GILMAR MENDES, DIVALDO FRANCO E REINALDO AZEVEDO - A última coisa que eles querem é a coerência.
O Brasil sofreu um atraso de décadas. Depois de tanto esforço pela redemocratização, sucumbimos a um governo republicano feito nos moldes do governo de Ernesto Geisel, combinando valores moralistas, tecnocráticos e até mesmo teocráticos, sem falar da corrupção e da incompetência que o status quo deixa passar.
A instauração do governo do presidente interino Michel Temer, até pelo modo confuso com que ele se deu diante de um suposto escândalo político que fez a antiga titular Dilma Rousseff, hoje afastada, ser derrubada por meros boatos mal esclarecidos, mas superestimados pela raiva coletiva, reflete um Brasil sem compromisso com a coerência.
Dominado por uma "cultura popular" feita sem vínculos comunitários com as classes populares, mas em função da aliança de empresas de entretenimento com emissoras de rádio regionais e redes de televisão, o Brasil deixa o mundo perplexo com seu apego desesperado à incoerência.
Há quem diga que a série de livros FEBEAPÁ - Festival de Besteiras que Assola o País, que Sérgio Porto escreveu sob o pseudônimo de Stanislaw Ponte Preta, não só sobreviveu à morte prematura de seu autor (aos 45 anos, em 1968) como simplesmente saiu do papel para tornar-se realidade cotidiana. Um novo volume poderia ser composto apenas de fatos ocorridos nos últimos três anos.
O Brasil tornou-se surreal em diversos aspectos. E uma boa parcela de brasileiros prefere sacrificar a lógica e o bom senso para preservar as convicções pessoais, vide vários aspectos. E, em nome do status quo, são capazes de endeusar personagens que se envolvem em escândalos gravíssimos.
Vide o governo Michel Temer. A votação que possibilitou esse governo, realizada em 17 de abril passado na Câmara dos Deputados, pela abertura do processo de impeachment de Dilma Rousseff, se deu com muitos parlamentares envolvidos em corrupção que votaram pelo "sim" - "Fora, Dilma" - , sob a desculpa de "combate à corrupção".
Pior: envolvidos em homicídios, contravenção, desvio de dinheiro público, extração ilegal de madeira, contrabando, estelionato e outros crimes deram o "sim" "em nome da moralidade". E eram presididos por um deputado com um extenso histórico de corrupção, envolvido em escândalos de propina e desvio de dinheiro público para as contas dele e de sua família, num famoso paraíso fiscal.
CATÁSTROFE SÓCIO-POLÍTICA
A catástrofe sócio-política já existia anos atrás, quando pessoas que denunciavam arbitrariedades políticas, modismos culturais de gosto duvidoso, instituições de reputação discutível e outras aberrações eram esculhambadas pela Internet pelos chamados "troleiros" ou trolls, espécies de "cães de guarda" do "estabelecido", que, em certos casos, chegaram a criar blogues feitos exclusivamente para caluniar seus desafetos, mesmo não sendo eles famosos.
A combinação de burrice, reacionarismo e teimosia cria um quadro surreal do Brasil, que assusta o resto do mundo. Um Brasil neo-medieval, neuroticamente narcisista, onde as convicções pessoais estão acima da lógica e do bom senso, que vive a tirania da estupidez humana que, se deixarmos, é capaz de mandar no mundo.
É um Brasil cujo Estado do Rio de Janeiro sofre uma decadência avassaladora, que o coloca aos níveis de um Estado do Norte nos tempos da ditadura militar, e sofrendo a ameaça de ter um fascista no poder, o jovem Flávio Bolsonaro, filho do encrenqueiro Jair Bolsonaro, se caso a histeria dos psicóticos que pediram o "Fora Dilma" decidir eleger um figurão desses para a Prefeitura do Rio de Janeiro, que há muito deixou de ser a Cidade Maravilhosa de uma famosa marchinha.
Pois foi esta histeria que praticamente destruiu o Brasil, porque os cariocas, histéricos no seu provincianismo neo-coronelista, foram tentados em eleger para deputado federal o inexpressivo político Eduardo Cunha, que com um poder nas mãos propôs um projeto legislativo que vai contra a Constituição de 1988 e ameaça conquistas sociais históricas alcançadas nos últimos 80 anos.
