Só falta a Rede Globo de Televisão definir como será o nosso café-da-manhã. A rede televisiva, que era só uma proposta burocrática há 55 anos atrás, tem 40 anos de supremacia midiática e é famosa por manipular o inconsciente coletivo de forma tão habilidosa que possui raio de influência até entre parte daqueles que se dizem detratores da emissora e sua famosa empresa, as Organizações Globo.
Três grandes mitos foram exemplarmente reinventados pela Rede Globo. Embora não originalmente lançados pela emissora televisiva, ela os popularizou de tal forma que parte dos detratores das Organizações Globo passaram a admirar esses mitos como se eles tivessem sido "independentes" ou representarem alguma causa "libertária".
O "CAÇADOR DE MARAJÁS"
O caso de Fernando Collor de Mello, ex-presidente da República e hoje senador, é ilustrativo. Seu mito de "caçador de marajás" não foi criado pela Rede Globo, mas pela revista Veja e pelo jornal Folha de São Paulo, já nos primeiros trabalhos do Projeto Folha (ideologia conservadora e textos curtos), em 1988.
A Globo encampou a causa "collorida" em 1989, um ano após os periódicos paulistas. E o fez visando neutralizar o então favorito para a campanha presidencial, o politico gaúcho Leonel Brizola, que havia mudado, antes do golpe militar de 1964, seu domicílio eleitoral para a Guanabara e, por isso, passou a ser um político fluminense que havia governado o Estado do Rio de Janeiro (que absorveu a Guanabara em 1975) e se candidatou à Presidência da República.
Com o segundo turno favorecendo o operário Luís Inácio Lula da Silva, outra figura de esquerda, a Rede Globo manipulou sua cobertura jornalística, se valendo pela grande audiência, para favorecer Collor e torná-lo vitorioso nas urnas. E aí deu na história que sabemos.
O "HOMEM MAIS BONDOSO DO BRASIL"
Só mesmo depois que Malcolm Muggeridge, da BBC, lançou o documentário Algo Bonito para Deus (Something Beautiful for God), em 1969, é que as Organizações Globo perceberam tardiamente o potencial do discurso feito para o mito da Madre Teresa de Calcutá para reinventar Chico Xavier, "abatido" pela revelação de sua personalidade ultraconservadora na entrevista do Pinga-Fogo, na TV Tupi, em 1971, e no apoio dado à farsante Otília Diogo, anos antes.
Os programas jornalísticos da Rede Globo passaram então a usar os mesmos recursos discursivos de Muggeridge para relançar Chico Xavier sob o rótulo de "o homem mais bondoso do Brasil", aproveitando as mesmas edições de imagem, o mesmo discurso filantrópico, o mesmo apelo para frases de efeito e tudo o mais.
Evidentemente, Xavier não foi um mito inventado pela Globo. O "médium" atuava bem antes do surgimento da emissora televisiva e o jornal O Globo chegou a ser hostil com ele, devido à influência que correntes da igreja católica, como os de Gustavo Corção, Alceu Amoroso Lima e o padre Oscar Quevedo, exerciam nas Organizações Globo. E Chico vivia uma relação de "amor e ódio" com os Diários Associados, geralmente "abatido" pela revista O Cruzeiro e "acariciado" pela TV Tupi.
A Globo, no entanto, buscando um mito "filantrópico" para fazer anestesiar a sociedade naqueles tempos de crise da ditadura militar, encontrou na figura de Chico Xavier a pessoa certa para tal tarefa, uma figura ao mesmo tempo bastante conservadora, um católico fervoroso e até ortodoxo em ideias, mas não sectário a ponto de usar batinas cobertas de ouro, e viu no exemplo do documentário da BBC como fonte para relançar o anti-médium mineiro como o mito cultuado até hoje.
Até a aparição ao lado de crianças e idosos carentes Chico Xavier "copiou" da Madre Teresa. É só comparar as imagens publicadas na Internet. E, além disso, as ideias de apologia ao sofrimento - em que o sofredor têm que aceitar seus infortúnios visando recompensas após a morte - de Chico e Teresa são rigorosamente as mesmas.
Até entre os defensores de Chico Xavier e Madre Teresa de Calcutá a semelhança é estimulada. Eventualmente os dois são exaltados como "exemplos de humildade e amor ao próximo". Mas, do lado dos contestadores, os obstáculos que a burocracia acadêmica e o conservadorismo do mercado e da mídia fazem impede que venha um equivalente ao Christopher Hitchens para definir e explicar Chico Xavier como "um anjo do umbral".
