sexta-feira, 10 de fevereiro de 2017
"Espiritismo" brasileiro é o Catolicismo medieval redivivo
Poucos percebem, mas o Brasil tem a mania de absorver novidades sob o filtro da corrente decadente ou obsoleta. Sempre que alguma coisa nova surgindo, seja dentro do Brasil ou vinda de fora, há sempre uma "adaptação" que não raro compromete a essência inovadora original, praticamente se moldando aos valores conservadores que deveriam ter sido rompidos, mas predominam no "novo" fenômeno.
Há o caso, na História do Brasil, do Iluminismo que muito tardiamente foi inserido no país em sua plenitude. No calor dos movimentos iluministas, sua assimilação foi parcial e condicionada, e boa parte de seus adeptos ainda mantinha preconceitos escravistas bastante firmes. Alguns "iluministas" brasileiros eram também senhores de engenho ou, de certa forma, exploradores de escravos.
Nos últimos tempos, temos um feminismo duplamente filtrado pelo conservadorismo machista. Cria-se um maniqueísmo estranho em que dois estereótipos machistas da mulher, a "escrava do lar" (às vezes pejorativamente apelidada de "rainha do lar") e a mulher-objeto, esta errônea mas tendenciosamente definida como "feminista".
Isso porque existe uma manobra do establishment machista no qual a mulher que aceita fazer o papel de objeto sexual - como se observa nas siliconadas em geral ou em "musas" e intérpretes do "funk" e do "pagodão baiano" - está dispensada de viver sob o vínculo conjugal de um homem, já que a mulher, no caso, cumpre direitinho o papel que o machismo lhe reserva, por mais que ela crie arremedo de ativismo feminista.
Já a mulher que recusa a cumprir esse papel de objeto sexual, adotando uma postura clean, se associando a bons referenciais culturais (sem aderir ao "populacho" cultural desenvolvido pela mídia comercial) e procurando ter opinião própria para diversos assuntos, o "sistema" aconselha a essa mulher - que poderia ser solteirona em países como França, Bélgica e Suíça - a manter um vínculo conjugal com um homem, de preferência se casando com um empresário ou profissional liberal.
É a novidade do feminismo filtrada, por um lado ou por outro, pelo conservadorismo machista, que de duas formas tenta domar a emancipação feminina, levando em conta a "necessidade" da mulher obedecer paradigmas machistas. Se ela obedece, não precisa ter marido. Se não obedece, precisa se casar com um homem associado a uma função profissional de comando ou liderança.
Há muitos e muitos exemplos que fazem com que o Brasil sempre adie algum progresso social. Novidades só conseguem ser integralmente assimiladas muito tarde, e quando seu potencial de inovação se torna dissolvido com a rotina. A novidade sempre surge deturpada e, quando ela é moldada para se assemelhar à fonte original, ela já se tornou rotineira e óbvia.
É desta forma que a novidade trazida por Allan Kardec chegou ao Brasil. A Doutrina Espírita, pelo caráter inovador que representou entre 1857 e 1869, época em que o pedagogo francês produziu e divulgou ideias, foi filtrada pelos brasileiros, que se sentiram incomodados com os conhecimentos lógicos sofisticados da obra kardeciana.
MUDANÇAS NA IGREJA CATÓLICA
Tinha que haver um filtro, e por sorte dos conservadores é que o Catolicismo passava por mudanças no Brasil, e a herança jesuíta já havia sido superada com o fim das atividades da Companhia de Jesus ordenadas, ainda no século XVIII, pelo Marquês de Pombal, fruto de um programa austero de corte de investimentos para reparar os gravíssimos prejuízos do devastador terremoto seguido de tsunami que atingiu Lisboa em 1755.
Os adeptos do Catolicismo jesuíta português, de valores medievais, não aceitavam as transformações da Igreja Católica que, mesmo mantendo seus dogmas e ritos só descartados no século XX - como as missas rezadas em latim - , em parte aproveitaram a novidade do Espiritismo para arrumar um jeito de transformarem a nova doutrina numa dissidência católica.
As primeiras organizações "espíritas" tomaram como base a obra deturpada de Jean-Baptiste Roustaing, Os Quatro Evangelhos, aparentemente resultante de uma psicografia feita por uma médium francesa evocando os quatro evangelistas João, Mateus, Lucas e Marcos.
