RÁDIO USA A DESCULPA DO "ROCK DE VERDADE" PARA ATRAIR CONSUMISTAS PARA O CARÍSSIMO MERCADO DE EVENTOS DO GÊNERO.
Muita coisa é deturpada, no Brasil, mas o mais grave é que, quando a deturpação se consagra, ela tenta se sobrepôr ao original, de tal forma que o verdadeiro torna-se defeituoso e as virtudes se apoiam no falso, pela sua pretensão em soar "verdadeiro", "mais realista que o rei", como diz o ditado popular.
A cultura rock, que é um dos principais canais de expressão da juventude contemporânea, corre o risco de ser para sempre empastelada, de forma semelhante que a doutrina de Jesus, vítima de sucessivas deturpações trazidas a partir do Catolicismo medieval.
A Rádio Cidade, FM carioca que nunca teve tradição no segmento rock - até agora se limitou a ser apenas uma rádio pop com vitrolão "roqueiro" - , lançou novo logotipo e, na atual fase para turista ver - ela visa o mercado turístico a ser alimentado a partir das Olimpíadas de 2016, a ocorrerem no Rio de Janeiro - , agora usa o tendencioso e pouco convincente lema "Rock de Verdade".
Isso porque a Rádio Cidade não é rádio de rock de verdade. Seu histórico original nem teve vínculo com o rock, já que seu perfil era de pop dançante numa época em que as grandes bandas de rock, como Ramones, Iron Maiden e AC/DC, já estavam se consagrando.
O vínculo da Rádio Cidade ao rock foi apenas mercadológico, sem qualquer preocupação cultural, e veio de fininho meses depois da Rádio Fluminense FM ter saído do ar, em 1994. A Fluminense havia passado por uma fase decadente entre 1991 e 1994, longe da criatividade que a consagrou nos anos 80, e por isso sucumbiu à baixa audiência.
Só que a Rádio Cidade nunca foi além dessa mesma performance. Seu espaço para o rock nunca foi além do superficial, e chegava a ficar aquém do básico. A Cidade sempre foi uma rádio de hits, e mesmo grandes bandas, com um grande repertório de boas canções, nunca apareciam na rádio além de um pequeno punhado de sucessos manjados, às vezes até uma única música.
O problema é que a Rádio Cidade criou um lobby que se torna fortíssimo, e começa a ameaçar até a cultura do rock autêntico que se achava protegida pela Internet e por projetos de memória. Mesmo a rádio Cult FM e o projeto Maldita 3.0 correm o risco de serem jogados à margem por causa da poderosa máquina publicitária da Rádio Cidade.
A emissora dos 102,9 mhz tende a tornar obsoleto todo o árduo trabalho que Luiz Antônio Mello fez na Fluminense FM, nos anos 80. Ele mantém sua lucidez e sua brilhante cultura em dois programas na Cult FM, "No Cafofo do LAM" e "Comando da Madrugada".
E o projeto Maldita 3.0, no momento com exposições no Imperator, casa carioca localizada no Méier, organizado com paciente e atenciosa dedicação por Alessandro ALR, relembra os tempos áureos da Fluminense FM, com fotos, textos e objetos diversos.
Mas de que adianta isso? O "Comando da Madrugada" pode ser levianamente copiado pelo "Clássicos do Rock" da Rádio Cidade, que já pegou carona no fim da Kiss FM (outra rádio de rock autêntico sediada em SP e que tentou entrar no RJ em fase experimental) tocando bandas "difíceis" que a RC nunca tocaria por vontade própria.
Por outro lado, ver que todo o trabalho realizado por LAM e sua equipe na Fluminense FM, evitando reproduzir valores e práticas das rádios pop, como contratar locutores "engraçadinhos" e gravar vinhetas "saradas", pode ser considerado obsoleto e virar artigo de museu (ameaça não descartada, mesmo para um projeto admirável como o Maldita 3.0), com todo o trabalho reduzido em vão.
Isso porque a Rádio Cidade, na verdade, não é mais do que uma rádio pop. De rock, só existe a fachada da publicidade e o repertório musical tocado. Personalidade de rádio de rock ela nunca teve, mesmo em seus momentos mais "nervosos", descontando apenas antigos programas específicos, que já haviam sido produções independentes sem vínculo com a linha geral da rádio.
Se é para a Rádio Cidade ser paradigma de rádio de rock, então todo o trabalho da Fluminense FM foi em vão, porque o trabalho de Luiz Antônio Mello não foi fácil, ele enfrentou dificuldades e infelizmente ele não pôde ver a rádio crescer, porque um projeto de rede foi abortado por problemas financeiros, já que a antiga "Maldita", como era conhecida, não tinha dinheiro sequer para pagar um único telefonema para os EUA.
Com a Rádio Cidade, bastava às pessoas baterem panela diante de qualquer FM pop - talvez até a própria Rádio Cidade da época - e pedir para ela focalizar o vitrolão apenas no rock, sem preocupação com a mentalidade,estado de espírito e perfil diferenciado. Os locutores animadinhos poderiam falar suas gracinhas enquanto o toca-discos despejava até bandas de punk e metal.
Com o lema "Rock de Verdade" acompanhando o logotipo da Rádio Cidade nos anúncios publicitários, a situação fica calamitosa. Alguns roqueiros já consideram a atual Rádio Cidade como o segundo assassinato de Alex Mariano, produtor que substituiu Luiz Antônio Mello na coordenação da Fluminense e que, em 2014, foi morto num assalto em sua loja, no Centro de Niterói.