A "CULTURA DAS PERIFERIAS"
Já outro mito que também foi trabalhado pela Rede Globo de Televisão foi o "funk". Aparentemente evocando uma concepção ideológica de população pobre diferente daquela que era cercada por Chico Xavier e era definida por Fernando Collor como "os descamisados", o ritmo também era um produto a ser trabalhado pela emissora através de seu processo de manipulação social.
Surgido de um desvirtuamento do funk eletrônico autêntico, que havia sido influenciado pelas experiências que Afrika Bambataa fazia, juntando elementos sonoros do grupo alemão Kraftwerk com James Brown e o hip hop dos anos 80, o "funk carioca" tornou-se um mercado marcado pela ganância mercantil e por associações sutis com a criminalidade, a exemplo do mafioso miami bass, sua fonte de origem, baseada na Florida e em Nova York, nos EUA.
O "funk carioca" havia rompido com qualquer intenção artística do funk original, que era marcado por orquestras ou bandas numerosas, como Earth Wind & Fire, Chic, KC & The Sunshine Band ou mesmo os JB's que acompanharam James Brown, e que no Brasil encontraram similar na orquestra Vitória Régia comandada por Tim Maia.
Em compensação, o "funk" dos anos 1990 em diante passou a se fundamentar pela figura de um vocalista, o MC, que era apoiado por um DJ e, em certos casos, por dançarinos ou dançarinas. O discurso misturava letras com duplo sentido e pastiches de letras de protesto, como o "Rap da Felicidade", que ainda fala em "orgulho da pobreza", o que traz uma comparação.
Afinal, não é o "orgulho de ser pobre" dos funqueiros uma forma mais festiva de "apologia do sofrimento" de Chico Xavier? Muito do ufanismo suburbano do "funk" é, na verdade, baseado em conceitos conservadores, e a hoje conhecida retórica "libertária" do gênero só tentou esconder esses aspectos sombrios.
Como Fernando Collor e Chico Xavier, o "funk" não foi trabalhado ideologicamente como causa pretensamente libertária pelas Organizações Globo. A ideia de transformar o estilo em "movimento sócio-cultural", usando um engodo ideológico que falava em "cultura das periferias" e misturava comparações que variavam da Revolta de Canudos à Semana de Arte Moderna, surgiu basicamente das mentes de um homem: o culto mas conservador Otávio Frias Filho, da Folha de São Paulo.
Jornalista com contatos influentes nos meios universitários e na grande mídia, Otávio realizou um tráfico de influência que distribuiu ideólogos até mesmo nos meios esquerdistas, recomendando se "colarem" em algum ativista que lhes servisse de pistolão para se infiltrar nesse campo ideológico.
Assim, um seleto número de ideólogos, como Hermano Vianna, abertamente vinculado a intelectuais do PSDB e ao lobby da Rede Globo, e Pedro Alexandre Sanches, designado a contaminar a imprensa de esquerda com seus preconceitos trazidos com o Projeto Folha, foram defender o "funk" dentro de um processo de manipulação ideológica comparado ao que o IPES fazia durante o governo de João Goulart.
Tentando camuflar o caráter duvidoso do "funk" - que era baseado na hierarquização de DJs sobre MCs, na fetichização dos ídolos para compensar o baixo talento, pela limitação sonora do ritmo e pela difusão de valores retrógrados à população, que faziam apologia da ignorância e até do machismo - , os intelectuais criaram um poderoso lobby que se baseava no discurso coitadista de que o "funk" era rejeitado por "preconceito".
Só que o preconceito aparecia no lado favorável ao "funk", com o mal disfarçado paternalismo de uma boa parcela de intelectuais, acadêmicos, jornalistas e celebridades que defendiam o gênero, com uma confusa mas persuasiva concepção ideológica de pretensa rebelião das periferias, áreas pobres concebidas a partir de abordagens trazidas por Fernando Henrique Cardoso (sim, o FHC!).
A Folha de São Paulo deu um tempero "libertário" e "provocativo" ao "funk", e mandou Pedro Sanches tentar convencer as esquerdas a endossar o ritmo, apesar do seu caráter abertamente mercantilista e uma lógica de mercado e profissionalismo comparável ao da rede McDonald's em seus piores momentos.
Mas as Organizações Globo é que trouxeram a popularização definitiva, através de uma construção da imagem das periferias que as fazia serem vistas como Disneylândias suburbanas, transformando em espetáculo o que, para a reacionária Folha de São Paulo, era um pretenso movimento de vanguarda cultural.
O papel da Globo na pregação ideológica do "funk" é que foi ela que praticamente criou a APAFUNK (Associação de Profissionais e Amigos do Funk), inicialmente presidida pelo funqueiro MC Leonardo, que, integrante da dupla MC Júnior & MC Leonardo, haviam gravado "Rap das Armas" nos anos 90.