O roustanguismo tornou-se o DNA do "movimento espírita" que no Brasil aproveitou a novidade para inserir nele um povoado de personalidades jesuítas (mais tarde viria Emmanuel, o antigo Padre Nóbrega do período colonial) e conceitos igrejeiros, adaptando cada rito, dogma ou atividade católica à rotina "espírita". As igrejas viraram "centros espíritas", a água-benta virou "água fluidificada" e o confessionário virou "auxílio fraterno", e por aí vai.
É certo que, desde os primórdios da FEB, houve um esforço para abafar essa opção e fingir a fidelidade a Allan Kardec. Desde a fraudulenta "psicografia" com um pseudo-Kardec pedindo atenção à "revelação da revelação" (bandeira roustanguista) se usa o pedagogo francês para dissimular a deturpação de Roustaing, alvo de muita controvérsia.
Essa manobra teve seu auge quando veio a tendência dúbia, na década de 1970, quando um lobby de federações estaduais reagiu à cúpula centralizadora da FEB fingindo buscar recuperar as bases kardecianas. A tendência dúbia, na prática, foi o palanque de Divaldo Franco e o abrigo de Francisco Cândido Xavier.
Aliás, o caso de Chico Xavier é ilustrativo. Ele era associado a uma fase em que o roustanguismo era explícito, mas não tão entusiasmado quanto antes. Chico era católico e tornou-se um mito claramente igrejeiro, quando ele não escondia que era católico rezador de terços e adorador de imagens de santos.
Mas, na tendência dúbia, não bastasse o renascimento do mito de Chico Xavier como "filantropo" e "carteiro de Deus", montado habilidosamente com a ajuda da Rede Globo (logo ela!), houve uma corrente que queria reembalar e vender o mito do anti-médium mineiro como um suposto "cientista", "filósofo" e "profeta", através da profecia da "data-limite".
A corrente representada por Juliano Pozzati, Geraldo Lemos Neto e outros é a radicalização da tendência dúbia, na qual se capricha no simulacro do "kardecismo mais autêntico", criando arremedos de ciência e filosofia encharcados de misticismo ocultista. Nela Chico Xavier é transformado em "cientista" e "filósofo" a partir de uma suposta previsão sobre as transformações humanas em 2019, uma espécie de pastiche de Nostradamus.
Mas como a tendência dúbia virou alvo de críticas severas, já que a promessa de recuperação das bases kardecianas não passou de conversa para boi dormir, mantendo a mesma desonestidade doutrinária de antes, o "movimento espírita" pode entrar numa nova fase, diante do contexto de retomada conservadora.
O "movimento espírita", na fase dúbia, oficialmente denominada "kardecismo autêntico" (uma "fidelidade" prometida a Kardec, mas nunca cumprida), caiu em inúmeras contradições. Do pretenso cientificismo de Pozzari, Lemos Neto e companhia à devoção milagreira de Chico Xavier e do "curandeiro" João de Deus, o "espiritismo" brasileiro tornou-se a religião com maior número de contradições e maior gravidade das mesmas, entre as religiões existentes.
Ao mesmo tempo em que havia falsas críticas à "vaticanização do Espiritismo", como em Alamar Régis Carvalho, havia também sutis evocações à medieval Teologia do Sofrimento, não só trazida por Chico Xavier mas também em textos e palestras de Richard Simonetti e Orson Peter Carrara. Já o baiano José Medrado parece estar inclinado à Teologia da Prosperidade, bandeira neopentecostal e voltada aos princípios da meritocracia.
Fala-se num neo-roustanguismo que, evidentemente, não voltará a evocar Roustaing, mas seguirá um igrejismo semelhante a Os Quatro Evangelhos. E isso mostra o quanto o "espiritismo" nunca passou de um Catolicismo medieval redidivo, apenas "temperado" com suposta mediunidade e aparente homeopatia, como supostos diferenciais.
Esses supostos diferenciais, no fundo, não fizeram os "espíritas" diferirem muito dos católicos pois, fora as batinas, das igrejas luxuosas, da pompa e o "senta-e-levanta" das missas, o "espiritismo" brasileiro é igualzinho ao Catolicismo, sendo muitas vezes mais católico do que os próprios católicos.
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