sábado, 23 de janeiro de 2016
A banalização da inteligência emburrece o Brasil
Todo mundo se acha "inteligente". O troll estúpido da Internet, a "boazuda" que só mostra seu corpo siliconado, o burocrata que exige demais sem saber por quê, o cantor canastrão de brega que se acha o "gênio da MPB", o político que promete muito o que está incapaz e até indisposto a cumprir, e o chefe de recursos humanos que estabelece critérios de admissão de emprego que ele não entende.
O Brasil banaliza a inteligência, como se ela fosse o capim que serve de alimento para os burros. E é o país do "espiritismo", a doutrina igrejista que finge ser "científica" e trabalha os assuntos da espiritualidade com especulação e devaneios, para não dizer o faz-de-conta que permite muitas fraudes "em nome do amor".
A crise de valores e de princípios que atinge o país reflete no apego desesperado a paradigmas confusos e velhos, ao contexto de desigualdades diversas em que os privilegiados não abrem mão de seus privilégios e os sofredores têm que sacrificar mais do que podem para vencerem na vida.
É um país que perde as melhores mentes, vê grandes intelectuais e artistas morrerem cedo ou no auge de sua produtividade e tem medo de ver morrer simples assassinos ricos das próprias esposas ou de ativistas sindicais urbanos ou rurais, mesmo quando os criminosos estão velhos e doentes.
O Brasil que está perdido em velhos paradigmas moralistas, tecnocráticos e místicos, que usa seu moralismo conservador tanto para "proteger" a "defesa de honra" da violência machista e a suposta "bondade" do proselitismo religioso, é tomado por um contexto de insegurança, na qual a suposta inteligência dos privilegiados não consegue mais trazer respostas.
No mercado de trabalho, o medo de empregadores de contratarem pessoas inteligentes ou testar a admissão de pessoas que lhes parecem "excêntricas" é muito grande e os faz contratarem um funcionário "mais ou menos", suficientemente submisso para cumprir as normas da empresa e suficientemente esperto para usar o jogo-de-cintura de sua ascensão pessoal.
Não bastasse a aberração dos empregadores em exigir pessoas ao mesmo tempo jovens e experientes, "veteranos" com idades de "estagiários", agora veio a nova exigência de sugerir dos aspirantes um talento humorístico, criando a figura do "funcionário comediante", que fica "brincando" com os colegas e interage com os fregueses com alguma piadinha pronta.
Se a moda pega, os concursos públicos - conhecidos pelos cacoetes de impor programas de conteúdo universitário a candidatos com formação limitada ao ensino médio - vão passar a exigir redação de piadas humorísticas, com base em "modelos" como o Porta dos Fundos e o Pânico na TV.
Não bastasse os concursos públicos sobrecarregarem os candidatos com provas de questões prolixas, que fazem com que avaliações com 75 questões, que exigem 10 minutos de resolução, sejam feitas em quatro horas (espreme-se o raciocínio de 750 minutos em no máximo 240), exigir que um candidato, além de uma "bagagem" jurídica de um Miguel Reale Jr. o conhecimento matemático de um Einstein, uma habilidade humorística de um Renato Aragão é demais e além da conta.
A sociedade exige demais porque acha que a inteligência surge como capim. Quem está no lado de baixo da pirâmide social tem que sacrificar demais porque, para quem está no lado de cima, é fácil estudar demais e saber tudo de Matemática ou enfrentar questões prolixas nas provas de concursos.
A inteligência se torna algo "fácil demais" e basta qualquer esforço, em certos casos, ou nenhum esforço, em outros, para obtê-la, dependendo dos critérios que se tem a respeito de quem "precisa" ou não se esforçar demais.
Daí as relações confusas entre mediocridade, pedantismo, burocracia, moralismo profissional, que corrompe os humores até de pais de família, que exigem demais dos filhos porque acham que estes são super-heróis com super-poderes e dotados de frieza emocional e capacidades astronômicas para enfrentar as mais sufocantes dificuldades (que, de tão opressivas, já não são desafios e sim infortúnios).
No lado da mediocridade, vemos as "boazudas" siliconadas que vendem o corpo como mercadorias de fantasias sexuais, para consumo por parte de machões sexualmente impulsivos, se achando "inteligentes" porque usam constantemente o Instagram, têm conta no Facebook, "filosofam" em mensagens escritas nas mídias sociais e conhecem o apelido de "Zap-Zap" dado ao WhatsApp.
Há também os canastrões da breguice musical que criava pastiches de samba e música caipira, através dos chamados "pagode romântico" e "sertanejo", que, só por conta de um banho de loja, de tecnologia e técnica e macetes transmitidos, nos bastidores dos espetáculos, por produtores televisivos e fonográficos e por arranjadores musicais, passam a emular a MPB em seus clichês mais conhecidos.
A inteligência se torna ao mesmo tempo um motivo para pessoas medíocres dizer que "têm talento" ou "fazem alguma coisa" quanto para justificar os sacrifícios descomunais que pessoas com dificuldade para se ascender na vida enfrentam só para atingir um benefício mínimo. E isso quando conseguem.
MERITOCRACIA
O fenômeno que permite essas relações desiguais é a meritocracia, a "supremacia do mérito". Por incrível que pareça, não é uma ideologia que valoriza a competência, o talento e a vocação humana, mas antes as desvalorizassem em nome de jogos de interesses diversos.
