segunda-feira, 21 de agosto de 2017
O topo da pirâmide social em chamas
O topo da pirâmide social está em chamas porque as pessoas que detém vários tipos de privilégios sociais, do porte de arma ao prestígio religioso, passando pelos privilégios da fama, do dinheiro, dos diplomas, da tecnocracia, da visibilidade, do poder político etc passam por decadência severa, pois tais privilégios foram alcançados de forma tendenciosa e revelam agora suas ruínas.
Todos tentam se salvar. A partir do governo Michel Temer, que, isolado do povo brasileiro, tenta apenas se manter no prazo de seu mandato, mesmo com graves denúncias de corrupção contra si, o topo da pirâmide segue apagando seu incêndio com querosene, e, com sorte, sob o consentimento ou a indiferença popular.
Desde 2016 se viveu um momento negativamente único. Segmentos sociais se mobilizaram para retomar a supremacia antes plena durante a ditadura militar, e reagiram de forma violenta às mais diversas transformações sociais. A marcha-a-ré forçada da retomada do ultraconservadorismo, não apenas para manter os privilégios que restaram mas para recuperar os antigos, tornou-se a tônica dos últimos tempos.
A situação é tão surreal que existe até o medo de se ver homicidas ricos morrerem. No Brasil, há pelo menos três idosos - dois feminicidas e um fazendeiro mandante - , responsáveis por homicídios de grande repercussão em todo o país, que apresentam indícios de doenças graves que sugerem que eles poderão falecer a qualquer momento.
Todavia, a sociedade conservadora reage a tais tragédias de maneira insólita, se revoltando apenas por serem informados das doenças desses homicidas. Informar sobre a vulnerabilidade trágica de homicidas ricos não tão idosos assim, então, enfurece a sociedade moralista, sem razão lógica aparente.
E a imprensa nem se arrisca a noticiar tais tragédias, se elas realmente tiverem que acontecer. Mesmo quando, em tempos de convulsões sociais insólitas, a morte de um petista é mais festejada que a de um homicida rico impune (ainda que por doenças como infarto, potencial entre pessoas do tipo), foi-se o tempo em que a imprensa noticiava sem qualquer problema os falecimentos de um Michel Frank, Leopoldo Heitor ou Otto Willy Jordan. Se fosse hoje, eles morreriam sob o silêncio dos jornais.
Se há um medo paranoico desses, que faz com que a mídia prefira transformar os obituários num quase paraíso, povoados de grandes artistas, ativistas sociais e gente digna de um prêmio Nobel, isso ilustra a paranoia que o alto da pirâmide social vive, com o medo da perda dos privilegiados, ainda que sejam aqueles que, sob juízos de valor moralistas ("direito à propriedade" e "honra masculina"), decidam tirar a vida de outrem, produzindo a tragédia alheia e tentando fugir da própria tragédia.
Há um clima de "ninguém sai", como no famoso conto de Luiz Fernando Veríssimo sob um jogo de baralho, que tenta preservar quase todos os personagens do "topo da pirâmide". O esforço de fazer com que o ano de 1974 nunca terminasse e os protagonistas dos mais diversos retrocessos sociais, feitos para proteger seus privilégios de todo tipo, torna-se desmedido e desesperado, a ponto de deixar o Brasil em situações tipicamente kafkianas.
As reformas trabalhista e previdenciária são dois exemplos. Dois processos de reverter as conquistas trabalhistas, favorecendo mais as finanças dos patrões e deixando os empregados em situações degradantes como eram antes de 1930. Elas são um meio de aliviar as obrigações financeiras do patronato com seus empregados, liberando-os até para atrasar salários, extinguir encargos trabalhistas e vincular as ajudas de custos aos salários propriamente ditos.
No âmbito da mobilidade urbana, existe até um apego neurótico aos ônibus padronizados, que agora começam a ser pejorativamente apelidados de "ônibus iguaizinhos", quando diferentes empresas de ônibus têm uma mesma cor e, em certos casos, uma empresa de ônibus chega a ter dois ou mais pinturas se atuar em diversas áreas ou com diversos tipos de veículos.
O horror de ver a pintura padronizada ser cancelada, um dia, em Curitiba, São Paulo e Belo Horizonte, ou em outras cidades que adotam esta medida - que complica a vida dos passageiros, que, com seus inúmeros compromissos pessoais, ainda têm que parar para ver a diferença de uma empresa e de outra para não embarcar no ônibus errado - , não é atenuado quando se observa que é justamente esse "baile de máscaras" sobre rodas que favorece a corrupção político-empresarial.
Isso ficou comprovado quando se denunciou a corrupção das empresas de ônibus do Rio de Janeiro, através da Operação Ponto Final, derivada da Operação Lava Jato, que chegou a prender, por alguns dias, empresários da "máfia dos transportes" carioca. Não por acaso, cidades onde adotam pintura padronizada, como Rio de Janeiro, São Paulo, Brasília, Curitiba e Florianópolis revelam piores escândalos no setor de transportes.
