As crises do roustanguismo, as vaidades pessoais e o poder concentrado da Federação "Espírita" Brasileira fazem com que o "movimento espírita" se torne fragmentado, mas mesmo assim preso, em suas diversas matizes "dissidentes", à vocação igrejista de sua doutrina, sempre a mesma e que, por mais que alegue "fidelidade a Allan Kardec", mantém suas bases roustanguistas.
Chama a atenção a trajetória de Rino Curti (1922-2003), um desses inúmeros dissidentes, derivados não-assumidos do roustanguismo que tentam misturar compreensões aparentemente "profundas" do pensamento de Allan Kardec com o igrejismo manifesto nas expressões "Evangelho de Jesus" e na adoração a personagens como Francisco Cândido Xavier e Divaldo Franco.
O livro Espiritismo Progressista, das escritoras Maria de Lourdes Mônaco Janotti e Alice Beatriz da Silva Gordo Lang, dá uma amostra da biografia e das atividades de Rino Curti que, à sua maneira, corresponde à tendência "duplipensante" do "movimento espírita" em seus diversos grupos que pregam a "fidelidade a Allan Kardec" sendo no entanto ligados ao igrejismo de Chico Xavier.
Rino Curti foi um italiano radicado em São Paulo engenheiro que se interessou pelo "espiritismo" a partir das obras atribuídas a André Luiz lançadas por Francisco Cândido Xavier. De início se vinculou à Federação "Espírita" do Estado de São Paulo (FEESP) e à Federação "Espírita" Brasileira (FEB). Trabalhou na Instituição Beneficente Nosso Lar, também em São Paulo.
As duas autoras, embora prometam uma obra "não proselitista" e "não-sectária", mostrando com "objetividade" a trajetória da Doutrina Espírita, definem Chico Xavier, Divaldo Franco e Waldo Vieira como "competentes médiuns".
Do mesmo modo, as duas alegam que através deles os espírito Emmanuel e Joana de Angelis e os supostos espíritos de Humberto de Campos (usurpação indevida do nome de um falecido escritor) e André Luiz (fictício) "aprofundaram sobremaneira a obra de Kardec, trazendo um minucioso detalhamento de novas informações sobre o mundo espiritual e sua relação com o mundo corpóreo".
Essa tese, sabemos, é inverídica. Mas as autoras, além de admitirem essa tese, seguem a orientação ideológica de que o suposto espírito de Humberto de Campos é "verídico", pouco importando as diferenças que conhecemos, tal como admitem autenticidade existencial a André Luiz.
Aliás, Rino Curti queria enfatizar os "estudos" de André Luiz nas atividades da FEESP. Autoproclamado "profundo estudioso" de Allan Kardec, ele brigou com a FEB porque a federação impôs 42 tipos de passes, enquanto Rino alegava se basear ao professor lionês para definir cinco tipos, a saber, um "passe de sustentação" e outros "passes normais":
PS – passe de sustentação;
PN1 – dirigido ao auxílio na obsessão simples;
PN2 – dirigido ao auxílio na obsessão por fascinação;
PN3 – dirigido ao auxílio na obsessão por subjugação;
PN4 – dirigido ao auxílio de curas físicas, devendo este ser associado à assistência médica.
O grande problema é que Rino, que jura se basear em quatro tipos de passes supostamente descritos por Kardec, desconhece que o professor lionês NUNCA falou nessa prática, conforme lembra o falecido estudioso espírita Jorge Murta:
"Podem procurar em qualquer um dos 5 livros básicos de Kardec e também na Revista Espírita, publicada pela SPEE (*), que verão que em nenhuma delas Kardec faz menção a PASSES, ou seja, o Espiritismo não fala de passes, pois não existem passes, doutrinariamente falando. O que Kardec trata é tão somente no Livro dos Mediuns, acerca da Mediunidade Curativa ou de Cura, que é o influxo magnetico (animal, se apenas do medium ou espiritual, se com o concurso dos espiritos) sobre o organismo debilitado do paciente".
O que Kardec se refere à a mediunidade criativa, algo bem mais específico da natureza do Magnetismo Animal, muito diferente das mãos abanando que se vê nos "centros espíritas". Além disso, Rino misturou ideias de Kardec com as de Emmanuel, Joana de Angelis e André Luiz, o que praticamente emporcalhou a análise sobre a mediunidade.
Rino, "profundo conhecedor" da obra de Allan Kardec, causou séria polêmica não só na FEESP como também em um artigo de Carlos de Brito Imbassahy, que, como o pai, Carlos Imbassahy, se dispôs a condenar as deturpações no seio do Espiritismo feito no Brasil, escreveu um artigo no periódico Mundo Espírita, de Curitiba, de 31 de maio de 1980, intitulado "Reformulação e reforma íntima".
Nele, Carlos de Brito critica severamente o livro de Curti, acusando-o de tentar substituir as análises de Allan Kardec. O contestador aponta diversos erros de conceituação no livro, denuncia sua linguagem elitista, e questiona principalmente a ênfase em André Luiz, que segundo Brito Imbassahy contrapõe a Kardec.
