sexta-feira, 24 de março de 2017
"Espiritismo" brasileiro e a parábola do bom samaritano
A deturpação da Doutrina Espírita atinge níveis alarmantes. Seus palestrantes passam a defender mais a Teologia do Sofrimento, indiferentes às angústias alheias. Criam todo um malabarismo de belas palavras para defender as desgraças alheias, em muitos casos até dissimulando a apologia do sofrimento com tantas falácias e sofismas.
Os palestrantes "espíritas", que vivem fazendo turismo, vendendo livrinhos, palestrando para os mais ricos sem deles fazerem cobranças, mas, em vez disso, fazendo adulações e lisonjarias, não sabem o que é sofrer, e o quanto até mesmo os casos de superação que existem não podem ser objeto de adoração, porque isso seria brincar com o sofrimento alheio.
A prova que o "espiritismo" aderiu à Teologia do Sofrimento, corrente católica medieval cuja seguidora mais famosa foi Madre Teresa de Calcutá, também adotada pelos "espíritas" como figura de devoção, se dá até mesmo nas ideias trazidas por Francisco Cândido Xavier, muito comparado com a referida "santa".
E isso é claro em Chico Xavier. A apologia ao sofrimento foi feita pelas próprias palavras do "médium". Ele chegou a defender que as pessoas sofressem "sem mostrar sofrimento", o que quer dizer "sofrer, mas fingir que está tudo bem", como se a desgraça pudesse fugir com um sorriso. Muito fácil dizer para a pessoa que leva uma pisada no calo e sai pulando de alegria. Pimenta nos olhos dos outros é refresco.
A situação é muito grave e tornou-se o efeito nefasto da "fase dúbia" do "movimento espírita" no Brasil, que fingiu querer recuperar as bases doutrinárias originais, mas radicalizou-se no igrejismo, tornando-se ainda mais inclinada a Jean-Baptiste Roustaing, o deturpador pioneiro, por mais que o nome de Kardec seja o mais pronunciado, o mais bajulado e o mais elogiado.
Há palestrantes "espíritas" que parecem o personagem cômico Rolando Lero, interpretado pelo saudoso Rogério Cardoso, a começar pelo próprio Divaldo Franco, que finge ser kardeciano exemplar. Há todo um malabarismo de belas palavras, com perfumes de orvalhos e sabor de mel, mas que representam uma séria afronta ao pensamento do pedagogo francês, tamanho o ranço católico-jesuíta-medieval que foi herdado dos tempos do Brasil colonial.
De que adianta exaltar a "surpreendente atualidade" de Kardec ou a "urgência contundente" do espírito Erasto, ou, sobretudo, a "contemporaneidade" dos ensinamentos de Jesus, se todos os seus conselhos são desobedecidos em prol de um igrejismo medieval e uma soberba motivada pelo prestígio religioso.
Muito fácil fingir, até mesmo com uma retórica elaborada, que se cumpre a "rigorosa fidelidade" e o "mais absoluto respeito" aos postulados kardecianos. Cita-se tudo: Erasto, Conselho Universal dos Ensinos dos Espíritos, e até se "denuncia" os "falsos médiuns", descrevendo até as caraterísticas, como um corrupto que denuncia a corrupção dos outros.
Mas o malabarismo de palavras é desmentido pelos atos e pelas atitudes, mas há o costume dos brasileiros deixarem para lá, sob a falácia de que "tudo é amor, tudo é bondade", como se amor e bondade pudessem ser cúmplices de práticas tão irregulares que despertam suspeitas diante de uma observação mais apurada, como nas supostas mediunidades que apresentam detalhes comprometedores em relação à natureza pessoal do morto em questão.
FARISAÍSMO
Os "espíritas" recuaram tanto com seu igrejismo que, se queriam apenas modernizar as tradições jesuíticas do Brasil colônia, sucumbiram a retrocessos piores. O "espiritismo" virou a "lixeira" da Igreja Católica, assimilando valores medievais que os católicos não apreciam mais, e muitos textos demonstram a inclinação mais explícita dos "espíritas" à Teologia do Sofrimento.
Os palestrantes "espíritas" já estão cometendo os mesmos procedimentos dos antigos sacerdotes já severamente criticados por Jesus de Nazaré: a falsa modéstia, o discurso empolado, a pretensa erudição e a própria ilusão de que o Céu lhes está ao alcance. Até o aparato de caridade, que tanto os protege e serve de pretexto para se aceitar qualquer deturpação do Espiritismo, é desmascarado em ações filantrópicas pouco expressivas que beneficiam mais o benfeitor do que o necessitado.
São posturas típicas dos antigos fariseus. Há até mesmo o espetáculo das medalhas, das condecorações, dos tesouros terrenos que, aos olhos fantasiosos dos vaidosos "espíritas", antecipam as premiações celestiais, nas quais até Jesus é simbolicamente forçado a receber os "ilustres oradores e escritores" quando eles regressarem à "pátria espiritual". Que se pare até o Universo para receber os "espíritas" que encerrarem a sua missão encarnatória.
Tudo o que se vê nas práticas "espíritas" foi condenado por Jesus, Kardec e Erasto. O discurso empolado, o culto à personalidade que transformou a atividade de médium numa grande aberração, criando não médiuns, no sentido de intermediário, mas anti-médiuns, como atrações principais de um espetáculo de orgias religiosas. Contrariando o C. U. E. E., o "médium" vira até grife para quem quiser recorrer para obter uma comunicação de alguém já falecido.