Isso se dá por uma razão simples. O fato de esconder diferentes empresas de ônibus dificulta a identificação das mesmas, porque elas apresentam o mesmo visual, o mesmo design. O passageiro comum não consegue ver qual a empresa que presta mau serviço.
É claro que se a empresa mostrar sua identidade visual o serviço não melhora em si e a corrupção não desaparece, mas o passageiro têm mais condições de poder denunciar a empresa infratora. Já imaginou se as linhas intermunicipais fluminenses já tivessem pintura padronizada, a exemplo das paulistas? Haveria muito mais dificuldade de combater empresas de atuação desastrada como a Transmil, da Baixada Fluminense, devido à mesma pintura de outras de melhor serviço.
Mas o status quo que combina tecnocracia, poder político e poder econômico bate o pé e tenta manter os "ônibus iguaizinhos" a todo custo. Tanto que, nos últimos anos, cidades como São Luís, Fortaleza, Brasília, Juiz de Fora, Porto Alegre e Belo Horizonte tentam mudar o design da pintura padronizada, apenas "mudando a máscara" e "trocando o seis pelo meia-dúzia". "Mudar para continuar o mesmo", mantendo um sistema de ônibus que confunde os passageiros no seu ritual de ir e vir.
As pessoas não se indignam porque ainda confiam na "superioridade" dos diplomas, do poder político, do dinheiro, da fama, do prestígio social, etc etc. E isso, nos diversos âmbitos sociais, é que faz as pessoas se consentirem até das gafes, dos equívocos e até dos crimes cometidos pelo pessoal do "alto da pirâmide".
Mesmo nos crimes de homicídio, as pessoas parecem se lembrar do bordão dito por Jesus de Nazaré, "quem estiver sem pecado que atire a primeira pedra", se esquecendo que Jesus disse uma ironia, para intimidar as pessoas de se lançarem contra a vida alheia.
Acham que homicidas que agem movidos por bandeiras "morais" como "direito à propriedade" e "defesa da honra masculina" são semi-deuses, por isso não podem ser considerados vulneráveis nem ter sua tragédia divulgada na sociedade. Um homem rico que tira a vida da própria mulher é tratado como se fosse um deus que quebrou um copo de vidro. Ninguém imagina que um homicida desses sofre pressões sociais diversas e intensas, que o tornam altamente vulnerável à sua tragédia pessoal.
Há todo um sentimento que mistura complacência, indiferença, consentimento e até diversão, se colocarmos todos os erros, encrencas e crimes cometidos no "alto da pirâmide". No caso da corrupção dos políticos do PSDB, conhecidos como "tucanos", há, entre as pessoas, uma certa resignação, movida pela visão equivocada de não se levar essa corrupção a sério, tratada como se fosse uma peça de um espetáculo cômico.
Desta maneira, políticos como José Serra, Aécio Neves, Fernando Henrique Cardoso e Geraldo Alckmin, ou então similares como os peemedebistas Michel Temer, Romero Jucá, Geddel Vieira Lima e Moreira Franco, muito diferentes da suposta corrupção petista que desperta ódio descomunal, têm seus episódios de corrupção narrados como se fossem palhaçada de circo, mais divertindo as pessoas do que causando qualquer tipo de indignação.
No "espiritismo" brasileiro, o que se nota é uma profunda complacência com os supostos médiuns que produzem mediunidade fake, difundem ideias católicas-medievais ao arrepio dos ensinamentos kardecianos originais e se promovem às custas do Assistencialismo, forma fajuta de caridade que mais promove o "benfeitor" do que beneficia os necessitados.
A imagem dos "médiuns", feitas à maneira das fadas-madrinhas dos contos de fadas mescladas com os mestres das estórias de fantasias, faz do "espiritismo" brasileiro uma espécie de contos-de-fadas para gente grande, oferecendo o "açúcar das palavras" como forma de fazer a deturpação de raiz roustanguista, mas servida sob o rótulo de "fidelidade absoluta a Allan Kardec", se tornar aceita sem qualquer tipo de reserva.
Os próprios ídolos "espíritas", palestrantes, escritores ou "médiuns", se valem desse prestígio religioso que, por mais que seja mascarado pelo verniz de "simplicidade" e "humildade", os insere também no rol de privilegiados do topo da pirâmide social, até pela presunção de "proximidade com Deus" que expressa este tipo de privilégio.
Hoje vemos a decadência dos mais diversos tipos de privilégios sociais. Até o prestígio religioso desafia a zona de conforto de muitos acreditarem que a religião está acima de todas as coisas e que os mesmos ídolos religiosos que cometeram os erros gravíssimos que arruinaram suas doutrinas irão consertá-las, como raposas prometendo reconstruir os galinheiros.
O que vemos é que os antigos detentores de privilégios sociais de toda ordem, e que pareciam modernos entre 1964 e 1974, se desgastam e fazem com que o topo da pirâmide seja um reduto de bolor tóxico de estruturas sociais arcaicas e mofadas. O consentimento social, marcado pela ignorância, pela catarse e pelo apego a valores retrógrados, é que sustenta os últimos suspiros desse "topo" que perece de forma acelerada e irreversível.
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