quinta-feira, 22 de dezembro de 2016
Caso da pediatra revela o problema gravíssimo do "espiritismo" brasileiro
O caso da pediatra de Rondonópolis, que recusou-se a atender uma menina vítima de estupro para evitar lidar com "problemas espirituais", atribuindo a culpa à própria menina por causa de "reajustes espirituais de vidas passadas", revela o ponto a que se chegou a deturpação da Doutrina Espírita no Brasil.
Vários "espíritas" começaram a reagir, diante da culpabilidade da médica, alegando que ela é que exagerou no entendimento da "moral espírita" e que o "movimento espírita" não pode ser responsabilizado pelos erros da profissional, que foi condenada a pagar R$ 10 mil à mãe e à menina por danos morais.
A desculpa que os "espíritas" trazem é que "não se pode julgar as pessoas" e que se deve "dar atendimento a um irmão, principalmente uma criança". Entrando em contradição, os "espíritas" que se fundamentaram em Jean-Baptiste Roustaing mas juram serem "kardecistas autênticos" - vale lembrar que a denominação "kardecista" ganhou sentido pejorativo quando virou o rótulo da tendência dúbia do "movimento espírita" - , fazem juízo severo mas recuam quando lhes convém.
A pediatra não fez julgamento de valor do nada. Ela aprendeu uma base ideológica para isso. E isso se atribui tão somente aos erros de conduta nos "centros espíritas"? Não. Essas casas erram, sim, vivem disputas de ego e tudo, mas devemos sempre lembrar que o "movimento espírita", sempre contraditório, mistificador, mitificador, moralista e invigilante, tem também sua responsabilidade no conjunto da obra.
A tendência dúbia que veio desde meados da década de 1970, após a "era Wantuil de Freitas", no qual se prometia a "recuperação das bases doutrinárias" mas continuou-se praticando o igrejismo, tornando-se terreno fértil para aberrações como Divaldo Pereira Franco - um deturpador que finge ser "autêntico defensor das bases kardecianas" - , só abriu caminho para os mais piores erros e as confusões mais intensas.
O que poderia parecer um suposto equilíbrio virou um rol de contradições, de descontrole, de choques de abordagens, de visões, de práticas. Desde a instituição dos "passes" sem qualquer estudo sério sobre Magnetismo Animal - até agora, nenhum livro de Franz Anton Mesmer recebeu tradução no Brasil - até a crença de bobagens como "cidades espirituais" e "crianças-índigo", o "espiritismo" brasileiro queria ser, ao mesmo tempo, kardeciano e roustanguista.
Por isso, a responsabilidade do caso da pediatra de Rondonópolis é dupla. É individual, por causa da decisão pessoal dela. Mas é também institucional, porque o "espiritismo" brasileiro ofereceu as condições ideológicas e práticas para que a médica tomasse a atitude que tomou. O juízo de valor da pediatra que acusou a menina de ser culpada pelo estupro que sofreu segue uma visão moralista que se identificou até em Francisco Cândido Xavier.
Isso mesmo! Chico Xavier era um moralista, sua formação religiosa era o Catolicismo que vigorou no Brasil até o século XIX, de tendência jesuíta e origem portuguesa e medieval e que se tornou, mediante contextos históricos, a base do "espiritismo" brasileiro, que nunca aproveitou o contexto iluminista que só foi acolhido pelos espíritas "científicos", deixados de lado no "movimento espírita".
O mau fruto não vem da boa árvore. E se Chico Xavier era capaz de acusar pessoas aqui e ali - como as humildes vítimas da tragédia circense, acusadas de terem sido "romanos sanguinários" - , com um moralismo capaz de defender a ditadura militar, então por que inocentar o "movimento espírita" pela atitude tomada pela pediatra pela desculpa de ser "apenas um erro de alguns espíritas"?
Se as próprias "casas espíritas" erram, isso já vem da própria natureza do "movimento espírita" e seu arrivismo que veio desde os primórdios da FEB, com sua cúpula de burocratas brincando de serem "intelectuais parnasianos" fazendo da federação um pastiche da Academia Brasileira de Letras.
O pretensiosismo, a usurpação da memória dos mortos, o pseudo-cientificismo e as pregações igrejeiras e moralistas fizeram o "espiritismo" estar errado na cúpula e na raiz. Pelas suas contradições e por seus equívocos graves, o "espiritismo" ofereceu condições para a pediatra cometer o erro que cometeu. Não inocentemos a má árvore pelo mau fruto.
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