E aí chega a questão do sofrimento humano. Os "espíritas" se tornaram insensíveis, tanto quanto os católicos medievais, pouco se importando com a desgraça alheia. O que se vê de apelos como "vamos aceitar o sofrimento" ou então "encare a desgraça com amor", chegando mesmo a justificar o prejuízo do outro com falácias do tipo "o que é um prejuízo de décadas diante dos lucros da vida eterna?".
É um sentimento desumano que se observou até nos auxílios fraternos. Os "espíritas" preferem justificar a desgraça alheia do que combatê-la, e, quando sugerem alguma "solução", ela é sempre restritiva: abandone seus desejos, abra mão de suas necessidades, reveja seus planos de vida, recomece a vida do zero, se contente com as imposições do "Alto" (leia-se atribuição divina às adversidades cotidianas).
A ilusão de que os "espíritas" acreditam manter contato com as "esferas superiores da espiritualidade" lhes faz até fazerem juízos de valor como se até mesmo o mais ordinário funcionário de um "centro espírita" entendesse mais da vontade de um indivíduo do que este próprio. Os tratamentos espirituais fracassam de trazer mais azar do que proteção espiritual e os "espíritas" inventam que tais terapias "deram certo, mas os 'irmãos pouco esclarecidos' é que incomodaram".
A insensibilidade foi tal que houve um caso de uma pediatra "espírita" de Rondonópolis, interior do Mato Grosso, que recusou-se a atender a uma menina de sete anos por ela ter sido vítima de estupro. Em seu juízo de valor, a médica, depois alvo de processo judicial, atribuiu a culpa do crime à vítima, sob a desculpa de "expiar crimes de vidas passadas". Em seu cinismo, a médica chegou a dizer que a menina exercia uma "energia sexual" que permitiu o ato do tio que a estuprou.
E quem imagina que esse juízo de valor é coisa só de "peixe pequeno", ou seja, de "maus espíritas", é bom observar que mesmo entre os "grandes" essa prática sempre existiu. Que perversidade enorme cometeu Chico Xavier em 1966, que apelava para outros "nunca julgarem quem quer que fosse", ao ter usado seu dedo acusados contra as pessoas humildes que estavam num circo em Niterói, que sofreu o famoso incêndio criminoso às vésperas do Natal de 1961!
O "bondoso médium" acusou as pobres vítimas de terem sido gauleses do tempo do Império Romano que tinham prazer em ver hereges e inadimplentes sendo queimados em fogueiras em tristes espetáculos exibidos para plateias sanguinárias. Para piorar, Chico Xavier botou a cruel acusação na conta de Humberto de Campos - espírito usurpado pelo "médium" desde três décadas antes e mal disfarçado pelo codinome "Irmão X" - , através do livro Cartas e Crônicas.
O BOM SAMARITANO
Certamente, o bom samaritano não seria "espírita". Talvez um agnóstico. Se traduzirmos a situação do pobre cidadão que foi assaltado e espancado por ladrões enquanto caminhava de Jerusalém para Jericó, para o moralismo do "espiritismo" brasileiro, veríamos o quanto os "espíritas" a cada dia têm dificuldade de esconder sua insensibilidade.
Diante do cidadão prostrado de dor, chega um palestrante "espírita", que, vendo-o nesta situação, passa de largo e reflete para si o seguinte julgamento: "Este deve ter sido um bandido, em outra vida, a saltear as pessoas nas ruas, que está pagando pelo que mereceu, sofrendo reajustes espirituais".
Depois disso, outro palestrante "espírita", que parece mais cordato, passa e chega a parar para ver a vítima de assalto sofrendo de dor. Ainda assim, só lhe dirige palavras de falsa doçura: "Homem, aceite sua dor, se felicite pelo flagelo que sofre, porque ele é o atalho de bênçãos permanentes. É no azar que as pessoas se tornam as maiores sortudas da eternidade". E, dito isso, vai embora.
O samaritano seria provavelmente alguém que pode ter sua religiosidade, mas não tem apegos institucionais neste sentido. Mas pode também ser um ateu. Em todo caso, é um sujeito que, desapegado das paixões místicas e míticas do deslumbramento religioso, vê o sofrimento humano de maneira realista e, vendo o sujeito prostrado, para e o leva para algum lugar de socorro.
Mesmo não tendo recursos para remediar as feridas, o sujeito faz por onde auxiliar a vítima. Ele o levaria a um pronto-socorro para limpar as feridas e colocá-las as gazes e esparadrapos necessários. Sem fazer juízo de valor nem obrigá-lo a aceitar o sofrimento, o "bom samaritano" moderno o ajudou sem que considerasse a bondade como um subproduto da fé religiosa.
No caso das vítimas do incêndio no Gran Circo Norte-Americano, em Niterói, o empresário José Datrino, depois convertido no Profeta Gentileza, deu um banho de generosidade em Chico Xavier, que muitos acreditam ser a "bondade personificada". Sem apelar para juízos de valor, o ex-empresário sempre assistiu os familiares, acolhendo-os de maneira realmente consoladora.
Portanto, a verdadeira caridade se observa fora do prestígio religioso, no qual a falsa humildade dos ídolos da fé espetacularizada tanto pregam e pouco praticam, sendo mais um marketing dotado de pieguice e sentimentalismo extremos. A solidariedade humana passa longe dos "espíritas" que se preocupam mais em fazer juízos de valor, iludidos com a pretensão de estarem próximos do "Alto".
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