Os cariocas acabaram prejudicando o país, e causando sérios problemas na medida em que se descobriu que Eduardo Cunha faz o tipo do corrupto carreirista e traiçoeiro, que com muito trabalho teve que ser expulso do poder e afastado da presidência da Câmara dos Deputados, já que Cunha seria o vice-presidente do governo Michel Temer.
Só quando foi tarde demais os cariocas passaram a fazer passeata contra Cunha. E isso quando a Rede Globo e o jornal O Dia, dois veículos manipuladores da opinião pública do RJ, passaram a repudiar o deputado.
E ainda havia o oportunismo do "funk", ritmo que nunca deveria ter sido levado a sério, e que nunca foi favorável a governos progressistas, até porque seus empresários são muito ricos e vivem às custas da exploração fútil das classes populares.
O "funk" só apoiou os governos do PT visando arrancar verbas públicas do Ministério da Cultura, para poupar seus empresários-DJs de investirem suas fortunas. Alguém acreditaria, mesmo, que um ricaço como Rômulo Costa, da Furacão 2000 e da rádio Top Rio FM, iria mesmo apoiar Dilma Rousseff? Muitos especialistas compararam Rômulo ao antigo militar Cabo Anselmo, que em 1964 disse ter apoiado João Goulart e, mais tarde, foi revelado agente da CIA.
MUNDO PERPLEXO
Jornalistas mais conceituados estão preocupados com o governo de Michel Temer. Em menos de um mês, o governo interino revelou uma surpreendente coleção de gafes, escândalos e inconvenientes. Entre os episódios risíveis, um Alexandre Frota sugerindo "propostas para a Educação no Brasil".
Para piorar, Frota se reuniu como ministro da Educação, Mendonça Filho - um leigo no setor - dias antes de um triste episódio de estupro coletivo chocar o Brasil e o mundo. Frota havia narrado um estupro que supostamente realizou contra uma mãe-de-santo em um programa de entrevistas e humor, e tanto o reacionário apresentador Danilo Gentili quanto plateia e outros presentes se divertiram, com muita animação, a essa estória.
A situação do Brasil de hoje é muito chocante, e a imprensa estrangeira, não necessariamente esquerdista e, em parte, aparentemente tão conservadora quanto o governo de Michel Temer, admite que seu governo foi implantado por um golpe político, institucional e jurídico, sob o apoio de grandes grupos de Comunicação.
Na mídia, observa-se a atitude psicótica da revista Veja, com sua linha editorial desequilibrada, na qual verdadeiras calúnias são lançadas para desmoralizar políticos como Luís Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff. Não se trata de uma discordância saudável a Lula e Dilma, que até eles aceitam e autorizaram em seus governos, mas de uma escancarada campanha de difamação e injúrias.
Mas Veja é apenas o veículo mais radical e nervoso de uma mídia reacionária, Os veículos das Organizações Globo (O Globo, Rede Globo, Globo News e CBN), a Folha de São Paulo e O Estado de São Paulo são também conhecidos pelo seu reacionarismo. Mas mesmo veículos supostamente "neutros" como o Grupo Bandeirantes (TV Bandeirantes e Band News TV e FM) e a revista Isto É, ou mesmo a baiana Rádio Metrópole FM também tem surtos reacionários surpreendentes.
Quanto aos comentaristas, pessoas como Merval Pereira, Reinaldo Azevedo, Eliane Cantanhede, Josias de Souza, Ricardo Noblat, Diogo Mainardi e Diego Escosteguy são algumas das vozes reacionárias que sacrificam a transparência da informação para colocarem seus juízos de valor acima da realidade, tornando-se, nos últimos tempos, "militantes" do impeachment de Dilma.
No Judiciário, além da atuação tendenciosa do Supremo Tribunal Federal e da parcialidade do juiz paranaense Sérgio Moro - que chegou a participar de eventos do PSDB - , além da atuação irregular de Gilmar Mendes, que se comporta mais como um político do que como membro do Poder Judiciário, sem poder esconder sua ação promíscua com os atuais detentores do poder.
