domingo, 8 de março de 2015

Machismo e feminismo no "Coração do Mundo"

MISS BUMBUM: "FEMINISMO DE GLÚTEOS"?

O Brasil tem muitos problemas para que tenha alguma condição de liderar o mundo com sua "lição de fraternidade" e de "ideias progressistas". A perspectiva econômica já ruiu pela crise econômica que vivemos depois do fiasco da Copa do Mundo de 2014, que agravou ainda mais a já problemática situação do nosso país.

Nos valores sociais, então, o que chama a atenção são os valores confusos e conflituantes em torno de machismo e feminismo ocorrentes no Brasil. Um machismo já decadente, mas que tenta transferir sua herança, pasmem, a um tipo de "feminismo popular" do qual as mulheres são consideradas "emancipadas", mas trabalham estereótipos "sensuais" próprios do machismo.

É uma situação louca, surreal, embora seu surrealismo estivesse próximo do surrealismo festivo e patético do Febeapá (Festival de Besteiras que Assola o País) de Stanislaw Ponte Preta (Sérgio Porto, 1923-1968) do que do surrealismo dramático de Franz Kafka e do surrealismo poético de Luís Buñuel.

Por exemplo, há, entre os machistas, e mesmo entre os moralistas em geral, um grande medo de verem morrer dois símbolos do machismo vingativo, homens já idosos que se tornaram famosos depois que assassinaram suas próprias mulheres, e que hoje se encontram no pano de fundo de contraírem doenças gravíssimas e incuráveis, Doca Street e Pimenta Neves.

É algo surreal que ocorre entre os machistas mais radicais, que acham que as mulheres podem encarar tragédias até pela ação de seus companheiros "traídos", mas eles ignoram que muitos desses feminicídios (perto de serem considerados crimes hediondos) ocorrem em função das debilidades desses machistas sanguinários, muitos deles alcoolistas, drogados, tabagistas ou mesmo péssimos motoristas e que podem perder a cabeça até quando rendidos por ladrões.

Doca Street, aliás Raul Fernando do Amaral Street, foi um empresário paulista frequentador do colunismo social que, numa discussão conjugal numa pousada em Búzios, assassinou, no final de 1976, a socialite mineira Ângela Diniz (que chegou a aparecer numa edição de A Cigarra, em 1961, como modelo), com dois tiros.

O crime de Doca, pela sua impunidade, inspirou uma série de assassinatos de mulheres pelos próprios namorados, maridos ou noivos ao longo de pelo menos 15 anos, a ponto de inspirar até uma minissérie da Rede Globo de Televisão, Quem Ama Não Mata.

Doca era famoso também pelo tabagismo intenso que, pouco após o crime que tirou a vida de Ângela, causava preocupação em seus próprios amigos. Ele tinha 42 anos no final de 1976 e já era um pouco envelhecido para sua idade. No passado, usou também cocaína e álcool e, nos últimos anos, apenas fuma "socialmente". Doca ainda tentou doar, nos anos 90, um rim para um sobrinho, que não resistiu ao órgão recebido e faleceu.

Com 81 anos, já surgem rumores de que ele tem poucos anos de vida. Não se sabe se ele já está fazendo quimioterapia, mas a título de comparação, o humorista Chico Anysio, com um histórico tabagista mais modesto, faleceu na mesma faixa de idade. Recentemente, com um histórico tabagista também muito singelo, perdemos Leonard Nimoy, o Spock do seriado Jornada nas Estrelas.

Dizer, porém, que Doca Street já está no final de sua vida soa, para muitos, bastante ofensivo, como dizer que Antônio Marcos Pimenta Neves, de 78 anos, que matou, também com dois tiros, em agosto de 2000, a colega e namorada Sandra Gomide, poderá sofrer falência múltipla de órgãos em consequência dos efeitos de uma overdose de comprimidos.