A ideologia considera o mérito como aptidão para alguma vantagem ou missão. Só que o mérito é considerado por critérios subjetivos, relações de status, interesses estratégicos, em que se combina o poder político, econômico, acadêmico e social (no caso, a ampla visibilidade, sob o apoio da mídia).
Cria-se uma hierarquia na qual os privilegiados não precisam se esforçar mais, enquanto quem está fora do "bacanal" dos afortunados precisa sempre se sacrificar demais para ter apenas alguma coisa. Enquanto os medíocres assumem atribuições que não são de sua competência, as pessoas diferenciadas, mas que não obtém privilégio algum, têm que arrumar "qualquer coisa" para subir na vida.
Daí casos surreais de patrões estúpidos ou "mãos-de-vaca" que só contratam pessoas diferenciadas quando o interesse é vincular os talentos destas às vaidades pessoais daqueles. Fora isso, mesmo empresas conceituadas preferem contratar funcionários medíocres, na esperança de "adestrá-los" de acordo com as perspectivas da empresa.
Banaliza-se a inteligência também pelo adestramento. Tanto faz se é um cantor de "pagode romântico" que mal sabe a diferença do samba do Recôncavo Baiano com o dos morros do Rio de Janeiro ou da colônia italiana de Bexiga, bairro de São Paulo. Muitos acreditam que basta "treiná-lo" e jogar um "banho de loja" e tecnologia para ele parecer um "sambista de verdade", como certos autoproclamados "gigantes do samba".
Daí tantas aberrações. Internautas reacionários que fazem trolagem e dizem que "não precisam raciocinar porque nasceram inteligentes". Empresários e médicos de apenas 60 anos de idade que, envaidecidos pelos cabelos brancos, se apressam a supor uma "bagagem" de vida de idosos de 80 anos, mal conseguindo entender o universo de suas idades.
A inteligência se torna alvo de uma grande ilusão em que ela é fácil de adquirir. A ilusão é alimentada pelo fato de que o Brasil está conectado pela Internet e pela informação aparentemente instantânea, realidade antes impossível, e essa ilusão faz as pessoas acreditarem que tornou-se fácil ser inteligente e sábio, bastando apenas colher ideias como quem enche um carrinho de supermercado.
É, portanto, uma ideia materialista, e que ignora questões como o fato de que é insuficiente a pessoa saber de alguma coisa sem se identificar com ela. Há muito know how sem o feeling necessário, só para usar o preciosismo dos termos em inglês, que o público médio entende. E é isso que derruba muitas e muitas ilusões.
Gafes inteiras são cometidas aqui e ali. Pessoas erradas são contratadas para cargos importantes. Políticos sucumbem à tentação da corrupção porque são incapazes de lidar com a coisa pública de maneira séria, porque requer muita administração e investimentos. E quem não sabe fazer fica ofendido quando assume algum trabalho do qual não tem vocação e é chamado de incompetente.
Até na cultura, o caso aberrante da Rádio Cidade, que jogou seu histórico de rádio pop barranco abaixo para viver uma "aventura" como pretensa rádio de rock, se baseou na ilusão de ter uma equipe sem qualquer especialização no gênero musical, por causa do recurso paliativo de usar uns três produtores com "alguma noção de rock" para pesquisar páginas especializadas e colher notícias das mesmas.
A ilusão de radialistas sem especialização dependerem da "livre sugestão" de ouvintes de rock para pedir músicas e dizer o que esses radialistas devem fazer - imagine um locutor de estilo Jovem Pan ter que fazer o papel de um "conhecedor" de rock pesado - reflete essa suposta facilidade das pessoas "aprenderem" algo que, no fundo, não têm a menor vocação em fazer.
As relações de pretensiosismo, de conveniências, de burocracia, de moralismo e tantos interesses levianos faz com que o Brasil se perca num padrão de desigualdades que se revela irreversível porque quem está em cima não quer "largar o osso" e abrir mão de tantos critérios, interesses e preconceitos que norteiam, ou melhor, desnorteiam as relações sociais, políticas, profissionais e até artístico-culturais.
Não há uma flexibilização nas exigências de emprego nem em concursos públicos, não há uma consciência de limites dos medíocres que embarcam em qualquer aventura em nome das vaidades pessoais - como o "sertanejo" ou "pagodeiro" bregas que tentam fazer MPB ou o radialista "poperó" que quer fazer uma "rádio de rock".
Quem é incompetente embarca em qualquer "corrida ao ouro" assumindo causas que nem entendem, dos políticos incompetentes aos músicos canastrões, das "musas" que "mostram demais" aos tecnocratas que dão pitaco sobre o que acham que o povo quer ou precisa, e isso corrompe a inteligência de uma forma ou de outra.
Quem realmente sabe tem que sacrificar demais para conseguir algo abaixo de seus talentos. Quem não sabe obtém privilégios e vantagens e passa a ser vinculado a uma habilidade que no fundo tem dificuldades de exercer, mas que busca artifícios para dar a falsa impressão de que está fazendo um "bom trabalho".
Isso acaba emburrecendo o país em todos os aspectos, barrando o acesso às nossas melhores mentes e deixando o Brasil num contexto social, cultural, político, econômico, tecnológico e midiático totalmente viciado, perdido numa decadência silenciosa que a própria mediocridade esconde por sua própria natureza. Os ignorantes ignoram a própria ignorância que têm.
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