Rino Curti não gostou do questionamento e afirmou o seguinte, não sem fazer certa ironia contra Carlos de Brito Imbassahy (cuja abordagem Rino definiu como "infeliz"), bajular Allan Kardec e insistir que André Luiz estava de acordo com o pensamento do professor francês:
"Os articulistas não desconhecem que André Luiz fala do corpo espiritual em Evolução em dois mundos, esclarecendo a existência dos Centros de Força, que repete no livro Entre o céu e a terra, ampliando o conceito de Kardec. Como não morrem de simpatia por André Luiz (o articulista refere-se a ele desprimorosamente) tentaram armar uma cilada: "Está em André Luiz, mas não em Kardec".
Mas está em Kardec, como vimos. Em matéria doutrinária, André Luiz é o que mais se recomenda, após ter-se inteirado de Kardec.
Permitiria-me fazer uma última recomendação de Allan Kardec ao articulista em questão: "Espíritas, amais-vos e instrui-vos!"
Contraditoriamente, diante da famosa dedicação de Rino Curti à inclusão dos "estudos" do suposto espírito de André Luiz na FEESP, ele tenta relativizar a fama de que estaria preferindo o personagem de Nosso Lar do que o pedagogo francês. E aí, ele tenta argumentar com falsa coerência:
"André Luiz, em um de seus livros, diz que se ele contrariasse o Kardec em alguma coisa, que desprezassem a opinião dele, André Luiz, e ficassem com o Kardec. Porque se você destruir as bases de uma doutrina, você destrói a doutrina".
O que Rino Curti se esqueceu é que André Luiz, seja quem tenha criado ou desenvolvido o personagem (se Chico Xavier, Wantuil de Freitas, Waldo Vieira etc), realmente contrariou Allan Kardec, já a partir da ideia da "colônia espiritual" de Nosso Lar, ideia que em nenhum momento consta nas obras kardecianas.
A "COLIGAÇÃO ESPÍRITA PROGRESSISTA" (CEP)
Tomando como pretexto a aparente caridade de ações filantrópicas e educacionais - em tese louváveis, mas infelizmente servindo de capa para deturpações doutrinárias - , foi fundada a "Coligação Espírita Progressista" (CEP), dissidência que Rino e seus aliados criaram depois que saíram da FEESP.
Suas propostas são confusas, pois, embora a instituição se estruture em princípios e práticas científicos da Doutrina Espírita, também faz ênfase no religiosismo com ênfase na "evangelização", um termo importado da Igreja Católica para definir "educação religiosa", espécie de proselitismo disfarçado de educação moral.
A organização da CEP mostra o caráter explicitamente igrejista, apesar de adotar como pretexto a valorização da intelectualidade. Segue o que descreveu um artigo de uma das autoras, Alice Beatriz, na revista CERU, da Universidade de São Paulo, volume 19, número 02, de 2008:
"Foi dirigida por uma diretoria presidida por Rino Curti até a morte do líder em 2003. Há uma equipe do Plano Espiritual que se liga à CEP, equipe comandada pelo espírito Bezerra de Menezes. Também integram essa equipe os espíritos que, enquanto encarnados, foram o jornalista Medeiros e Albuquerque e os escritores Machado de Assis e Humberto de Campos, observando-se que estes não eram espíritas na vida terrena. Os espíritos manifestam-se nas reuniões da diretoria através dos médiuns, aprovando ou não as decisões tomadas. Os espíritos Emmanuel, Sheila e André Luiz manifestam-se com frequência nessas ocasiões".
Além de usar os espíritos de Machado de Assis e Humberto de Campos (este já sacrificado pela usurpação oportunista e obsediada de Chico Xavier) e citar o jornalista e autor da letra do Hino da Proclamação da República, José Joaquim de Medeiros e Albuquerque, a CEP atribui a Adolfo Bezerra de Menezes o comando de uma de suas equipes.
Observa-se que a autora "se surpreende" pelo fato de que Machado e Humberto não eram "espíritas" e diz que a entidade, voltada para a "assistência social, assistência espiritual e ensino", enfatiza este último objetivo, misturando conhecimento intelectual e igrejismo, alegando que "alunos desencarnados" também aparecem para "aprender, já que não tiveram oportunidade de conhecer o Espiritismo quando encarnados.
Concluímos que o exemplo de Rino Curti e a "Coligação Espírita Progressista" é mais um entre os que, entre meados dos anos 1960 e dos anos 1980, mas orientados sobretudo pela postura dúbia que passou a valer no "movimento espírita" pós-1975, em que roustanguistas de diversos tipos voaram como pombos em cima do ideal da "fidelidade a Allan Kardec".
Com isso, não há como chamar de progressista um movimento que mistura pedantismo científico com abordagem religiosista. Em vez de ser chamado de Espiritismo Progressista, ele deveria ser chamado de Espiritismo Igrejista, como outros como o chiquismo, divaldismo, alamarismo, gasparetismo e tantos, tantos outros.
(*) Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas.
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