De repente, tirar a vida de alguém virou atestado para uma respeitabilidade surreal de homicidas impunes. É ofensivo dizer que eles poderão morrer em breve pelos estragos que eles mesmos fizeram ao organismo. Para muitos, seria mais confortável dizer que Doca chegará aos 100 anos com um pulmão em frangalhos e que Pimenta Neves é mais resistente a remédios que o jovem e altivo Heath Ledger.

Mas, paciência, eles já viveram bem mais que suas vítimas, mortas na casa de uns 30 e tantos anos. E se alguém fala na tragédia que envolve esses machistas idosos, isso nada tem de ofensivo, mas uma constatação realista de que não é matando alguém que livrará alguém que cometeu excessos contra sua saúde de sofrer suas consequências naturais.

"Também morre quem atira", diz o sucesso "Hey Joe", na versão de O Rappa, ironicamente versão de um antigo blues homônimo composto por Billy Roberts e que foi endereçado a um homem que matou sua namorada e que foi gravado pelo Jimi Hendrix Experience.

ACORDOS IDEOLÓGICOS

Se os machistas têm medo de ver assassinos de mulheres no obituário de jornais, então o Brasil ainda vive um quadro de surrealismo que faz com que machistas e feministas se repilam em muitos aspectos, mas em outros estabeleçam acordos ideológicos.

Por exemplo, a emancipação feminina, num Brasil onde, historicamente, as ideias iluministas foram assimiladas sem romper com os ideais escravistas que o Iluminismo francês condenava, tem que se condicionar duplamente com as condições impostas direta ou indiretamente pelo machismo.

Se a mulher busca uma emancipação na essência, desenvolvendo o intelecto, se aprimorando culturalmente e sem bancar a "mulher-objeto", é "recomendável" pelo "sistema" vigente no Brasil que ela se case com um homem, de preferência dotado, este, de algum cargo de liderança ou comando, desde um grande empresário a um diretor de TV ou de cinema, passando por profissões liberais (médico da rede particular, economista, advogado etc).

Essa é uma forma de condicionar a emancipação plena e real brasileira aos ditames do machismo, quando a mulher moderna não pode exercer seus papéis sociais modernos, estando ela vinculada às velhas estruturas patriarcais familiares simbolizadas pelo marido "poderoso".

Mas se a mulher se submete a estereótipos machistas, como a mocinha submissa que vive para seu lar ou a moça atrevida que só quer saber de se "sensualizar" até mesmo "na marra" (quando usa roupas curtas ou apelativas até em faculdades ou mesmo em funerais), então o "sistema" libera a mulher para viver "solteira" e, em tese, sem estar "sob a sombra de um homem". Quando muito, é permitido a elas namorar homens mais novos e de perfil profissional mais modesto.

Só que isso na verdade é mito. Observando as "musas populares" que predominam nos sítios de celebridades e sub-celebridades na Internet, essas mulheres, que parte da intelectualidade atribui como símbolos de um "feminismo popular" voltado a pretextos como "liberdade do desejo" e "direito à sensualidade", são empresariadas por homens, tão machistas quanto aqueles que as "musas" estão liberdadas de se casarem ou até terem uma "ficada".

O ativismo feminista brasileiro hoje passa por uma fase confusa, Até os anos 2000, o feminismo parecia consistente e realista nos seus propósitos, mas nos últimos anos o movimento passou por uma "espetacularização" que lançou propostas confusas e até contraditórias, muitas nem tão opostas ao machismo como se imagina.

Por exemplo, uma de suas "ativistas", a funqueira Valesca Popozuda, é associada a um modelo de "sensualidade feminina" imposto pelo machismo. O que não se entende é como esse combate ao machismo se dará através de um paradigma machista de sensualidade.

Da mesma maneira, não dá para entender como é que mulheres falam em "liberdade do desejo" como desculpa para certas mulheres ficarem exibindo seus corpos o tempo inteiro, sem medir a situação certa ou errada, mas desenvolvendo um erotismo que estimula no seu público masculino um potencial de impulsos sexuais que não raro dá margem a casos de estupros.

