quarta-feira, 5 de julho de 2017
Os equívocos da retórica do "inimigo de si mesmo"
Olhe só quem fala. Os "espíritas" costumam reprovar os argueiros dos outros, mas quantas traves tapam os seus olhos diante dos próprios erros. O mito do "inimigo de si mesmo", engodo pseudo-filosófico trazido pela Teologia do Sofrimento, a corrente medieval da Igreja Católica, é um claro exemplo de tantos equívocos doutrinários que o "espiritismo" brasileiro, afastado de Allan Kardec (apesar de toda bajulação a ele dirigida), comete em sua prática.
Essa ideia do "combate a si mesmo" é vendida como se fosse "lição de vida" e "mensagem de otimismo", sendo difundida, pasmem, sob o pretexto de "fortalecer a autoestima humana". Aí a gente pergunta: por que essa teoria busca "fortalecer a autoestima" se ela define a própria pessoa como sua pior inimiga?
É inútil os "espíritas" depois explicarem que isso é uma metáfora, porque, no primeiro momento, eles falam de forma tão taxativa e firme que o discurso parece ter feito ao pé da letra. Se eles são firmes na véspera e hesitantes na "hora H", é claro que não se deve esperar coerência alguma deles.
Os "espíritas" falam mal do modismo do "jogo da Baleia Azul", que, com muita razão, é um passatempo macabro e muito perigoso. Até aí, nada demais. O problema é que o próprio "espiritismo", com sua apologia ao sofrimento e seu discurso sobre "provações", também estabelece o seu "jogo da Baleia Azul", na medida em que aconselha os outros a "vencerem a si mesmos".
Há vários equívocos a respeito desse mito do "inimigo de si mesmo", observando o quanto hipócrita é fazer apologia do sofrimento humano e ignorar as necessidades individuais que não podem ser confundidas com as ambições dos arrivistas de plantão. Até porque o "espiritismo" protege muitos arrivistas, vide as boas vibrações que protegem, na Bahia, a Rádio Metrópole FM, de Mário Kertèsz, emissora que ele adquiriu com o dinheiro sujo da corrupção. Vamos lá:
1) A NEGATIVIZAÇÃO DA INDIVIDUALIDADE - Se o apelo fala em "combater a si mesmo", então há uma imagem negativa da individualidade, do "eu". Você não pode ser "eu", porque o "eu" é o "mal", o "eu" é o seu "inimigo", e, portanto, "combater a si mesmo" é enfatizado no discurso religioso, inclusive o "espírita", para que você deixe sua individualidade de lado e seja "mais um do rebanho".
2) AFRONTA À AUTOESTIMA - O discurso do "inimigo de si mesmo" não é um incentivo ao fortalecimento do amor próprio da pessoa, mas um repúdio a esta qualidade. Se a pessoa é "inimiga" de si mesma, ela não pode ter autoestima positiva, não há amor próprio porque a pessoa é sua própria rival. Portanto, esse discurso, que é vendido como se fosse "sabedoria", pode soar uma perigosa incitação ao suicídio, que é justamente a prática mais condenada pelos "espíritas".
3) PARA HAVER UM VENCEDOR, TEM QUE HAVER UM DERROTADO - Alguém gostou do discurso de "vencer a si mesmo"? Muitos moralistas saem exultantes. Mas a lógica desse discurso nada tem de generosa: para haver um vencedor, tem que haver um derrotado. Filosoficamente falando, para que a pessoa "venca a si mesmo", se ela sair vencedora, ela também vai sair derrotada.
4) QUEM PREGA ESSE DISCURSO NUNCA SOFREU NA VIDA - É fácil alguém falar em "inimigo de si mesmo", "vencer a si mesmo" etc. Mas quem prega isso não sabe o que é sofrimento extremo, e fica pedindo aos sofredores aquilo que estes já fizeram, e muito: mudar os pensamentos, abrir mão de muitos desejos, fazer preces, meter a cara nos esforços, ter jogo de cintura, aumentar a fé e o otimismo.
O moralista que prega o mito do "inimigo de si mesmo" nunca experimentou situações de impotência ante as adversidades da vida. Os "espíritas", então, que vivem comercializando palavras bonitinhas, até choram muito quando são duramente contestados, quando a concordância aos seus pontos de vista conservadores, que esperavam ser unânime, se torna, na verdade, próxima da nula.
Só esses quatro itens mostram o quanto esse mito de "inimigo de si mesmo" é um grande erro moralista, e apelar para tal ideia em nada contribui para fortalecer o ser humano. Uma leviandade que o "espiritismo" quis botar até na conta de espíritos que nunca defenderiam essa imoralidade, como o roqueiro Raul Seixas, usado em uma psicografia fake sob o codinome Zílio.
Não se diz a alguém que cai que ele é o próprio inimigo, porque a pessoa se desencoraja a se levantar. Afinal, se a pessoa é sua inimiga, então ela tem que repudiá-la. Até a frase da literatura kardeciana, "amai os vossos inimigos", é muito mal interpretada e facilmente distorcida, de forma que, nesta maluca teoria "espírita" brasileira, não há como "amar o próprio inimigo que está dentro de si", porque aí é um processo leviano de morde-e-assopra.
Os partidários do mito do "inimigo de si mesmo" demonstram, na verdade, que são os verdadeiros inimigos da Filosofia, corrente do conhecimento que tanto dizem defender, sem entender de forma correta e aprofundada.
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