sábado, 23 de maio de 2015

Chico Xavier e a sua fantasia sobre os degredados


Como livro de História do Brasil, o volume Brasil, Coração do Mundo, Pátria do Evangelho, é risível e nem de longe remete à suposta missão reveladora que se atribui a uma obra que se acredite espiritual, que prometeria novidades que estariam alheias à nossa percepção terrena.

O livro começa mal pela autoria pois, apesar da atribuição oficial ao espírito do escritor Humberto de Campos (1886-1934), apresenta fortes indícios de um livro escrito a quatro mãos por Francisco Cândido Xavier e Antônio Wantuil de Freitas, então presidente da Federação "Espírita" Brasileira.

Lançado em 1938, o livro destoa completamente do estilo original de Humberto de Campos, escritor maranhense membro da Academia Brasileira de Letras e bastante popular em seu tempo, tirando todo o mérito de Chico Xavier de estar associado ao legado do falecido intelectual.

Humberto tinha, em vida, uma prosa descontraída, laica, culta mas em linguagem informal e acessível. O "espírito Humberto" tinha uma prosa melancólica, relativamente culta mas em linguagem pesada e por vezes falha, dotada de excessivo conteúdo religioso e aberrantes deslizes históricos.

O livro inclui plágios diversos - há até uma transcrição levemente alterada de um trecho de O Brasil Anedótico, que o verdadeiro Humberto produziu em vida como um livro de humor (!) - , criando uma praxe que se associa ao lado sombrio de Chico Xavier, não reconhecido pelos seus seguidores mas cuidadosamente confirmado por especialistas literários dos mais conceituados.

A linguagem de Brasil, Coração do Mundo, Pátria do Evangelho é risível e digna de contos de fadas. Seguramente, Humberto de Campos, mesmo em momentos mais brincalhões, seria incapaz de ter escrito este livro, que, como descrevemos no começo do texto, nada revelou em dados históricos, por repetir as fantasias que a historiografia brasileira oficial já publicava na época.

Sobre os degredados, que descrevemos na postagem anterior, um capítulo inteiro é dedicado a eles, com a mesma linguagem de dramalhão infantilizado trazida por todo o livro. Reproduzimos o capítulo, curto, para que os leitores pesquisem sobre sua linguagem e conteúdo e verificassem a improcedência da autoria de Humberto que, repetimos, tinha estilo completamente diferente.

Nota-se que, no capítulo, Chico Xavier fantasia sobre os degredados, definindo o Brasil como um "paraíso acolhedor" e atribuindo o degredo como se fosse uma "graça divina". Sabemos que isso nunca foi verdade e o exílio se deu apenas porque os portugueses quiseram se livrar de determinadas pessoas e esse era o padrão de sentença penal dada pelas autoridades do país europeu.

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OS DEGREDADOS

Escrito por Francisco Cândido Xavier e (provavelmente) por Antônio Wantuil de Freitas (não creditado). Atribuído (tendenciosamente) ao espírito Humberto de Campos.

Todos os espíritos edificados nas lições sublimes do Senhor se reuniram, logo após o descobrimento da nova terra, celebrando o acontecimento nos espaços do Infinito. Grandes multidões donairosas e aéreas formavam imensos hifens de luz, entre a terra e o céu. Uma torrente impetuosa de perfumes se elevava da paisagem verde e florida, em busca do firmamento, de onde voltava à superfície do solo, saturada de energias divinas. Nos ninhos quentes das árvores, pousavam as vibrações renovadoras das esperanças santificantes, e, no Além, ouviam-se as melodias evocadoras da Galileia, ubertosa e agreste antes das lutas arrasadoras das Cruzadas, que lhe talaram todos os campos, transformando-a num montão de ruínas. Afigurava-se que a região dos pescadores humildes, que conheceu, bastante assinalados, os passos do Divino Mestre, se havia transplantado igualmente para o continente novo, dilatada em seus suaves contornos. 

Uma alegria paradisíaca reinava em todas as almas que comemoravam o advento da Pátria do Evangelho, quando se fez presente, na assembléia augusta, a figura misericordiosa do Cordeiro. 