Recentemente, Gilmar Mendes tornou-se relator de um processo judicial do deputado Eduardo Cunha contra o jornalista e deputado Jean Wyllys, apenas porque Cunha não gostou de ter sido chamado de "ladrão". A medida, longe de apresentar uma ação de uma vítima de danos morais - em se tratando de Cunha, isso é menos provável - , é muito mais um meio de desmoralizar um ativista de esquerda, cuja opção sexual vai contra as convicções religiosas apoiadas pelo ex-presidente da Câmara.
No final do mês passado, Gilmar Mendes jantou com o presidente interino Michel Temer, em mais uma estranha promiscuidade político-judicial. Cinicamente, Gilmar alegou que o jantar tinha "motivos profissionais", usando uma estranha desculpa de "pedir verbas" para o Tribunal Superior Eleitoral, presidido pelo ministro do STF.
Segundo especialistas em Direito, esse não é um processo correto de pedir verbas para o TSE. Para esse objetivo, o presidente do STF, no caso Ricardo Lewandovski, é que se reúne, em horário de trabalho, com o presidente da República para discutir o assunto e o Congresso Nacional é que vota a necessidade de investimentos, dentro do roteiro de orçamento da União para o referente ano. Nunca um jantar entre amigos poderia ter esse fim.
O "ESPIRITISMO" BRASILEIRO
O rol de escândalos aberrantes que se revela por trás do governo de Michel Temer - um governo interino que se autoproclama "definitivo", com planos para 2017 e 2018 mesmo diante da possibilidade legal de Dilma voltar ao poder - , que custou a saída de dois ministros - Romero Jucá, do Planejamento, e Fabiano Silveira, da Transparência - , anda deixando o mundo perplexo.
Mas o que mais espanta é que no Brasil uma parcela da sociedade quer impor suas convicções pessoais e sua visão oficial do mundo, sacrificando lógica, bom senso, coerência, interesse público etc. Mania que já foi o motivo de muitas trolagens, em que os internautas agressores sempre quiseram impor a prevalência de valores retrógrados "estabelecidos", em nome do status quo de políticos, tecnocratas, acadêmicos, empresários e até famosos (tipo Luciano Huck, por exemplo).
É assustador que o obscurantismo travestido de irreverência, praticidade ou motivação técnica se imponha à sociedade, à realidade e até ao mundo. Ver um José Serra transformado em ministro das Relações Exteriores querendo impor o ponto de vista surreal do governo Michel Temer, em detrimento da perplexidade que o mundo sente diante de um governo estranhamente instituído, é um claro exemplo disso.
É um país em que pessoas se reúnem surrealmente para cada um ficar isolado em si mesmo brincando com o WhatsApp no celular, vendo vídeos "divertidos" e mensagens "hilárias". O Brasil vive a ditadura da estupidez, resultado de uma mistura de ignorância, egoísmo, narcisismo, teimosia, agressividade e uma combinação contraditória de libertinagem e autoritarismo.
Também é o país que, no caso do "movimento espírita", também experimentou essa agressão à lógica e ao bom senso. Diante da promoção tendenciosa de um estranho caipira católico, que se declarava paranormal e depois foi fazer pastiches e plágios literários, aos níveis de um semi-deus, o "espiritismo" brasileiro é o exemplo de como se chuta o pau da barraca quando se trata de combater a lógica e o bom senso.
A memória curta, o jeitinho brasileiro, e a mania recente das pessoas usarem argumentos pretensamente racionais para defender posturas absurdas e desprovidas de coerência e lógica é que permitem que uma religião como o "espiritismo" se mantenha em situação aberrantemente impune e isso é preocupante.
É por causa da memória curta que os partidários de Francisco Cândido Xavier só conhecem ele através da agradável imagem de "filantropo" construída pelas Organizações Globo, corporação midiática cuja habilidade é manipular o inconsciente coletivo das pessoas. A popularidade do "funk" e de uma simples gíria, "balada", se devem ao poder da Rede Globo de Televisão.