Ou seja, como combater o estupro se a "sensualidade" obsessiva e exagerada é a "bandeira de luta" de parte de supostas feministas? E a atribuição da prostituição feminina como uma "profissão permanente", que feminismo isso representa se no fundo sua "profissionalização" atende mais ao recreio sexual de intelectuais e até de investidores estrangeiros?

Daí o feminismo confuso brasileiro, que permite até que uma outra funqueira, a Mulher Melão (outro protótipo machista de mulher "sensual") se infiltrar numa manifestação pró-topless e desviar a atenção da mídia.

O "ESPIRITISMO" DE CHICO XAVIER E O MACHISMO

Na Doutrina Espírita original, confrontada com o "espiritismo" feito no Brasil, uma amostra do que escreveu o jesuíta Emmanuel sobre o feminismo, que derruba de vez a ilusão de que ele e seu pupilo Francisco Cândido Xavier estão associados a ideais "progressistas e avançados", como alardeiam seus chorosos seguidores.

Allan Kardec defendia o feminismo, ele que havia sido marido e parceiro da pedagoga e artista plástica Amèlie Gabrielle Boudet, nove anos mais velha que ele. Ela havia apoiado o marido em momentos difíceis e na apreciação de pesadas polêmicas que Kardec enfrentava através da repercussão de suas ideias.

Eis o que ele escreveu na Revista Espírita de janeiro de 1866, ao comentar o papel das mulheres na sociedade contemporânea, numa postura considerada avançada naqueles tempos em que o machismo imperava nas estruturas familiares:

"(...) com a Doutrina Espírita, a igualdade da mulher não é mais uma simples teoria especulativa; não é mais uma concessão da força à fraqueza, é um direito fundado nas mesmas Leis da Natureza. Dando a conhecer estas leis, o Espiritismo abre a era de emancipação legal da mulher, como abre a da igualdade e da fraternidade."

Já Emmanuel, numa época em que os primeiros movimentos feministas aconteciam no Brasil - havia sobretudo a poetisa e jornalista Patrícia Galvão, que tardiamente se envolveu com integrantes do movimento modernista (era criança na época da Semana de Arte Moderna de São Paulo, em 1922) - , escreveu o seguinte no livro O Consolador, de 1941, por intermédio de Chico Xavier:

"A ideologia feminista dos tempos modernos, porém, com as diversas bandeiras políticas e sociais, pode ser um veneno para a mulher desavisada dos seus grandes deveres espirituais na face da Terra. Se existe um feminismo legítimo, esse deve ser o da reeducação da mulher para o lar, nunca para uma ação contraproducente fora dele. É que os problemas femininos não poderão ser solucionados pelos códigos do homem, mas somente à luz generosa e divina do Evangelho". 

Declaração mais machista do que isso não há. Como Emmanuel, o ultraconservador padre jesuíta Manuel da Nóbrega, poderia definir como "feminismo legítimo" o que se submete aos valores machistas? É verdade que ele falava das "escravas do lar", estereótipo hoje restrito à forma com que a mídia impõe às jovens suburbanas para serem resignadas mães solteiras fãs do romantismo piegas da música brega e do religiosismo exagerado da devoção extrema e chorosa.

Diferente de 1941, o "feminismo legítimo" do Brasil de hoje segue um outro tipo de submissão ao machismo, a um machismo decadente mas com medo de ver seus velhos totens morrerem. O Brasil que prefere o bolor à flor, mostra mais uma incapacidade de liderar o mundo, porque sempre tem a mania de trabalhar os valores novos compactuando com valores velhos e perecidos.

Daí haver o "feminismo" de hoje que só consegue se manifestar dentro dos limites ideológicos do machismo, mesmo com toda a repulsa que suas manifestantes dizem se expressar contra os machistas.

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