A música foi incluída no filme Tropa de Elite, dirigido por José Padilha (integrante do conservador Instituto Millenium, que tem como um dos fundadores o economista Rodrigo Constantino), e praticamente inaugurou o casamento feliz entre o "funk" e a Rede Globo, dentro do processo de manipular e deturpar a cultura das classes populares mediante interesses de comércio e dominação.
Tanto para a Folha quanto para a Globo, a ideia era criar um simulacro de rebelião popular para que as rebeliões populares de verdade não ocorressem. Houve uma grave omissão de intelectuais de esquerda ao aceitarem o "funk", sem saber que as elites ficam mais tranquilas e mais ricas e poderosas quando os pobres preferem "rebolar até o chão" do que lutar por melhorias de vida.
Só que é uma esquerda "Hildegard Angel", só para citar a socialite e jornalista que tentou ser progressista, mas em seus surtos reacionários chegou a pedir para que se cobrem ingressos para as praias da Zona Sul. É uma elite que tenta fazer tudo para parecer "generosa" e até mesmo "mais povo que o próprio povo", mas se irrita quando pobres trocam o "funk" pela luta por reforma agrária.
Essa elite até tenta dizer que o "funk" não tem relações com a máquina ideológica da Globo, mesmo quando as Organizações Globo tentaram empurrar o "funk" em todos os veículos e produtos ao mesmo tempo, do Caldeirão do Huck à revista Quem Acontece, do Casseta & Planeta ao canal Futura.
Chegaram a apelar para a improcedente tese de que o "funk" sofria "discriminação" da grande mídia, o que a ninguém convenceu. Quando o auge do "funk" já gerou o derivado paulistano, o "funk ostentação", seu astro MC Guimê virou capa e recebeu elogios de uma revista Veja que humilhava movimentos sociais e, se pudesse, chamaria Jesus de "corrupto" por causa de sua "barba de petista".
OUTROS CASOS
As Organizações Globo contam com consultores de Psicologia e de Publicidade, que permitem analisar como mitos e dogmas podem ser criados e como eles podem refletir fora dos limites ideológicos da corporação da família Marinho.
Daí ser ilustrativo que o chamado "vocabulário do poder", problema analisado pelo estudioso das manipulações da mídia, o jornalista inglês Robert Fisk, que no Primeiro Mundo focaliza mais o âmbito dos jargões políticos, no Brasil é adotado de maneira ainda mais sutil, através de contextos culturais.
Exemplo disso é a gíria "balada", divulgada pela rádio Jovem Pan FM (conhecida hoje pelos jornalistas reacionários) e pelo então empresário da noite Luciano Huck, mais tarde destacado apresentador da Rede Globo.
Juntas, Jovem Pan e Rede Globo, no processo de empobrecimento do vocabulário juvenil, empurraram a gíria para fora dos limites clubber, testando o poder de manipulação que tinham no público juvenil mais diversificado, ao impor a gíria "balada" para tentar condenar ao desuso expressões mais diversificadas como "festa", "noitada" e "jantar entre amigos".
Ex-locutor esportivo, Fausto Silva usou uma gíria específica, "galera" - antiga palavra relacionada ao formato de navios e à tripulação que nele fazia parte, adotada no futebol porque os estádios lembravam o formato das embarcações - , que se tornou totalitária tentando condenar ao desuso expressões diversas como "família", "turma", "equipe" ou qualquer outro grupo social.
O Jornal Nacional difundiu a expressão "cliente" na tentativa de subverter as relações econômicas na sociedade. Antes relativa a prestação de serviços, o termo "cliente" é aberrantemente usado no comércio, em que até quem compra um pastel de rua é agora "cliente", e não "freguês", termo condenado ao desuso por causa do sentido pejorativo trabalhado pela própria gíria esportiva.
Tudo isso também encontra penetração fora dos limites ideológicos das Organizações Globo, o que indica que tais processos de manipulação não são independentes nem socialmente espontâneos. Pelo contrário, mitos como Chico Xavier e o "funk", fora um Collor "paquerado" pelas esquerdas, ou a gíria "balada", tornam-se construções ideológicas que aumentam ainda mais o poder da Globo, até mesmo em parte dos que se dizem seus detratores.
E isso traz uma terrível lição. Os piores manipulados são aqueles que seguem as lições de seu dominador. De que adianta eles falarem mal das Organizações Globo e, em particular, da Rede Globo, se eles seguem suas lições e compartilham de seus mitos, dogmas e até girias?
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