Chico Xavier esteve associado a escândalos terríveis. E, em todos eles, Chico agiu de propósito, de maneira direta ou indireta. São casos aberrantes de plágios e pastiches literários, falsamente tidos como "psicografias", participou de fraudes de materialização, mas que as pessoas deixam passar porque nelas existe a fantasia dócil do "bom velhinho" associado a clichês da devoção religiosa.
Para piorar, Chico Xavier era adepto da Teologia do Sofrimento, a pior corrente da Igreja Católica de origem medieval, embora popularizada, nos últimos séculos, por Santa Tereza de Lisieux e, mais adiante, por Madre Teresa de Calcutá, denunciada por Christopher Hitchens e acadêmicos conceituados por usar essa ideologia para deixar os pobres e doentes sofrerem sem digna assistência.
Chico Xavier defendeu a Teologia do Sofrimento com suas próprias palavras. De maneira explícita, clara. evidente. Ele dizia para os sofredores não mostrarem sofrimento e sempre pregou que sofrer desgraças era "uma graça do Alto". Ninguém até agora admitiu oficialmente, mas, com a Teologia do Sofrimento, o "bondoso médium" causou um grande estrago na forma com que a Doutrina Espírita era introduzida no Brasil.
Chico defendeu a ditadura militar, também da forma mais explícita possível. Está no programa Pinga-Fogo, da TV Tupi de São Paulo, transmitido em 1971 e hoje disponível no YouTube. Era uma época em que antigos defensores do golpe de 1964, como Carlos Lacerda, já estavam na oposição, vendo que a ditadura vivia uma fase ainda mais cruel.
Só faltava, naquela época, o "médium" dizer que o truculento coronel Brilhante Ustra era apenas "agente de resgates coletivos" e que o ex-deputado Rubens Paiva (pai do escritor e dramaturgo Marcelo Rubens Paiva) foi morto por ter sido um "tirano romano" em outra encarnação.
A literatura de Chico Xavier é um repertório de visões preconceituosas, ideias retrógradas e valores moralistas dos mais conservadores. Mas a imagem ideológica construída habilidosamente por Antônio Wantuil de Freitas, da FEB, e, mais tarde, pela Rede Globo (que agora faz o mesmo com Divaldo Franco) tornou-se uma pegadinha tão habilidosa que enganou até mesmo muitos esquerdistas e ateus.
Daí que estes, que nunca poderiam sair em defesa de Chico Xavier e Divaldo Franco, tornaram-se, na boa-fé, fanáticos defensores, usando a desculpa de uma "bondade" que só é exaltada porque tem a chancela da religião. Até porque a "caridade" dos dois foi tão vaga ou ineficaz quanto o que os próprios chiquistas e divaldistas imaginam ter sido o governo Dilma Rousseff.
Alguém refletiu, por exemplo, que, se realmente funcionasse a "caridade" de Chico Xavier e Divaldo Franco, o país não teria sofrido a crise dos últimos anos? E o que dizer dos locais "protegidos" pelas "boas energias" dos dois religiosos, Uberaba e o bairro de Pau da Lima, em Salvador, incluídos entre os lugares do Brasil marcados por preocupantes índices de miséria e violência?
Mas, infelizmente, a lógica e a coerência não são o forte dos "espíritas", que só usam tais procedimentos para acobertar suas convicções pessoais. Acham que Chico Xavier, Divaldo Franco e o "movimento espírita" como um todo irão sobreviver ao que eles chamam de "tempestades de reações adversas" contra aquilo que eles dizem ser o "trabalho do bem".
É o Brasil que pessoas retrógradas de todo tipo, dos "espíritas" aos "troleiros", passando por setores corrompidos e reacionários do Executivo, Legislativo, Judiciário e também da grande imprensa (o chamado "quarto poder"), que tenta se valer, mesmo diante da reprovação do mundo.
O grande medo é o Brasil impor uma nova Idade Média, criar um novo Imperialismo de início financiado pelos EUA, e termos a ascensão dos Bolsonaro da vida e vivermos num novo obscurantismo religioso. Tudo porque uma boa parcela de brasileiros prefere a fantasia à liberdade e transforma suas convicções marcadas pela ignorância e pelo egoísmo em "verdades indiscutíveis". Isso é muito grave.
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