domingo, 29 de novembro de 2015

Malcolm Muggeridge ajudou a reinventar o "espiritismo" brasileiro


O "espiritismo" deve muito a Malcolm Muggeridge. O falecido jornalista britânico, através do documentário Algo Bonito para Deus (Something Beautiful for God), sobre Madre Teresa de Calcutá, realizado em 1969, estabeleceu os paradigmas ideológicos de uma concepção conservadora de caridade, que norteia as várias seitas religiosas ocidentais, inclusive a "espírita".

Crianças pobres sentadas à mesa tomando sopa? Velhinhas sentadas com uma das mãos estendida para receber esmolas? Filantropos segurando bebês no colo e saudando velhinhos miseráveis? Figuras religiosas percorrendo as cidades e sendo cumprimentados pelas pessoas em sua volta?

O roteiro de Muggeridge criou um estereótipo da caridade, combinando moralismo religioso com sensacionalismo midiático. É uma caridade transformada não só em espetáculo, como numa espécie de acalanto ideológico que tranquiliza as pessoas, capazes de santificar qualquer um que siga esse roteiro da encenação "real" da filantropia paliativa.

Essa ideologia da caridade consiste em uma campanha publicitária filantrópica. Velhos miseráveis, crianças carentes, senhoras tristonhas, enrugadas ou subnutridas, mesmo gordinhas, viram garotos-propagandas desse espetáculo da filantropia midiática, do pretenso ativismo que é promovido como se fosse o "mais puro ativismo social" pelo discurso feito pela mídia e pela publicidade.

A ideologia é persuasiva. Apela para discursos emotivos, não raro sucumbindo à mais aberta pieguice. Tudo é feito para estimular o sentimentalismo, enquanto a ideia de caridade se submete a meros atos donativos e ações paliativas, que apenas "melhoram" sem eliminar por definitivo as injustiças sociais.

Mensagens clichês que apelam pela "sabedoria do coração", ao "amor que tudo pode", à "razão que a própria razão conhece", temperam esse discurso de doçura, desse marketing da caridade que soa como um conto-de-fadas para adultos.

A sacarose ideológica que tudo isso representa, e que surgiu como um engenhoso discurso do documentário de Muggeridge, pode não ser um dado inédito na ideologia da filantropia, mas foi através do jornalista inglês que essa ideologia ganhou contornos bem definidos e que influenciou no modo de ver a religiosidade e a caridade feita sob os limites da fé e do assistencialismo.

COMO O DOCUMENTÁRIO INFLUENCIOU O "ESPIRITISMO"

Até os brasileiros tomarem conhecimento do documentário de Malcolm, já na década de 1970, o "espiritismo" brasileiro era uma doutrina considerada excêntrica e trabalhava sua ideologia filantrópica de maneira confusa e quase brutal. Ela se alimentava mais pelo sensacionalismo místico e pelos livros moralistas do que por qualquer pretenso ativismo.

Não que essa aparente filantropia não tivesse sido feita pelo "movimento espírita". Através de Francisco Cândido Xavier, ela havia sido feita já desde meados dos anos 1930. Mas ela ganhou um caráter mais sofisticado depois que a doutrina brasileira tomou conhecimento do documentário britânico.

Com isso, as velhas táticas da Federação "Espírita" Brasileira tinham que ser revistas. E ainda havia a crise do roustanguismo, que fez com que o advogado francês que lançou Os Quatro Evangelhos, Jean-Baptiste Roustaing, fosse visto como uma figura aparentemente abominável.

Mas isso se deu porque os espíritas autênticos, como Herculano Pires, Gélio Lacerda e outros, o que fez isolar os roustanguistas radicais e fazer com que outros adeptos de Roustaing se tornassem mais enrustidos ("enrustanguidos"?), dando origem à atual postura dúbia que o "movimento espírita" adota, uma fingida fidelidade a Allan Kardec aliada a ideais roustanguistas menos polêmicos.

Com as crises e conflitos internos no "movimento espírita", a "filantropia" de Malcolm Muggeridge caiu feito luva. Mais tarde, reportagens sobre Chico Xavier na Rede Globo romperam com a imagem do polêmico paranormal para construir um verniz de "filantropia" no anti-médium mineiro.

A TV Tupi, antes o principal veículo televisivo para trabalhar o mito de Chico Xavier, estava falindo, mas mesmo assim a influência do anti-médium pôde ser inserida na novela A Viagem, de Ivani Ribeiro, exibida em 1975. O enredo era claramente inspirado em Nosso Lar, aliado às mesmas narrativas de dramas familiares que constituiu o ideário "espírita".

Mas o trabalho mais ambicioso foi com a Rede Globo, cuja empresa, as Organizações Globo, chegou a ser hostil com o anti-médium, vide o caso do sobrinho Amaury Xavier Pena. Mas passou a época dos católicos ferrenhos que atacaram o mineiro. Gustavo Corção, católico da direita mais reacionária, morreu em 1978. Alceu Amoroso Lima virou opositor da ditadura militar.

Com o caminho livre na corporação de Roberto Marinho - hoje administrada pelos filhos, ainda mais fiéis ao mito de "caridoso" de Chico Xavier - , noticiários como Jornal Nacional, Fantástico e Globo Repórter trabalhavam o mito com a mesma cartilha de Malcolm Muggeridge. Era como se o documentário sobre Madre Teresa de Calcutá tivesse ganho adaptação brasileira.

Em reportagens e programas documentários, Chico Xavier era trabalhado com todos os ingredientes do documentário britânico: idas a casas de caridade para ver pessoas carentes, pegar bebês no colo, ser saudado pela multidão nas ruas, enquanto as câmeras focalizavam velhinhos e doentes deitados nas camas, crianças negras e pobres tomando sopa etc.

Dessa forma, Malcolm Muggeridge simplesmente reinventou o "espiritismo" brasileiro, dando a ele os ingredientes ideológicos do documentário de 1969. E não foi só Chico Xavier, mas Divaldo Franco e a totalidade do "movimento espírita" que resolveu aproveitar esse verniz de filantropia cuja única contribuição real é ativar o sentimentalismo piegas dos deslumbrados.

Afinal, é uma caridade paliativa, sem grandes transformações, que apenas ajuda as pessoas carentes dentro dos limites que não ameacem os privilégios dos poderosos. Dessa forma, doações de cestas básicas, alojamentos e projetos educacionais acontecem sem que se mexa nas estruturas dominantes. Uma caridade feita mais para causar emoção no público do que trazer melhorias sociais profundas.

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