Complacente sorriso lhe bailava nos lábios angélicos e suas mãos liriais empunhavam largo estandarte branco, como se um fragmento de sua alma radiosa estivesse ali dentro, transubstanciado naquela bandeira de luz, que era o mais encantador dos símbolos de perdão e de concórdia. Dirigindo-se a um dos seus elevados mensageiros na face do orbe terrestre, em meio do divino silêncio da multidão espiritual, sua voz ressoou com doçura:

— Ismael, manda o meu coração que doravante sejas o zelador dos patrimônios imortais que constituem a Terra do Cruzeiro. Recebe-a nos teus braços de trabalhador devotado da minha seara, como a recebi no coração, obedecendo a sagradas inspirações do Nosso Pai. Reúne as incansáveis falanges do Infinito, que cooperam nos ideais sacrossantos de minha doutrina, e inicia, desde já, a construção da pátria do meu ensinamento. Para aí transplantei a árvore da minha misericórdia e espero que a cultives com a tua abnegação e com o teu sublimado heroísmo. Ela será a doce paisagem dilatada do Tiberíades, que os homens aniquilaram na sua voracidade de carnificina. Guarda este símbolo da paz e inscreve na sua imaculada pureza o lema da tua coragem e do teu propósito de bem servir à causa de Deus e, sobretudo, lembra-te sempre de que estarei contigo no cumprimento dos teus deveres, com os quais abrirás para a humanidade dos séculos futuros um caminho novo, mediante a sagrada revivescência do Cristianismo.

Ismael recebe o lábaro bendito das mãos compassivas do Senhor, banhado em lágrimas de reconhecimento, e, como se entrara em ação o impulso secreto da sua vontade, eis que a nívea bandeira tem agora uma insígnia. Na sua branca substância, uma tinta celeste inscrevera o lema imortal: "Deus, Cristo e Caridade". Todas as almas ali reunidas entoam um hosana melodioso e intraduzível à sabedoria do Senhor do Universo. São vibrações gloriosas da espiritualidade, que se elevam pelos espaços ilimitados, louvando o Artista Inimitável e o Matemático Supremo de todos os sóis e de todos os mundos.

O emissário de Jesus desce então à Terra, onde estabelecerá a sua oficina. Os exércitos dos seres redimidos e luminosos lhe seguem a esplêndida trajetória e, como se o chão do Brasil fosse a superfície de um novo Hélicon da imortalidade, a natureza, macia e cariciosa, toda se enfeita de luzes e sombras, de sinfonias e de ramagens odoríferas, preparando-se para um banquete de deuses. 

Os caminhos agrestes tornam-se sendas de maravilhosa beleza, rasgadas pelas coortes do invisível. Nessa hora, a frota de Cabral foge das águas verdes e fartas da Baía de Porto Seguro.

Entretanto, nas fitas extensas da praia choram, desesperadamente, os dois degredados, dos vinte párias sociais que o Rei D. Manuel I destinara ao exílio. 

Os homens do mar se distanciam daqueles sítios, levando amostras da sua extraordinária riqueza. Em toda a paisagem há um largo ponto de interrogação, enquanto os dois infelizes se lastimam sem consolo e sem esperança. Os silvícolas amáveis e fraternos lhes abrem os braços; é dos seus corações rudes e simples que desabrocham, para a amargura deles, as flores amigas de um brando conforto. 

Mas, Afonso Ribeiro, um dos condenados ao penoso desterro, avança numa piroga desprotegida e desmantelada, sem que os olhos da História lhe anotassem o gesto de profunda desesperação, a caminho do mar alto. Ao longe, percebem-se ainda os derradeiros mastros das caravelas itinerantes. O infeliz degredado anseia por morrer. Os últimos gemidos abafados lhe saem da garganta exausta. Seus olhos, inchados de pranto, contemplam as duas imensidades, a do oceano e a do céu, e, esperando na morte o socorro bondoso, exclama, do íntimo do coração:

— Jesus, tende piedade da minha infinita amargura! Enviai a morte ao meu espírito desterrado. Sou inocente, Senhor, e padeço a tirania da injustiça dos homens. Mas, se a traição e a covardia me arrebataram da pátria, afastando dos meus olhos as paisagens queridas e os afetos mais santos do coração, essas mesmas calúnias não me separaram da vossa misericórdia!

Nesse instante, porém, o pobre exilado sente que uma alvorada de luz estranha lhe nasce no âmago da alma atribulada. Uma esperança nova se apossa de todas as suas fibras emotivas e, como por delicado milagre, a sua jangada rústica regressa, celeremente, à praia distante. Em vão as ondas sinistras e poderosas tentam arrebatá-lo para o oceano largo. Uma força misteriosa o conduz a terra firme, onde o seu coração encontrará uma família nova.

Ismael havia realizado o seu primeiro feito nas Terras de Vera Cruz. Trazendo um náufrago e inocente para a base da sociedade fraterna do porvir, ele obedecia a sagradas determinações do Divino Mestre. Primeiramente, surgiram os índios, que eram os simples de coração; em segundo lugar, chegavam os sedentos da justiça divina e, mais tarde, viriam os escravos, como a expressão dos humildes e dos aflitos, para a formação da alma coletiva de um povo bem-aventurado por sua
mansidão e fraternidade.

Naqueles dias longínquos de 1500, já se ouviam no Brasil os ecos acariciadores do Sermão da Montanha.

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