A Rádio Cidade sempre tratou o público roqueiro da forma estereotipada, como se fossem roqueiros de novela da Globo. Sua programação, na verdade, era calcada na grade de programas da Jovem Pan FM, só que adaptados para o pretexto "roqueiro".
Programas como Hora dos Perdidos e Rock Bola - que aposta no constrangedor vínculo entre rock e futebol, quando 99% dos jogadores de futebol, incluindo o craque Neymar, não curtem o gênero - são abertamente influenciados pelo Pânico da Pan, conhecido na TV pela adaptação chamada Pânico na Band.
Além disso, a Rádio Cidade nunca fez uma cobertura digna da cultura rock, tocando apenas os hits mais manjados e inserindo neles bandas comerciais de rock de gosto muito duvidoso, como Creed, Bloodhound Gang, Mamonas Assassinas ou mesmo o "arroz-de-festa" Guns N'Roses, com popularidade comparável à Ivete Sangalo em relação ao rock.
Nem mesmo o básico da cultura rock chegava a ser atendido pela emissora dos 102,9 mhz, que passou por uma fase tocando apenas 60 músicas várias vezes ao dia, de quatro em quatro meses, durante anos. Hoje o repertório é variado em quantidade, mas a mentalidade "só sucesso" continua. A banda inglesa The Cure, por exemplo, com longa carreira, só aparece com "Boys Don't Cry".
O grande problema está no lobby da Rádio Cidade, um alerta não só para os fãs de rock autêntico mas para quem sempre se preocupa com a ameaça da deturpação estar sempre acima da original. Luiz Antônio Mello já havia escrito, em 1992, da fobia que o pessoal da Fluminense FM sentia quando a Cidade, "com seus milhares de quilowatts, de repente, despejasse rock sobre o Rio". "Estaríamos ferrados", acrescentou.
O trabalho de LAM pode até ter paralelos com o que ocorreu na Doutrina Espírita com Allan Kardec, ele mesmo tendo sua doutrina deturpada na França por Jean-Baptiste Roustaing e, mais tarde, vendo essa deturpação se consagrar com Chico Xavier, Divaldo Franco e companhia, todos em nome do "espiritismo de verdade".
O trabalho pioneiro é empastelado, distorcido, deturpado, enquanto o deturpador acumula poder e prestígio e obtém a "patente" das mãos do pioneiro. A hipocrisia passa a substituir o idealismo, e deturpadores podem imitar ou rejeitar os conceitos originais conforme as circunstâncias, nunca de forma espontânea mas sempre vendo alguma vantagem pessoal em jogo.
A Rádio Cidade nunca tocou bandas "difíceis" de rock dos anos 70, mas com o fim da Kiss FM - rádio de rock autêntico que tentou um lugar ao Sol no embolorado dial carioca - , dedicada ao rock clássico, a RC "chupou" algumas músicas do playlist da extinta afiliada da rede paulista, visando se autopromover com isso.
A emissora apenas "melhorou" o repertório musical - "melhorou" dentro dos padrões do ouvinte médio, que costuma nivelar as coisas por baixo e acha que até Valesca Popozuda é "diva da MPB" - para se justificar no mercado, mas ela mantém distorções sérias em relação ao radialismo rock, sobretudo pelo estilo de locução adotado.
Este é feito por locutores sem qualquer vínculo com a cultura rock, mais preocupados em falar gírias da moda, como as intragáveis "galera" e "balada", com uma dicção quase andrógina que lembra animadores de festas de aniversário, sem a dicção natural dos verdadeiros locutores roqueiros que, por exemplo, haviam na Rádio Fluminense FM.
Na verdade, o perfil rock é caricato porque a Rádio Cidade não tem vínculo natural com o rock, mas apenas com um mercado e um empresariado envolvido com os grandes festivais. A ideia é apenas trabalhar um estereótipo "roqueiro" socialmente aceitável o suficiente para empurrar uma grande parcela de jovens e adultos para o consumismo que inclui grandes eventos.
Os jovens "rebeldes" trabalhados pela Rádio Cidade são induzidos, a exemplo dos antigos "baixinhos" de Xuxa Meneghel, para o consumismo voraz e compulsivo, gastando muito dinheiro para ingressos caros de eventos de rock, para comprar, em suas lojas, produtos e alimentos com preços exorbitantes. A "cultura rock" da Rádio Cidade explora os bolsos, corações e mentes dos jovens brasileiros, de forma mais cruel do que se imagina.
Por isso é que o perfil "roqueiro" da Rádio Cidade é ideologicamente conservador, conformista, consumista, mesmo quando admite crises políticas e corrupção. Anos atrás os ouvintes da emissora chegaram a adotar posturas reacionárias, comparáveis ao que se observa na revista Veja e em comentaristas como Reinaldo Azevedo e Rodrigo Constantino.
No Rio de Janeiro de Eduardo Cunha, a Rádio Cidade se acha "dona" da cultura rock que não quer entender bem. No Brasil de Chico Xavier, é a deturpação de uma cultura que tenta prevalecer até sobre a original. Mais uma vez, todos os árduos trabalhos dos pioneiros serão deturpados cruelmente por oportunistas em busca de vantagem com alguma novidade. Triste.
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