domingo, 17 de abril de 2016
O "espírita" e a volta no além
Um palestrante "espírita", já muito idoso, encerra sua vida na Terra, morrendo de velhice, tranquilo e sereno diante de alguns entes queridos. Estava ansioso em ir para a "pátria espiritual" certo que uma grande cerimônia o receberia no retorno ao além-túmulo.
Imaginava ele, muito adorado na Terra, que seria recebido por alguns amigos e familiares, seria condecorado por representantes de Deus e Jesus Cristo e um coro de anjos distribuído em dois lados, cantando como crianças em vozes meigas e infantis e interpretando canções religiosas ou outras com letras sobre fraternidade e amor.
Na chegada ao mundo espiritual, porém, o palestrante "espírita" sentiu uma estranheza. "Acho que não é aqui, deve ser mais adiante, vou andar, agora sou só espírito, não vai me cansar jamais", pensa o orador consigo mesmo.
Ele anda e observa apenas o cenário de um "chão de nuvens" sob um céu azul, igual ao que ele via quando viajava de avião e olhava pela janela. Paciente, o orador andou, ainda inseguro por se ver na situação atual, sem o peso do corpo físico.
Nada. Nada. Nada. Tudo um vácuo, um "assoalho" de algodão sob um céu azul bonito, mas que, de tão monótono, já não causava mais interesse nem fascínio. O orador "espírita" estava achando a caminhada longa demais, até que veio, ao longe, um homem de vestes brancas e uma bolsa que se aproximava.
- Olá, irmão. Vejo que regressou há pouco para este lado. - disse o rapaz, que se identificou como Secretário da Consciência.
- Olá, meu querido irmão. Eu regressei, sim, mas eu quero saber onde será minha cerimônia de recepção. Meus parentes, meu amigo que foi antes de mim, meus benfeitores, creio que todo mundo se reúna, com as maiores autoridades dos planos superiores e corais de crianças bonitas cantando hinos belíssimos de amor, para fazer uma festa para me receber.
O secretário deu uma discreta risada, mas manteve a compostura.
- Meu amigo, como você pode supor que essa festa esteja sendo feita para recebê-lo?
- Entenda, prezado irmão. Eu fui um líder espírita, um grandioso orador, um homem que só dedicou à caridade. Nunca cobrei jamais por um trabalho, atendia as pessoas gratuitamente, passei a vida servindo à sociedade, viajando para divulgar a boa palavra do Evangelho de Jesus.
- Hum. Deixe eu ver, eu tenho um relatório dentro de meu banco de dados. Trago um computador comigo. Vejamos. Seu nome?
O orador "espírita" disse seu nome.
- Hum. - disse o secretário, iniciando a consulta do banco de dados, usando o nome do orador. Encontrou o nome correspondente e seu longo currículo de atividades.
O secretário ficou sério e atento. Mas depois franziu as sobrancelhas, com semblante ao mesmo tempo silencioso e grave.
- Prezado (nome do orador). Seu currículo não parece ser grande coisa, não.
- Como assim? - protestou o "espírita". - Eu só servi ao próximo. Transmiti as lições de Jesus! Tenho cometido meus erros, sim, mas não creio que isso me impeça de estar no banquete dos espíritos puros!
- É, mas você cometeu erros graves, sim. Compreendeu muito mal a Doutrina Espírita de Allan Kardec. - disse o secretário.
- Mas como?! Eu lia os livros de Kardec, eu sempre trazia alguns ensinamentos do mestre lionês!
- Não é o que se observa. As lições que você transmitiu se aproximam mais a um catolicismo antiquado. E ainda assim mascarado por uma oratória complicada, prolixa e de difícil compreensão.
- Mas eu sempre expus com clareza as ideias.
- Não é o que se observa. E, para piorar, suas viagens só serviram para espalhar tais mistificações, criando problemas para a compreensão da Doutrina Espírita.
- Mas pelo menos eu fiz bondade, ajudei o próximo, se eu expus mal as minhas ideias, peço que me desculpem.
- Nem tanto. Você mal conseguia ajudar uma comunidade, sua instituição de caridade ficava num bairro muito perigoso de um subúrbio e você nem agiu para diminuir essa situação.
- As pessoas é que não queriam me ouvir falando do Cristo.
- Não, as pessoas eram cristãs de várias correntes. Até a sua.
- Pelo menos o meu projeto de caridade, se pecou pela quantidade, primou pela qualidade.
- Também não. Seu projeto de caridade era só paliativo, eliminando a pobreza absoluta sem no entanto realizar justiça social plena. Era apenas uma concessão de sopinhas, um alojamento modesto e um projeto educacional que não ensinava a pessoa a questionar o meio em que vive, mas tão somente a trabalhar, ler, escrever, fazer as contas e, o que é pior, ser religiosamente manipulado.
- Mas minha educação nunca obrigou pessoa alguma a ter alguma religião.
- Não é o que se vê. A pregação religiosa era sutil, sob o pretexto da fraternidade, mas sempre havia, com seus dogmas e ídolos. E, além disso, você se esbaldava ao lado dos ricos e poderosos.
O orador "espírita", então, reagiu com a irritação que seria inimaginável e inconcebível para seus seguidores.
- Eu estive ao lado deles para promover a caridade e aceitar de bom grado o que me concediam de prêmios e homenagens. Sempre estive no lado dos humildes e apenas queria promover a fraternidade entre ricos e pobres.
- Não é o que parece. Você nunca cobrou providências dos ricos e poderosos, se limitando apenas a elogiá-los. Você também nunca ouviu os pobres, você adorava vê-los calados e sorridentes, tudo era um teatrinho de suposta paz e harmonia forçada.
- Mas pelo menos, com tantas imperfeições, haverá festa para me receber. Para o bem e para o mal, eu sempre foi adorado e muito querido pelas pessoas, era acolhido por multidões toda vez que passava por qualquer lugar que fosse.
- Festa? Para lhe receber? Corais de anjos cantando hinos religiosos? Autoridades de planos superiores lhe condecorando pelos seus atos?
O secretário desabou em risada. O orador, irritado, perguntou:
- Como é, irmão? Terá festa? Ou será que viveremos nesse deserto de algodão sob os nossos pés?
- Meu irmão. Não se recebem almas do além com festas. Mesmo os mais evoluídos. O que aqui tem é a revisão da Consciência. E, em se tratando de um mistificador como você, feito "espírito puro" pelas paixões do deslumbramento religioso, aí é que não haverá festa alguma.
O secretário, dizendo isto, guardou o computador em sua bolsa e completou:
- A propósito, pode se dirigir para a rota à direita, que lhe enviará para os planos inferiores da erraticidade, até que você decida reencarnar para aprender.
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