do que é ativismo social. Dar esmola é ativismo? Dar sopa aos pobres é ativismo? Ensinar a ler, escrever e trabalhar mas, por debaixo dos panos, incutir a fé religiosa, é ativismo? Encarar o sofrimento com resignação e silêncio é ativismo?
Nada disso é ativismo, mas infelizmente há pessoas que insistem em acreditar que tais atitudes assim são. E pessoas que parecem modernas, se acham vanguardistas, e creem que "não há problema" em pensar assim e que "não há conservadorismo" nessas ideias.
Geralmente um repertório de desculpas é apresentado, e pessoas "modernamente" conservadoras tentam ficar com a palavra final. Geralmente com relativismos aqui, relatos de supostas vantagens acolá, e a mesma ladainha do "é melhor que nada" ou "perto de tanta coisa, isso até que é muito", com apelos pretensamente "racionais" e "objetivos".
ABORDAGEM NEOCONSERVADORA
A ideia de "bondade" e "caridade" que prevalece no Brasil havia sido fortalecida tanto pelo ideário católico, reforçada depois por seitas neopentecostais, e consolidada pela propaganda "espírita", durante momentos políticos bastante conservadores, como a ditadura militar.
As pessoas costumam se fascinar com esses conceitos, em que a imagem ideológica mostra o "filantropo" diante de um miserável ou enfermo, numa exploração piegas que, às vezes, é revestida de aparente objetividade.
Toda a propaganda de "caridade" se conhece. Além dos apelos trazidos por Malcolm Muggeridge, o artífice da modernização do ídolo religioso, como organizadamente fez com Madre Teresa de Calcutá, que será canonizada em breve pelo Vaticano, aspectos mais "objetivos" são trazidos pela mídia e pela propaganda religiosa.
No que se diz ao projeto educacional, crianças em sala de aula, anotando coisas em seus cadernos, ou jogando bola nas quadras esportivas durante o recreio, seguem esse apelo "realista", que faz com que os deslumbrados religiosos lancem argumentos "racionais" em prol de tais medidas.
Não que essas medidas não resolvam, mas o efeito delas é inócuo, quando se espera um ativismo maior. "Caridades" assim não mexem no sistema de desigualdades, e cria geralmente cidadãos que sabem ler, escrever e até arrumam emprego, mas não trazem diferencial, são geralmente resignados e domesticados pela abordagem religiosa.
Claro. Num país religioso como o Brasil, se exalta esse tipo de "caridade", que na verdade é paliativa, e que não mexe em uma peça sequer do sistema de classes. Quando muito, as elites dão seus relativos investimentos, como quem se livra dos anéis para preservar os dedos, promovendo bom-mocismo que poderá proteger seus privilégios.
Afinal, diante do processo de caridade paliativa, que apenas evita efeitos extremos de pobreza, pelo menos em tese, as elites preferem investir em aparente filantropia do que, por exemplo, terem que pagar mais impostos pela fortuna que têm.
Além disso, essa aparente filantropia mais deslumbra do que transforma. Ela se vale da imagem ideológica de "boas ações" feitas de forma tranquila. As pessoas veem isso e vão dormir felizes. As desigualdades continuam e até mesmo a miséria, a pobreza e a violência prosseguem. Mas a "tarefa" da caridade paliativa é "feita", há um "esforço" e, por isso, as pessoas ficam tranquilas.
A relação "positiva" entre religiosos e poderosos acaba consistindo numa troca de elogios. É por isso que, no Brasil, ídolos como Chico Xavier e Divaldo Franco nunca fizeram cobrança alguma das autoridades, quando eram homenageados em cerimônias. Pelo contrário, havia sempre um discurso elogioso, bajulatório, exaltado e supostamente fraternal, como se o discurso de "fraternidade" ocultasse as desigualdades entre privilegiados e desafortunados.
CONSERVADORISMO
Isso acaba se tornando conservador. E mais: a caridade paliativa acaba mesmo tendo efeitos pouco expressivos. Mas, em prol da propaganda religiosa, se festeja mais do que se realiza e, dependendo do prestígio do ídolo religioso, ele passa a ser endeusado por pouca coisa.
É o caso da Mansão do Caminho que não consegue ajudar sequer 0,1% da população de Salvador e nem resolve o preocupante quadro de miséria e violência extremas no bairro de Pau da Lima, onde fica a instituição. Mesmo assim, Divaldo Franco é tido, por seus fanáticos seguidores e até por simpatizantes, como o "maior filantropo do país".
A ideia não é definir a caridade pelo resultado, mas medi-la pelo carisma do ídolo religioso e pela forma com que a propaganda religiosa exibe suas atividades. A lógica e o bom senso não são valorizadas pela fé religiosa, daí que Madre Teresa de Calcutá, com seu lado sombrio de megera exploradora e os dois factoides relacionados a supostos milagres, vai se tornar "santa" no próximo 04 de setembro.
O resultado ínfimo da caridade paliativa também pode ser usado como escudo argumentativo, tanto para seus propagandistas e defensores dizerem que "pelo menos os religiosos fazem por onde", "ao menos alguma coisa sempre é feita" quanto para usar como pretexto as "dificuldades enfrentadas com fé e perseverança".
Com isso, ações paliativas como as de Divaldo Franco e a nebulosa caridade de Chico Xavier, sempre com dados vagos e imprecisos, são mais defendidas do que a verdadeira caridade de Paulo Freire, cujo método educacional de alfabetização de adultos estimulava a visão crítica do meio e a união de pessoas para lutar por direitos e melhorias, é condenada pela associação ateia e esquerdista de seu idealizador.
O que importa, para uma parcela de brasileiros que se acha possuidora da "palavra final" e da "visão mais objetiva" das coisas, o que vale não é uma caridade que realmente ajuda, mas a "caridade" vinculada a um adorado ídolo religioso, que "ajuda" sem ferir o sistema de classes e, por isso, é visto como atitude "moderada" e "equilibrada".
Dessa maneira, a publicidade religiosa cria um estereótipo conservador, mas bastante convincente, de "bondade" e "caridade". Tenta, com isso, criar um teatro de sacrifícios e equilíbrios que anestesia as pessoas, já que se tratam de "bondades" que não mexem nas estruturas injustas da sociedade.