terça-feira, 21 de março de 2017
Por que as paixões religiosas são um grave perigo?
As paixões religiosas, que no caso do "espiritismo" blindam seus ídolos "mediúnicos", são vistas como um sentimento salutar de natural emotividade religiosa e expressão digna e positiva de fé e devoção. No entanto, não é assim que a realidade se mostra.
O que se vê é o endeusamento cego dos "médiuns", cuja atividade já é uma aberração, pois se corrompeu a função de médium como se havia originalmente nos tempos de Allan Kardec e está devidamente documentado em seus livros.
Os médiuns a serviço de Allan Kardec eram tão discretos que só eram conhecidos pelo sobrenome. Vários deles não deixaram imagens e seus dados biográficos deixados para os nossos dias são vagos de tão discretos. E eles só faziam a comunicação dos mortos com os vivos, sem no entanto bancarem dublês de filantropos e pretensos pensadores.
Aqui o que se vê é o culto à personalidade. O "médium" virou anti-médium, porque rompeu com a função intermediária. O "médium" virou grife, virou o centro das atenções, e isso se torna explícito pelo próprio modo das pessoas encararem tal atividade.
Quando as pessoas vão para eventos "espíritas" em que o "médium" está presente, é justamente ele a atração principal. O palestrante de palavras bonitas, o showman da religiosidade, o puro entretenimento da fé que coloca debaixo do tapete a gravidade da deturpação da Doutrina Espírita.
No evento "Você e a Paz", no qual várias pessoas fazem palestras e há até atrações musicais, o "médium" Divaldo Franco mostra que não tem a natureza intermediária. Ele sempre é a atração principal, o astro do espetáculo, daí o termo anti-médium, porque já virou o centro das atenções.
Até para receber mensagens de falecidos, esquecemos do Conselho Universal dos Ensinos dos Espíritos, que com tanto trabalho Allan Kardec deixou para a posteridade. Nele se aconselha maior cautela com as mensagens espirituais que, de preferência, devem ser acolhidas mais de uma vez, de diferentes médiuns, situados em locais distantes e sem relação entre si.
Esse conselho dado por Kardec não garante a veracidade da mensagem, mas diminui riscos de fraudes. Além disso, temos que tomar cuidado, pois, no Brasil, no caso das vítimas do incêndio da Boate Kiss, em Santa Maria (RS), forjou-se a divulgação de "psicografias" vindas de médiuns de diferentes Estados brasileiros, mas unificados numa mesma perspectiva igrejista vigente em todo o Brasil.
Mas os brasileiros perderam a cautela, há muito deixaram o mito de Francisco Cândido Xavier crescer como bola de neve, criando uma avalanche de igrejismo que praticamente soterrou o legado kardeciano no Brasil.
Chico Xavier criou uma péssima escola "espírita", permitindo um vale-tudo de mensagens apócrifas, caridade paliativa na qual o benfeitor se ostenta demais e os benefícios são poucos e superficiais, e o "médium" passou a ser um ídolo, dotado do mais aberrante culto à personalidade mascarado pelo verniz de simplicidade garantido pelo prestígio religioso.
Isso é um risco trazido pelas paixões religiosas, que criam um deslumbramento doentio, uma emotividade cega na qual se permite tudo, desde que seja "pelo pão dos pobres". Qualquer denúncia é só um "espírita" mostrar o pôster de uma criança pobre chorando que tudo volta às boas.
As paixões religiosas fizeram com que os esforços de crítica à deturpação da Doutrina Espírita ou às irregularidades de sua suposta mediunidade fossem interrompidos no meio. Em vários casos, permitiu-se que os deturpadores triunfassem, sob a desculpa de que eles "simbolizam o amor e a caridade".
Humberto de Campos Filho, o desconfiado filho do autor maranhense, foi seduzido por Chico Xavier depois que atendeu ao convite, em 1957, deste para assistir a uma doutrinária. O abraço que Chico deu ao jornalista e produtor de TV foi a oportunidade do "médium" usar a tática de fascinação obsessiva, condenada por Kardec, que fez o cético filho do escritor desabar em lágrimas soluçantes.
Na ocasião, também foram exibidas práticas de assistencialismo, forma tendenciosa de donativos e ações aparentemente filantrópicas que servem mais de propaganda do "benfeitor" do que de um meio de promover benefícios, já que os resultados são sempre superficiais e escassos.
Mulheres faziam sopas em um galpão e uma espetacular e ostensiva caravana era realizada em Uberaba, local do evento, para apenas doar mantimentos. Sopas e donativos são ações consideradas necessárias em países devastados pela guerra, mas em situações de paz têm seu valor de eficácia considerado bastante duvidoso.
Há no Brasil uma visão que glamouriza a caridade paliativa visando mais o vínculo institucional religioso. Falam que é uma caridade "transformadora", mas seus resultados são sempre inexpressivos. Isso revela uma visão conservadora e um tanto elitista, na qual o valor da caridade não é medido pelo alcance dos benefícios, mas pelo prestígio religioso do aparente benfeitor.
São as paixões religiosas que, representando um processo de orgias, seduções e até mesmo êxtases - não o êxtase sexual, mas o da comoção fácil dos beatos religiosos, que o "espiritismo" brasileiro copiou do Catolicismo - , que deixa as pessoas reféns de fantasias doentias e incompreensões da realidade que nunca se resolvem, presas à adoração extrema a um ídolo religioso.
O "espiritismo", com isso, importou para si a beatitude e o "mistério da fé" do Catolicismo medieval, e com isso seus valores retrógrados, incluindo a Teologia do Sofrimento. É o preço que as paixões religiosas fizeram, a partir da própria corrupção do conceito de médium, deixou, não bastasse a deturpação grave que se fez com o legado de Kardec, erroneamente associado a uma série de conceitos igrejeiros e moralistas que o pedagogo francês nunca iria defender em momento algum.
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